Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa: Um Paralelo com a Atuação do Agente Público nos Processos Licitatórios e o Artigo 28 da LINDB 

1. Introdução: 

A discricionariedade administrativa é um conceito central no Direito Administrativo e na atuação dos agentes públicos. Ela se refere à margem de liberdade que a administração tem para decidir, dentro dos limites da lei, qual a melhor solução para satisfazer o interesse público. No entanto, essa liberdade não é absoluta e deve ser exercida com observância dos princípios constitucionais, como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além disso, o controle judicial da discricionariedade administrativa é uma ferramenta importante para evitar abusos e arbitrariedades. 

Este artigo explora o conceito de discricionariedade administrativa, a forma como o controle judicial é exercido atualmente e como ele se relaciona com a atuação dos agentes públicos, especialmente no contexto dos processos de contratação pública, à luz dos artigos 20 a 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). A LINDB trouxe diretrizes fundamentais para a responsabilização dos agentes públicos, ao mesmo tempo em que proporciona maior segurança jurídica na tomada de decisões, buscando equilibrar a discricionariedade administrativa com a proteção contra a responsabilização desproporcional, promovendo decisões mais eficientes e fundamentadas. 

2. Discricionariedade Administrativa: Definição e Evolução 

Historicamente, a discricionariedade administrativa foi entendida como um espaço de autonomia dado ao gestor público para tomar decisões com base nas circunstâncias práticas e no interesse público. No início do século XIX, na França, os chamados “atos de governo” e “atos políticos” eram considerados imunes ao controle judicial, pois se acreditava que esses atos refletiam diretamente a soberania do Estado. Apenas os atos que violavam direitos individuais eram submetidos à revisão judicial, enquanto os que envolviam interesses públicos mais amplos ficavam fora do alcance desse controle1

Com o tempo, essa concepção evoluiu. A partir do fortalecimento do Estado de Direito e da necessidade de submeter a atuação estatal a regras mais rígidas, passou-se a admitir que os atos discricionários da administração pública também deveriam ser controlados, ainda que de forma limitada. O controle judicial, portanto, passou a verificar se o gestor público agiu dentro dos limites da legalidade e dos princípios constitucionais, como a razoabilidade, a proporcionalidade e a moralidade, evitando que a discricionariedade fosse confundida com arbitrariedade. 

A evolução do controle judicial da discricionariedade no Brasil seguiu a trajetória do desenvolvimento do próprio Direito Administrativo. Durante o século XX, especialmente com a consolidação do Estado Social de Direito2, a doutrina passou a distinguir entre discricionariedade e arbitrariedade. Celso Antônio Bandeira de Mello3, um dos principais doutrinadores brasileiros, reforça que a discricionariedade existe quando o legislador confere ao administrador a possibilidade de escolher entre mais de uma solução válida para atender ao interesse público. Essa escolha, contudo, deve sempre ser fundamentada e orientada pelos princípios constitucionais. 

A jurisprudência também passou a adotar uma postura mais rigorosa em relação ao controle dos atos discricionários. Embora o Judiciário não possa substituir o mérito administrativo, ou seja, não possa escolher em lugar do administrador, ele tem o dever de verificar se a escolha foi realizada dentro dos limites da legalidade, moralidade e razoabilidade. Isso significa que atos administrativos que apresentem desvio de finalidade, falta de motivação adequada ou que violem direitos fundamentais podem ser invalidados pelo Judiciário. 

A inclusão dos artigos 20 a 27 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)4 trouxe uma nova perspectiva para esse controle, ao estabelecer regras mais claras para a responsabilização do agente público e ao reforçar a necessidade de considerar as consequências práticas das decisões, tanto na esfera administrativa quanto judicial. 

3. A Discricionariedade nos Processos de Contratação Pública 

A discricionariedade administrativa é particularmente relevante no contexto dos processos de contratação pública. A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) estabelece um conjunto de procedimentos destinados a garantir a transparência, a isonomia e a competitividade nas contratações públicas. No entanto, dentro desse marco regulatório, os agentes públicos têm uma margem de discricionariedade para tomar decisões sobre a escolha de fornecedores, avaliação de propostas e celebração de contratos. 

A discricionariedade nos processos licitatórios se manifesta, por exemplo, quando o administrador deve optar pela proposta que ofereça o melhor custo-benefício ou ao avaliar se uma empresa atende aos critérios de qualificação técnica e econômica. A fase de planejamento das contratações é o momento ideal para o exercício dessa discricionariedade, permitindo ao agente público fazer escolhas alinhadas ao interesse público. Nessas decisões, é fundamental que o gestor se baseie em um juízo de valor pautado pela razoabilidade e proporcionalidade, de modo a selecionar a alternativa que melhor atenda às necessidades específicas do ente público que representa. Essa margem de discricionariedade possibilita uma adaptação das escolhas às particularidades do caso concreto, sempre com a finalidade de promover a eficiência e a eficácia da Administração Pública. 

No entanto, a discricionariedade administrativa exercida nesses processos é limitada pela necessidade de fundamentação adequada. Toda decisão deve ser motivada, isto é, deve ser acompanhada de uma justificativa que demonstre que a escolha atende ao interesse público e aos princípios que regem a licitação. A fundamentação é um dos principais mecanismos de controle, uma vez que permite verificar a legalidade da decisão e, em caso de abuso ou desvio de finalidade, possibilita o controle judicial. 

4. O Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa 

O controle judicial da discricionariedade administrativa é um dos principais mecanismos para garantir que o poder público não ultrapasse os limites da legalidade. Contudo, é importante destacar que o Judiciário não pode substituir o mérito administrativo, ou seja, não pode interferir na decisão propriamente dita, desde que esta tenha sido tomada dentro dos parâmetros legais e dos princípios constitucionais. O controle judicial deve se limitar à análise da legalidade do ato administrativo, verificando se houve observância dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e motivação. 

Em relação ao controle da discricionariedade nos processos de contratação pública, o Judiciário pode, por exemplo, verificar se a decisão foi tomada de acordo com os critérios estabelecidos no edital e se o processo licitatório foi conduzido de forma transparente e competitiva. O Judiciário também pode intervir em casos de desvio de finalidade, como quando uma licitação é direcionada para beneficiar uma empresa específica, em detrimento da livre concorrência. 

A doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que o controle judicial da discricionariedade administrativa não pode adentrar no mérito, exceto em casos excepcionais de arbitrariedade, abuso de poder ou quando houver flagrante violação de direitos. Portanto, o Judiciário atua como um garantidor da legalidade dos atos administrativos, sem usurpar a função administrativa propriamente dita. 

5. O Artigo 28 da LINDB: Responsabilidade do Agente Público 

A LINDB, em seu artigo 28, oferece uma proteção importante ao agente público, ao estabelecer que ele só será responsabilizado por suas decisões em casos de dolo ou erro grosseiro. Esse dispositivo tem como objetivo evitar a “paralisia decisória” — fenômeno em que os gestores públicos, por medo de serem punidos, evitam tomar decisões necessárias, mesmo que sejam vantajosas para o interesse público. 

Esse fenômeno é popularmente conhecido como “apagão das canetas”5. Ele ocorre quando os agentes públicos deixam de tomar decisões que envolvem riscos de responsabilização pessoal, temendo ações judiciais ou sanções administrativas, mesmo quando essas decisões são fundamentais para a continuidade da atividade pública. O “apagão das canetas” cria uma insegurança na gestão pública, pois os agentes, ao não assumirem riscos, retardam ou bloqueiam a implementação de políticas públicas, projetos e contratações. 

O artigo 28 da LINDB busca mitigar esse cenário ao prever que o agente público só será responsabilizado em casos de dolo ou erro grosseiro: 

“O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” 

O conceito de “erro grosseiro” é entendido como uma “grave inobservância do dever de cuidado e zelo com a coisa pública.” O TCU no Acórdão 63/2023 equipara o erro grosseiro à culpa grave, definida por uma conduta imprudente ou negligente, que se distancia do comportamento esperado de um administrador diligente, o que poderia ser percebido como erro por qualquer gestor médio em condições normais. Esse entendimento garante que a responsabilização dos agentes públicos, especialmente em decisões técnicas, se fundamente na presença de dolo ou erro grosseiro, protegendo-os de sanções indevidas, desde que ajam com a devida diligência e dentro dos limites da lei6

Além disso, os artigos 20 a 27 da LINDB reforçam a necessidade de considerar as consequências práticas das decisões, especialmente no que diz respeito à sua invalidação. O artigo 20 da LINDB exige que qualquer decisão que anule ou invalide um ato administrativo seja tomada considerando os efeitos práticos dessa medida, evitando prejuízos desproporcionais aos envolvidos. 

Em processos de contratação, a aplicação dos artigos 20 a 28 da LINDB é de grande importância, pois garante ao agente público maior segurança jurídica para exercer sua discricionariedade. Ao mesmo tempo, o dispositivo assegura que as decisões sejam tomadas com base em critérios técnicos e legais, protegendo o interesse público e a boa governança. O equilíbrio entre a discricionariedade e a responsabilidade previsto no artigo 28 da LINDB fortalece a Administração Pública, evitando tanto a paralisia decisória quanto os abusos de poder. 

6. Conclusão 

O controle judicial da discricionariedade administrativa, em especial nos processos de contratação pública, é um instrumento necessário para garantir a legalidade, a eficiência e a moralidade na gestão dos recursos públicos. A discricionariedade administrativa, embora essencial para a flexibilidade da administração, deve ser exercida dentro dos limites da lei e dos princípios constitucionais. O artigo 28 da LINDB introduz uma proteção importante para o agente público, ao limitar sua responsabilização apenas aos casos de dolo ou erro grosseiro, oferecendo maior segurança jurídica e fomentando a eficiência decisória. 

Ao mesmo tempo, o controle judicial tem o papel de assegurar que a discricionariedade não seja utilizada de maneira arbitrária ou abusiva. A decisão administrativa, ainda que discricionária, deve ser sempre motivada e fundamentada, para que o Judiciário possa verificar sua conformidade com a lei. 

Dessa forma, o equilíbrio entre discricionariedade, controle judicial e responsabilização do agente público é um dos pilares para uma administração pública eficiente, transparente e comprometida com o interesse público. O exercício adequado da discricionariedade, aliado a um controle judicial moderado e à proteção proporcionada pelo artigo 28 da LINDB, forma uma estrutura robusta que promove a boa governança e a confiança nas decisões administrativas. 

​​Referências Bibliográficas: 

​BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. 

​ DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 3ªed. 2012. 

​PIRES. Luís Manuel Fonseca. Controle Judicial da Discricionariedade Administrativa. Elsevier.  

​ 

​DOS SANTOS, Rodrigo Valgas. Direito Administrativo do Medo. São Paulo: Thomson Reuters. 2020. 

​ 

​BRASIL. Lei 13.655, de 26 de abril de 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13655.htm. Acesso em Out 24. 

Roberta Luanda Ambrósio

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