“É irregular a exigência de número mínimo de atestados de capacidade técnica para fins de habilitação, a não ser que a especificidade do objeto a recomende, situação em que os motivos de fato e de direito deverão estar explicitados no processo licitatório.” (TCU, Acórdão no. 825/2019, Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman)[1]
Um dos temas que mais desperta atenção dos órgãos de controle de externo, quando se trata de requisitos de habilitação em editais de licitação pública, é o referente à exigência de atestados de capacidade técnica.
A exigência de atestados de capacidade técnica encontra amparo legal no art. 30 da Lei nº. 8.666/1993. Por capacidade técnica, entende-se se tratar da comprovação que o licitante deve apresentar, em que demonstra já ter experiência na execução de objeto assemelhado com aquele que está em disputa. A norma objetiva a formação de uma presunção de que aquele que já executou o objeto que está sendo licitado, tem condições de repetir o bom desempenho no novo contrato. Em outras palavras, quem fez corretamente uma vez, tende a fazê-lo novamente.
Nas aquisições, a comprovação de capacidade técnica é assim regulado na Lei no. 8.666/1993:
Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:
[…]
II – comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;
[..]
§ 4o Nas licitações para fornecimento de bens, a comprovação de aptidão, quando for o caso, será feita através de atestados fornecidos por pessoa jurídica de direito público ou privado.
A exigência de atestados de qualificação técnica em editais de licitação constitui ato discricionário do gestor, isto é, cada edital poderá ou não conter tal exigência, não sendo, portanto, de caráter obrigatória. Costuma ser exigidos tal comprovação em contratações que envolvem um maior risco operacional e financeiro, de modo a minimizar eventuais falhas de execução, que, em empresas desprovidas de experiência no mercado, tendem a ser mais prováveis de ocorrer.
No entanto, a exigência de atestados não pode ser formulada sem balizas pelo gestor. Há limites que devem ser observados a fim de se evitar cerceamento ao caráter competitivo, bem como violação à isonomia de tratamento entre os possíveis interessados (proponentes). Nesse contexto, a Constituição da República, no comando que fixa o dever geral de licitar, aponta uma importante limitação no que se refere às exigências de qualificação técnica, a saber:
Art. 37, XXI -ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifei)
O precedente que destacamos se refere a uma licitação promovida, na modalidade Pregão Eletrônico, pelo Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (Conter), cujo objeto era o fornecimento de material para distribuição gratuita como brindes, na forma de 3.000 canetas esferográficas”, adjudicado pelo valor de R$ 18.449,99.
Uma empresa interessada no certame, interpôs recurso de representação junto ao Tribunal de Contas da União, em face da cláusula do edital que dispunha que, na fase de habilitação, o vencedor da etapa competitiva deveria apresentar, no mínimo, dois atestados compatíveis com o objeto da licitação.
A Corte Federal de Contas entendeu, na oportunidade, que tal exigência fere os limites impostos na Constituição Federal, uma vez que a imposição de que o licitante comprove ter executado objeto assemelhado ao da licitação por duas vezes, seria exigência acima do suficiente para garantia das obrigações que seriam assumidas.
Muito embora o texto do dispositivo constitucional acima deixe em branco o que seria “indispensável”, a jurisprudência do Tribunal é pacífica quanto à impossibilidade de os editais de licitação exigirem mais de um atestado para fins de qualificação técnica. O precedente em comento cita os Acórdãos no. 1.052/2012; 1.937/2003; 1.341/2006; 2.143/2007, 1.557/2009; 534/2011; 1.695/2011; 737/2012 e 1.052/2012, todos do Plenário.
O TCU admite, entretanto, exceção a essa regra de impedimento. Considera que em situações excepcionalíssimas os editais poderão promover exigência de mais de um atestado, desde que o objeto justifique tal exigência e que os motivos ensejadores estejam perfeitamente explicitados e fundamentados tecnicamente nos autos do processo.
Importa destacar que a posição do TCU em relação à impossibilidade, como regra, de se exigir mais de um atestado de qualificação técnica em editais de licitação, não pode ser confundida com os casos em que, dada a complexidade do objeto, como no caso de obras e serviços de engenharia, o edital exige comprovação de várias parcelas de execução e que, não raro, não se encontram, todas, presentes em um mesmo atestado, obrigando a empresa a apresentar vários para fins de habilitação técnica. Aliás, o TCU conta com jurisprudência pacificada de que o edital não pode exigir que todas as parcelas de maior relevância para fins de comprovação de capacitação técnico-profissional e técnico-operacional figurem em um só atestado[2]:
Quando o objeto da licitação incluir mais de um item (etapa ou parcela), devem ser aceitos atestados de capacitação técnica relativos a cada um dos itens ofertados, de forma a ampliar a competição. Exemplo: Se a licitação for de três itens, a capacitação poderá ser provada em até três atestados, mediante aceitação de somatório dos quantitativos exigidos, conforme dispuser o ato convocatório.
Tampouco pode ser confundida a limitação de número mínimo de atestados com os casos em que o edital permite a soma de atestados para que o habilitante consiga alcançar o patamar de execução anterior nos parâmetros fixados pelo edital.
Tomando como exemplo uma licitação para serviços de limpeza higiene e conservação em um hospital público de grande porte, o edital pode ter exigido que o licitante comprove capacitação técnico-profissional consistente em ter em seus quadros permanentes, na data da licitação, profissional com ART por execução de serviços em ambiente hospitalar; e, para capacitação técnico-operacional, que a empresa comprove ter executado serviços de limpeza em área interna não inferior a 50.000m2.
Para atendimento a essas exigências, pode ser que o licitante tenha de apresentar dois atestados, uma para cada tipo de comprovação. Pode ser ainda que o edital permita a soma de atestados para que o licitante alcance os 50.000m2. Em ambas as situações, não teria havido qualquer irregularidade, pois não se trata de apresentação de duas comprovações de mesmo calibre, mas sim comprovações de parcelas, que, somadas, caracterizam uma só execução anterior.
No caso concreto ora em análise, concordo que a exigência fere o princípio da competitividade e da isonomia. Afinal, o objeto nada tem de complexo, as quantidades eram diminutas, não fugindo do corriqueiro. Tem-se ainda que o mercado nesse segmento (produção de brindes) é bastante sortido de empresas do ramo pertinente e os valores envolvidos são de pequena monta, se aproximando, inclusive, do atual limite financeiro para dispensa em razão do valor (Lei no. 8.666/1993, art. 24, II).
Por fim, interessante destacar ainda que, neste caso, o TCU não decidiu pela anulação do certame a despeito do reconhecimento da ilegalidade.. Os Ministros entenderam que, a despeito de configurar exigência excessiva, a ilegalidade do edital não teria causado prejuízo efetivo aos cofres. Destacou o Relator:
[…] à luz dos princípios da racionalidade administrativa, da economia processual e de que o custo do controle não pode superar os benefícios dele decorrentes”. Em segundo lugar, porque “parte da impropriedade identificada poderia ser amenizada” com base nos princípios do formalismo moderado e da busca da verdade material, uma vez que a empresa vencedora do certame, apesar de “ter entregado atestados incorretos em um primeiro momento, ela posteriormente demonstrou, por meio da apresentação de novos documentos, que possuía a capacidade de fornecer os itens licitados.
Portanto, para o edital exigir atestados de qualificação técnica, deve fazê-lo com comedimento, de modo que tal exigência não supere o indispensável à garantia do cumprimento das obrigações.
Especificamente, exigir que o licitante apresente “no mínimo dois atestados”, ou seja, que comprove ter realizado, ao menos, por duas vezes o mesmo objeto, configura exigência excessiva e contrária aos ditames constitucionais, podendo levar à anulação de todo o certame, o que somente não ocorreu no caso aqui examinado, por se tratar de aquisição de pequena monta.