A Decisão TCEMG e a discussão sobre os limites às alterações consensuais nos contratos administrativos

Por Gabriela Pércio

Advogada e Consultora em Licitações e Contratos
Mestre em Gestão de Políticas Públicas
Vice-Presidente do Instituto Nacional da Contratação Púbica – INCP
Autora do livro: Contratos Administrativos – Manual para Gestores e Fiscais de acordo com a Lei 14.133/2021.
4ª Edição revista, ampliada e atualizada
https://loja.editoraforum.com.br/contratos-administrativos-4a


Na sessão do dia 6 de agosto, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais analisou pedido de Consulta e fixou prejulgamento de tese, com caráter normativo, no seguinte sentido:

“2. No caso de acordo entre as partes, não há limitação expressa quanto ao percentual a ser acrescido ou diminuído ao contrato, sendo possível a alteração das quantidades indispensáveis à consecução do objeto, desde que comprovado o interesse público e a necessidade da alteração para a eficiente execução contratual. O acréscimo, contudo, não pode ser manifestamente desproporcional ao quantitativo inicialmente contratado, em respeito aos princípios do planejamento, da isonomia e da vinculação ao edital, cabendo à Administração comprovar, fundamentadamente, a vantajosidade da alteração em relação à realização de novo certame ou procedimento de contratação direta, observando os princípios e dispositivos contidos na Lei 14.133/2021.”

A manifestação da corte de contas mineira surpreendeu a todos, pois, a rigor, espera-se que os órgãos de controle adotem interpretações mais rígidas, que diminuam os limites de atuação dos gestores e, consequentemente, o risco da prática de ilegalidades.

Contudo, a decisão merece aplausos. Por mais que possam existir temores sobre o mau uso da nova regra considerando as experiências com a Lei 8.666/1993, há que se reconhecer que tal interpretação avança no mesmo sentido das mudanças trazidas pela Lei 13.655/2018, a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que posiciona o gestor em um local de segurança para tomar decisões necessárias à gestão pública e impõe ao controlador o dever de respeitar essa decisão, se motivada. Trata-se, pois, de uma decisão que respeita a coerência do sistema jurídico atual, independentemente das convicções individuais de cada intérprete.

A ausência de limites percentuais às alterações consensuais faz parte de um rol de medidas da Lei 14.133/2021 que remodelam os contratos administrativos e aumentam a sua efetividade enquanto instrumento para a realização do interesse público. Especialmente, trata-se de uma medida compatível com as incertezas do novo cenário que se desenhará com os contratos de longo prazo regidos pela Lei 14.133/2021, acerca dos quais ainda não se tem qualquer experiência.

Juridicamente, além dos argumentos traçados na decisão, outros ainda podem vir em reforço:

  1. As alterações consensuais aos contratos, sejam quais forem, não encontram limites em um rol legal exaustivo, mas no dever de licitar e nos motivos que a sustentam. Neste contexto, se a alteração pretendida por uma das partes não prejudicar a outra, sua realização não pode e não deve ser obstada.
  2. A superação dos limites de 25% sobre o valor inicial atualizado do contrato não burla, automaticamente, o dever de licitar. O percentual legal máximo para as alterações unilaterais não tem o objetivo de demarcar o ponto em que a licitação passa a ser exigida, mas o ponto em que uma alteração imposta pela Administração encontra o seu limite.
  3. Existindo, como deve ser, um fato superveniente decorrente de imprevisibilidades, a sustentar a alteração pretendida, não haverá que se falar em burla ao dever de licitar. Assim, se antes de contratar era impossível ao gestor identificar previamente as circunstâncias que agora ensejam a alteração, o dever de licitar relacionado ao objeto daquele contrato foi devidamente cumprido, a tempo e modo. Assim, no novo cenário fático vivenciado pela Administração, a análise não deve ocorrer com base no dever de licitar, mas na manutenção ou ampliação da utilidade do contrato que foi devidamente celebrado.
  4. Ocorrerá afronta ao dever de licitar se das alterações resultar a transfiguração do objeto. Isso se aplica, inclusive, às alterações que ficarem dentro dos próprios limites percentuais, no caso das unilaterais, e às alterações quantitativas, unilaterais ou consensuais, se considerarmos que as quantidades são um elemento fundamental à competitividade do certame.
  5. A ausência de limites percentuais para as alterações consensuais não é um salvo-conduto para o gestor praticar irregularidades, nem um afrouxamento do controle. O dever de motivar subsiste intacto. A diferença é que ele não precisará decidir em função de um limite percentual. O gestor deverá demonstrar, considerando a superveniência de ocorrências imprevisíveis, o interesse público que motivou o contrato possui novos contornos e o melhor caminho para satisfazê-lo é o próprio contrato existente.

O assunto é um dos mais polêmicos trazidos pela Lei 14.133/2021 e tem dividido radicalmente as opiniões dos especialistas. No plano da hermenêutica jurídica, não parece que a discussão algum dia terá fim, ante os múltiplos argumentos de ambos os lados. Na prática, assim como fez o Tribunal de Contas de Minas Gerais, cada tribunal de contas deverá orientar e fiscalizar seus jurisdicionados conforme a linha de entendimento que entender adequada. Para o gestor, a dica permanece a mesma de sempre, em qualquer caso: motivação.

O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.

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