Análise Crítica do Acórdão 523/2025-TCU-Plenário: A Exigibilidade da Comprovação da Reserva de Cargos para Pessoas com Deficiência e Reabilitados da Previdência Social1.
Resumo:
A interpretação conferida pelo Acórdão 523/2025-Plenário do TCU ao art. 63, inciso IV, da Lei nº 14.133/2021 suscita importantes reflexões sobre o alcance e a efetividade das exigências legais no processo licitatório. Em particular, discute-se a suficiência da mera declaração do licitante acerca do cumprimento das cotas destinadas a pessoas com deficiência (PCD) ou reabilitados, conforme o art. 93 da Lei nº 8.213/1991, como critério de habilitação. Com base em análise da legislação aplicável e do referido acórdão, o estudo explora a compreensão do TCU, que privilegia uma abordagem formalista — admitindo a declaração como suficiente nesta fase, com possibilidade de verificação posterior, de ofício ou por provocação. Essa perspectiva é confrontada com os objetivos de inclusão social e com a necessidade de segurança jurídica nos certames, considerando-se os fundamentos da decisão, as formas de comprovação e as implicações práticas para os entes públicos e os licitantes. Conclui-se pela importância de um equilíbrio entre a simplificação processual e a efetiva observância das obrigações legais de inclusão social desde a habilitação.
Palavras-chave: Lei 14.133/21; Habilitação; Artigo 63, IV; Reserva de Cargos; Pessoa com Deficiência; Lei 8.213/91; Acórdão TCU; Análise Crítica; Controle Externo.
1. Introdução
A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, instituiu o novo marco legal para licitações e contratos administrativos no Brasil, com o propósito de modernizar, desburocratizar e conferir maior eficiência aos processos de contratação pública. Para além dessas metas operacionais, a Nova Lei de Licitações e Contratos (NLCC) incorpora dispositivos voltados à promoção de políticas públicas de inclusão social, instrumentalizando as contratações estatais como vetor de transformação. Nesse sentido, destaca-se a exigência, prevista no art. 63, inciso IV, de que o licitante apresente declaração quanto ao cumprimento das normas relativas à reserva de cargos para pessoas com deficiência (PCD) e reabilitados da Previdência Social — obrigação que, sob a égide da antiga Lei nº 8.666/1993, figurava apenas como critério de desempate, e que agora passa a constituir requisito de habilitação.
Tal exigência encontra fundamento, principalmente, no art. 93 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que estabelece a obrigatoriedade de empresas com cem ou mais empregados preencherem uma parcela de seus cargos com pessoas com deficiência ou reabilitados habilitados. Embora o art. 63, IV, não mencione explicitamente outras ações afirmativas, a discussão frequentemente se estende à reserva de vagas para aprendizes, conforme previsto no art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), especialmente à luz dos arts. 92, XVII, e 116 da NLCC, que tratam das obrigações contratuais vinculadas à inclusão.
A interpretação e aplicação do art. 63, IV, têm suscitado controvérsias relevantes, sobretudo quanto à suficiência da mera declaração do licitante como condição para habilitação, ou se caberia à Administração Pública exigir, já nessa fase, a comprovação objetiva do cumprimento das cotas, notadamente quando há indícios de falsidade na declaração apresentada.
Nesse cenário, o Acórdão nº 523/2025–Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), proferido no âmbito da Representação TC 019.969/2024-4, torna-se particularmente relevante. A decisão analisou caso concreto relativo a um Pregão promovido por entidade da Administração Pública indireta, no qual se questionava a habilitação de empresa que, supostamente, teria apresentado declaração inverídica quanto ao cumprimento das cotas legais. O entendimento firmado pelo TCU nesse julgamento passou a ser considerado um marco interpretativo sobre o tema.
Este artigo tem por objetivo realizar uma análise crítica do referido acórdão, com ênfase na interpretação dada pelo TCU à exigência contida no art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021, e sua correlação com a obrigação legal prevista no art. 93 da Lei nº 8.213/1991. Para tanto, adota-se metodologia baseada em análise legislativa e jurisprudencial, confrontando a decisão do Tribunal com os textos normativos aplicáveis, os princípios que regem a contratação pública e os objetivos das políticas de inclusão social. Busca-se, assim, compreender os fundamentos do posicionamento adotado pelo TCU, bem como suas repercussões práticas para a Administração Pública e para os licitantes.
2. O Marco Legal da Controvérsia
Para uma adequada compreensão da controvérsia, faz-se necessário o detalhamento dos dispositivos legais centrais que estruturam a exigência de cumprimento das cotas de inclusão social no contexto das licitações públicas.
2.1 A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações)
A Lei nº 14.133/2021, novo marco normativo das contratações públicas, regula a fase de habilitação nos artigos 62 a 70. O foco da presente análise recai sobre o inciso IV do artigo 63:
Art. 63. Na fase de habilitação das licitações serão observadas as seguintes disposições:
(…)
IV – será exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, previstas em lei e em outras normas específicas.
Este dispositivo inova ao estabelecer, como requisito de habilitação, a apresentação de uma declaração formal por parte do licitante quanto ao cumprimento das cotas legais para pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social. Trata-se de uma mudança substancial em relação à legislação anterior, uma vez que tal exigência era prevista apenas como critério de desempate na extinta Lei nº 8.666/1993. Ao transformá-la em condição obrigatória de habilitação, o legislador eleva seu status jurídico, ainda que opte por exigir, nessa fase, apenas uma manifestação declaratória — em contraste com outros requisitos, como regularidade fiscal ou qualificação técnica, que demandam a apresentação de documentação comprobatória específica (certidões, atestados etc.).
Contudo, a própria Lei reforça, em dispositivos posteriores, que o efetivo cumprimento das obrigações relacionadas à inclusão deve se prolongar ao longo de toda a execução contratual, constituindo dever contínuo e verificável. Isso se evidencia em diversas passagens:
Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:
(…)
XVI – a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições exigidas para a habilitação na licitação, ou para a qualificação, na contratação direta;
XVII – a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos previstas em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz;
Art. 116. Ao longo de toda a execução do contrato, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz, bem como as reservas de cargos previstas em outras normas específicas.
Parágrafo único. Sempre que solicitado pela Administração, o contratado deverá comprovar o cumprimento da reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz, bem como das reservas previstas em outras normas específicas.
Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato: (…)
IX – o não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz.
A leitura sistemática desses dispositivos revela uma dualidade normativa: por um lado, a mera declaração é exigida como condição formal de habilitação; por outro, o cumprimento efetivo das cotas é imposto como obrigação contratual contínua, cuja inobservância pode ensejar a rescisão do contrato.
Essa dualidade é o cerne da controvérsia jurídica: em que momento, e de que forma, deve a Administração Pública verificar a veracidade da declaração? Seria legítima a exigência de prova documental já na fase de habilitação, especialmente quando houver dúvidas sobre a veracidade das informações prestadas? Ou a verificação deve ocorrer apenas posteriormente, como medida de controle de execução contratual?
O tensionamento entre essas interpretações é o que dá ensejo à análise do entendimento consolidado pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão nº 523/2025–Plenário, objeto do próximo capítulo.
2.2 A Lei nº 8.213/1991 (Lei de Cotas para PCD)
A principal norma referenciada pelo art. 63, inciso IV, da Nova Lei de Licitações é a Lei nº 8.213/1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social. Seu artigo 93 estabelece a obrigatoriedade de reserva de vagas no mercado de trabalho formal para pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitados da Previdência Social, conforme a seguinte gradação proporcional:
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados ……………………………………………. 2%;
II – de 201 a 500 ……………………………………………………….. 3%;
III – de 501 a 1.000 ……………………………………………………. 4%;
IV – de 1.001 em diante ……………………………………………. 5%.
§1º A dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da Previdência Social ao final de contrato por prazo determinado superior a 90 (noventa) dias, bem como a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado, somente poderá ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social.
O dispositivo impõe uma obrigação contínua e objetiva às empresas com cem ou mais empregados, constituindo um dever jurídico que transcende o momento da contratação pública e integra a dinâmica da relação laboral. Trata-se, portanto, de norma cogente com implicações tanto na esfera administrativa quanto no cumprimento de políticas públicas de inclusão social.
2.3 O Ponto Controvertido
Diante do arcabouço normativo delineado, emerge a questão central desta análise: a declaração exigida pelo art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021 deve ser compreendida como um mero requisito formal, bastando a palavra do licitante — cuja veracidade seria, em tese, verificada apenas em momento posterior (na execução contratual ou mediante provocação)? Ou, alternativamente, tal declaração representa uma condição sujeita à comprovação imediata, caso haja indícios de inveracidade já na fase de habilitação?
A ambiguidade decorre da tensão entre o caráter formal do dispositivo e a materialidade das políticas públicas de inclusão que ele busca resguardar. O dilema é jurídico e prático: seria admissível que uma empresa, não cumpridora das cotas legais, se habilitasse apenas com base em uma declaração unilateral, confiando que eventual descumprimento só será averiguado futuramente? Ou caberia à Administração, já na fase de habilitação, solicitar documentação comprobatória, especialmente diante de suspeitas fundadas?
É nesse contexto que o Acórdão nº 523/2025 – Plenário do TCU se apresenta como referência interpretativa, oferecendo resposta institucional a essa indagação. O julgamento, fruto de análise concreta em sede de representação, enfrentou diretamente a controvérsia, firmando posicionamento com potenciais repercussões normativas e práticas para a Administração Pública e os participantes dos certames.
3. O Posicionamento do TCU no Acórdão nº 523/2025 – Plenário
O Acórdão nº 523/2025 – Plenário, do Tribunal de Contas da União (TCU), teve origem em representação formulada por empresa licitante contra atos praticados no âmbito de um Pregão Eletrônico, conduzido por entidade da Administração Pública indireta. O objeto licitado referia-se à prestação de serviços de prevenção contra incêndio e pânico. Na petição inicial, a representante alegou que a empresa declarada vencedora teria apresentado declaração falsa quanto ao cumprimento das cotas de reserva legal de cargos destinadas a pessoas com deficiência (PCD), reabilitados da Previdência Social e aprendizes, o que configuraria afronta ao art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021 e deveria ensejar sua inabilitação. Para embasar suas alegações, anexou certidões expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que apontavam o não cumprimento das cotas em determinados períodos.
Em sede preliminar, o Ministro Relator deferiu medida cautelar para suspender a assinatura do contrato, considerando plausibilidade jurídica nas alegações, sobretudo em razão de a própria empresa vencedora ter reconhecido, em contrarrazões no processo administrativo, um “não cumprimento momentâneo das cotas”. A cautelar foi referendada pelo Plenário por meio do Acórdão nº 2089/2024 – Plenário, sendo determinadas oitivas da entidade licitante e da empresa vencedora.
3.1. Manifestação das Partes
Em sua defesa, a entidade licitante sustentou a regularidade da habilitação da empresa vencedora, argumentando que a exigência legal prevista no art. 63, IV, restringe-se à apresentação de declaração formal, não sendo exigida, nessa fase, a juntada de certidão do MTE. Informou que, após a interposição do recurso administrativo pela representante, promoveu diligências administrativas e solicitou parecer jurídico à Procuradoria Federal Especializada. O parecer concluiu que a autodeclaração é válida, mas, uma vez questionada, cabe à Administração avaliar a suficiência das provas apresentadas pela empresa, inclusive considerando os esforços realizados para o cumprimento das cotas. Conforme relatado, a empresa apresentou anúncios de vagas, contrato com o CIEE, além de dados extraídos do e-Social, que demonstrariam o preenchimento dos percentuais exigidos na data da habilitação.
Já a empresa declarada vencedora defendeu que a representação buscava transformar o TCU em instância recursal indevida, e afirmou ter cumprido integralmente as exigências legais à época. Ressaltou que as certidões do MTE não retratam, necessariamente, a realidade atualizada da força de trabalho, dada a dinamicidade das contratações e a periodicidade de atualização do sistema. Informou ainda que os dados do e-Social evidenciavam conformidade com a legislação e que havia apresentado tais elementos à entidade licitante. Mencionou, também, a existência de decisão judicial denegatória de liminar em mandado de segurança ajuizado pela representante sobre os mesmos fatos, reforçando a inexistência de ilegalidade.
3.2. Entendimento Firmado pelo TCU
Ao analisar o mérito, o Tribunal, acompanhando o voto do Ministro Relator e acolhendo a análise técnica da unidade responsável, firmou entendimento sobre a aplicação do art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021. Os principais pontos do voto foram os seguintes:
- O art. 63, IV, exige, na fase de habilitação, declaração formal do licitante quanto ao cumprimento das cotas, cuja veracidade é presumida com base no princípio da boa-fé.
- Essa declaração pode ser questionada de ofício ou por provocação, especialmente por meio de recurso administrativo.
- A certidão do MTE constitui meio válido de prova, mas não é o único, tampouco suficiente, por si só, para ensejar a inabilitação, dada a defasagem temporal dos dados e a natureza dinâmica da força de trabalho.
- Diante de impugnação ou dúvida fundamentada, deve-se oportunizar ao licitante a apresentação de outros elementos de prova que demonstrem o cumprimento da obrigação, como dados do e-Social, contratos, anúncios de vagas ou parcerias institucionais.
- Os esforços empreendidos pelo licitante no sentido de preencher as vagas devem ser levados em consideração, à luz da jurisprudência trabalhista do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que valoriza a conduta diligente do empregador na busca pelo cumprimento da norma.
- No caso concreto, a empresa vencedora apresentou documentos que comprovavam o cumprimento do percentual mínimo exigido pelo art. 93 da Lei nº 8.213/1991 à época da habilitação, além de evidenciar ações contínuas para a ocupação das vagas. Certidões atualizadas do MTE também passaram a corroborar tal cumprimento.
Diante disso, o TCU concluiu pela improcedência da representação quanto à suposta irregularidade, reconhecendo-a parcialmente procedente apenas quanto à admissibilidade inicial. A medida cautelar foi revogada e determinou-se o arquivamento dos autos.
O entendimento consolidado foi resumido no próprio acórdão, nos seguintes termos:
“Para fins de habilitação em processo licitatório e para verificação na vigência do contrato, a veracidade da declaração de licitante quanto ao cumprimento das exigências de reserva de cargos de que trata o art. 63, inciso IV, da Lei 14.133/2021 poderá, quando necessário, de ofício ou por provocação, ser comprovada por meio de certidão expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ou ainda por outros meios de prova, tais como extratos dos dados registrados no e-Social.”
4. Análise Crítica
O entendimento esposado pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão nº 523/2025 – Plenário suscita relevantes reflexões jurídicas quanto à aplicação do art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021. Em especial, destaca-se o necessário equilíbrio entre os princípios da eficiência administrativa, competitividade, segurança jurídica e a efetividade das políticas públicas de inclusão social, objetivo substancial da exigência normativa analisada.
4.1 Pontos Positivos e Aspectos Pragmáticos da Decisão
A decisão do TCU revela-se alinhada à literalidade do dispositivo legal, que, de fato, exige apenas a declaração formal do licitante quanto ao cumprimento das cotas. Ao não equiparar essa declaração à exigência imediata de comprovação documental — salvo em caso de impugnação ou indício fundado —, o Tribunal evita criar ônus não previstos em lei, contribuindo, assim, para a simplificação procedimental e a agilidade do processo licitatório.
Adicionalmente, a Corte adota postura pragmática ao reconhecer a dinamicidade das relações de trabalho, especialmente no que se refere ao preenchimento de cotas. O quadro de empregados de uma empresa está sujeito a alterações constantes, e a exigência de uma comprovação documental estanque, como a certidão do MTE (por vezes desatualizada), poderia levar à exclusão de empresas que, embora momentaneamente fora dos percentuais exigidos, estão em processo efetivo de conformidade.
Outro aspecto positivo reside na valorização de meios alternativos de prova, como os dados extraídos do e-Social, ferramenta que oferece registros atualizados e oficiais. Isso amplia a possibilidade de análise da veracidade das declarações de forma mais precisa e técnica, sem depender exclusivamente de documentos com potencial descompasso temporal.
A consideração dos esforços empreendidos pela empresa, em consonância com a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), também se destaca como elemento de razoabilidade. Reconhecer a boa-fé objetiva de empresas que demonstram ações concretas para recrutar PCDs e aprendizes — ainda que enfrentem barreiras estruturais, como escassez de mão de obra qualificada — reforça o caráter inclusivo e equilibrado da política pública, sem adotar uma postura punitiva desproporcional.
4.2 Pontos de Crítica e Riscos Associados
Apesar dos méritos, a interpretação firmada pelo TCU não está isenta de críticas, sobretudo quanto à sua repercussão sobre a efetividade da política de inclusão social na fase pré-contratual. Ao relegar a verificação substancial do cumprimento das cotas para momento posterior — seja na execução contratual, seja em decorrência de questionamento formal —, abre-se espaço para uma aplicação meramente formalista do art. 63, IV.
Sob tal ótica, a exigência da declaração corre o risco de converter-se em um ato proforma, desprovido de eficácia concreta, permitindo a habilitação de empresas que não atendem às exigências legais, mas que confiam na baixa incidência de fiscalização ou impugnação nessa fase. A presunção de veracidade, embora juridicamente válida, pode, na prática, desestimular o cumprimento real da obrigação antes da contratação.
Esse modelo torna o controle dependente de três fatores nem sempre eficazes:
- (a) A atuação de outros licitantes, que podem não dispor de meios para comprovar o descumprimento por parte dos concorrentes;
- (b) A iniciativa da própria Administração, que frequentemente carece de tempo ou estrutura para análises detalhadas em todos os certames;
- (c) A fiscalização contratual posterior, que, embora relevante (arts. 116 e 137, IX da Lei nº 14.133/2021), ocorre tardiamente, quando a contratação já foi formalizada.
Nesse cenário, impõe-se a reflexão: não seria mais eficiente e coerente com a finalidade inclusiva da norma exigir a comprovação concreta do cumprimento das cotas antes da contratação? Ou, alternativamente, estabelecê-la como condição para a assinatura do contrato, ao invés de limitá-la à mera autodeclaração na habilitação?
Outro ponto de preocupação está na subjetividade da análise do “esforço” empresarial. Embora juridicamente relevante, a ausência de parâmetros objetivos para medir tais esforços pode gerar insegurança jurídica e decisões díspares entre agentes de contratação. O que configura um esforço “suficiente”? Como distinguir entre diligência genuína e tentativas meramente simuladas de cumprimento?
Por fim, observa-se um possível descompasso entre os objetivos substanciais da norma e a sua aplicação procedimental. A Lei nº 8.213/1991 e a CLT visam assegurar a efetiva inserção de grupos vulneráveis no mercado de trabalho, o que demanda mais do que declarações formais. Uma interpretação excessivamente tolerante pode, involuntariamente, priorizar a celeridade procedimental em detrimento da função social do contrato administrativo.
4.3 Implicações Práticas
A interpretação consolidada pelo TCU orienta a Administração Pública a exigir a declaração como condição suficiente para habilitação, ressalvando que a verificação de sua veracidade só se impõe diante de impugnação fundamentada ou indícios concretos. Nesses casos, devem ser oportunizados meios de comprovação complementar, como dados do e-Social, contratos, registros de anúncios e outras evidências.
Isso impõe aos agentes de contratação a necessidade de discernimento técnico e jurídico para avaliar a suficiência da documentação apresentada, ponderando com equilíbrio os elementos objetivos e os indícios de boa-fé.
Para os licitantes, o acórdão representa uma simplificação procedimental, mas também um alerta: a declaração deve estar lastreada em fatos e passível de verificação, sob pena de consequências legais e contratuais em caso de inconsistência. O cuidado com os registros no e-Social e a documentação de ações de recrutamento tornam-se elementos estratégicos de conformidade.
Do ponto de vista da política de inclusão, a decisão reforça a importância da fiscalização contratual contínua como instrumento central para garantir a efetividade da norma. Isso atribui à Administração o dever de acompanhar de perto o cumprimento das obrigações sociais não apenas como cláusulas acessórias do contrato, mas como expressões da função social da contratação pública, em consonância com os valores constitucionais de dignidade, igualdade e inclusão.
5. Conclusão
O Acórdão nº 523/2025 – Plenário do TCU, ao interpretar a aplicação do art. 63, IV, da Lei nº 14.133/2021, adotou uma postura pragmática, em consonância com a literalidade da norma. Reconheceu-se que, na fase de habilitação, exige-se apenas a declaração formal do licitante quanto ao cumprimento das cotas de reserva de cargos para pessoas com deficiência (PCD) e reabilitados da Previdência Social, cuja veracidade é presumida, salvo impugnação fundamentada ou indícios concretos de falsidade.
O Tribunal delimitou que, nesses casos, cabe à Administração oportunizar ao licitante a apresentação de meios de prova alternativos, tais como dados do e-Social, contratos, registros de anúncios de vagas ou outras evidências que demonstrem o cumprimento efetivo ou, ao menos, esforços diligentes e contínuos para atender à legislação. A certidão do MTE, por sua vez, foi corretamente tratada como instrumento válido, mas não exclusivo, dada sua possível defasagem informacional.
Tal abordagem busca equilibrar a simplificação procedimental com a verificação de regularidade material, evitando inabilitações baseadas em documentos desatualizados ou desvios momentâneos do quadro funcional — condutas que nem sempre revelam inadimplemento estrutural ou má-fé do licitante.
Contudo, a análise crítica aponta para fragilidades potenciais desse modelo, sobretudo no que tange ao controle pré-contratual da política de inclusão. Ao condicionar a apuração da veracidade da declaração a provocação formal ou à atuação da Administração, corre-se o risco de permitir que empresas materialmente não conformes avancem no certame amparadas apenas em declarações formais, o que compromete a efetividade da norma desde sua origem — a fase de habilitação.
Dessa forma, conclui-se que a decisão do TCU, ainda que juridicamente consistente e tecnicamente defensável, impõe à Administração Pública uma responsabilidade ampliada na fiscalização da execução contratual, especialmente nos moldes do art. 116 da Lei nº 14.133/2021. Para que a política de cotas cumpra seu papel social, é imprescindível que os órgãos contratantes implementem mecanismos eficazes e tempestivos de verificação, sem os quais a exigência de declaração corre o risco de esvaziamento normativo.
Nesse sentido, recomenda-se a edição de normativos complementares ou orientações interpretativas, por parte dos órgãos de controle ou da própria Administração, que especifiquem os meios de prova admitidos, definam parâmetros objetivos para a aferição dos “esforços” empreendidos pelo licitante e orientem a atuação dos pregoeiros e comissões de licitação. Com isso, busca-se conferir maior segurança jurídica, isonomia e efetividade à aplicação do art. 63, IV, assegurando que a finalidade social da legislação de cotas não seja sacrificada em nome da mera formalidade ou celeridade procedimental.
6. Referências
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. Edição extra-F. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 11 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 1991.1 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 11 abr. 2025.
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