CREDENCIAMENTO: APONTAMENTOS ACERCA DAS NOVIDADES ESTABELECIDAS PELA LEI 14.133/21.

Entre os procedimentos auxiliares das licitações previstos no art. 78 da Lei 14.133/21, idealizados com o objetivo de melhorarem a eficácia e eficiência dos certames, encontramos o credenciamento, cujo art. 6º, inc. XLIII assim o define “processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados”. Tal definição ainda que imprecisa, “já comporta a concepção de que por tal instrumento a Administração Pública tem a seu dispor  um número indefinido de contratados.”[1]

Marçal Justen Filho conceitua o credenciamento como “ato administrativo unilateral, emitido em virtude do reconhecimento do preenchimento de requisitos predeterminados por sujeitos interessados em futura contratação, a ser pactuada em condições predeterminadas e que independem de uma escolha subjetiva por parte da Administração.” O autor ressalta também que não se deve confundir o credenciamento com o contrato administrativo, pois, como dito, configura-se ato administrativo unilateral prévio à dita contratação.

o sujeito que obtém o credenciamento ainda não foi contratado. A contratação é um ato jurídico bilateral, que se aperfeiçoa em momento posterior ao credenciamento. O credenciamento resulta de dois atos jurídicos unilaterais. Um deles é o requerimento de credenciamento apresentado pelo particular. O outro é o ato administrativo formal, por meio do qual a Administração defere propriamente o credenciamento, depois de constatar o preenchimento dos requisitos exigidos.[2]

A partir da definição legal e conceitual acima, podemos pontuar ao menos três novidades gerais: (i) a primeira delas, é a de que efetivamente houve um avanço legislativo acerca das regras gerais que devem orientar o credenciamento, se comparado com o texto da Lei 8.666/93 que nada versava sobre; (ii) uma segunda novidade é a de que o novo texto legal expressamente reconhece que o credenciamento como hipótese de inviabilidade de competição (art. 74, inc. IV) e como um procedimento auxiliar da licitação, que precede à execução do objeto; (iii) a terceira e última novidade reside no fato que o uso do credenciamento não se restringe à contratação de prestadores de serviços, pois é também seu objetivo a contratação de fornecedores de bens.[3] Percebemos, então, que a nova lei ampliou o alcance do uso do procedimento.

No que se refere às hipóteses de aplicabilidade do credenciamento, os incisos I a III do at. 79 fixaram três possibilidades de contratação, respectivamente: (i) contratação paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas; (ii) contração com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação; (iii) contração em mercados fluidos: caso em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação inviabiliza a seleção de agente por meio de processo de licitação.

De acordo com o Ministro Benjamim Zymler do TCU, em sua declaração de voto no recente Acordão 533/22, as duas primeiras hipóteses de cabimento estão “associadas a uma visão tradicional de credenciamento: expansão horizontal do número de credenciados”, enquanto a terceira, qual seja, a contratação em mercados de preços fluidos, foi considerada da visão anterior, pois “abre a possibilidade de contratação de bens em mercados fluidos, o que permite antever a utilização de um sistema de e-marketplace público formado por fornecedores credenciados”. Assim, neste caso, a inexigibilidade decorre “da dinâmica existente em mercados concorrenciais com oscilação acentuada de preços em razão da lei da oferta e da procura.” Por conta disso, o credenciamento trazido pela Lei 14.133/2021 possui “uma dimensão mais ampla do que aquela concebida pela jurisprudência e pela prática administrativa”.[4]

De acordo com a doutrina, as três hipóteses legais de cabimento têm como elemento comum “a ineficácia do processo licitatório, porque escolher um único particular não resolve o problema. Trata-se, (…) de uma diretriz importantíssima a nortear o desenho do credenciamento caso a caso, o qual não poderá conter elementos que levem a uma situação restritiva de contratação de credenciados ou de competição entre eles.”[5] Nesse sentido, também foi a declaração de voto do Ministro Anastasia no mencionado Acórdão 533/22 do Plenário do TCU:

3. O credenciamento tradicional é um processo administrativo de chamamento de interessados quando, em vez de se ter um vitorioso na licitação – aquele que assinará o contrato -, a Administração se vê diante de uma situação concreta em que ela pode “dividir um bolo em fatias” e distribuí-las de forma objetiva. Logo, não há competição porque todos, de algum modo, serão contratados para executar uma parte do objeto.[6]

Gabriela Pércio nos traz exemplos de cada uma das hipóteses de cabimento mencionadas nos incisos do art. 79, e ainda registra que a Lei não estabeleceu objeções para a utilização do credenciamento relacionadas à natureza ou à complexidade do objeto:

“Na hipótese de contratações paralelas e não excludentes, a situação que levará ao credenciamento envolverá, entre outros, significativo volume de demanda a ser atendida por uma multiplicidade de particulares, indefinições relacionadas ao objeto e ao momento de execução ou, ainda, execução em locais distintos. Assim ocorre, por exemplo, com o credenciamento de oficinas mecânicas e de tradutores. (…). A hipótese de contratações com seleção a critério de terceiros, em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação, é uma hipótese típica de credenciamento. Esta é, há muito tempo, a forma de contratação de médicos para atuarem junto ao Sistema Único de Saúde – SUS, por exemplo. O credenciamento para contratações em mercados fluidos, caracterizados pela flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação, veio para solucionar dificuldades específicas na contratação de objetos que não comportam condições padronizadas de execução e preço,  como passagens aéreas e combustíveis.[7] (grifos da autora)

O procedimento do credenciamento aguarda regulamentação, conforme inferimos do § único do art. 79, mas ainda assim os incisos do dispositivo já nos oferecem algumas diretrizes de ordem mais geral.

No que se refere ao edital, a administração deve divulgar e manter à disposição do público, em sítio eletrônico oficial, de modo a permitir o cadastramento permanente de novos interessados. No caso de contratação paralela e não excludente, quando o objeto não permitir a contratação imediata e simultânea de todos os credenciados, devem ser adotados critérios objetivos de distribuição da demanda (art. 79, § único, incs. I e II). Acerca do critério de distribuição de demandas, frisamos que este “não implica em garantia de contratação a todos os credenciados, mas apenas, em garantia de tratamento isonômico entre eles”. [8]

O edital de chamamento de interessados também deve prever as condições padronizadas de contratação e, nas hipóteses de contratação paralela e não excludente e de contratação com seleção a critério de terceiros, o edital ainda deve definir o valor da contratação (art. 79, § único, incs. III e IV). Conforme o inc. V do § único do art. 79 não deve ser permitido ao credenciado transferir para terceiros a execução demandada sem autorização expressa da Administração. Além disso, o edital deve admitir denúncia por qualquer das partes nos prazos fixados no edital, segundo inferimos do art. 79, § único, inc. VI. No que refere ao descredenciamento, Marçal Justen Filho aduz que os requisitos e o procedimento devem ser tratados na norma que deve regulamentar o dispositivo, mas, já alerta que “a extinção do credenciamento não se confunde com a extinção do contrato. Como regra, os contratos em vigor não serão afetados pela extinção do credenciamento”. [9]

De outra sorte, informamos que até o presente momento, o TCU já se manifestou em algumas ocasiões sobre o credenciamento à luz da nova legislação. No Acordão 2.977/21 o Plenário do TCU enfrentou a questão do cabimento do credenciamento pelas entidades integrantes do Sistema S[10], e mais recentemente no Acórdão 533/22 decidiu ser cabível o credenciamento para contratação de advogados por estatais (Lei 13.303/16), devendo a Lei 14.133/21 servir de norte interpretativo:

15. Apesar de a Lei 14.133/2021 não se aplicar às sociedades de economia mista, regidas pela Lei 13.303/2006, é razoável admitir que as novas regras de flexibilização e busca de eficiência dos processos seletivos para contratações públicas, ao ser aprovadas pelo Poder Legislativo para aplicação no âmbito da administração direta, autárquica e fundacional – de rito administrativo mais rigoroso -, podem, e devem, ser estendidas, por analogia, às sociedades de economia mista, que, sujeitas ao regime de mercado concorrencial, exigem, com mais razão, instrumentos mais flexíveis e eficientes de contratação. Assim, embora o credenciamento não esteja previsto expressamente na Lei 13.303/2006, é razoável admitir, na espécie, a aplicação analógica das regras previstas nos arts. 6º, XLIII, e 79, da Lei 14.133/2021 às empresas estatais.[11]

Nesta decisão, ainda, o Ministro Benjamim Zymler em sua declaração de voto fez uma retomada da evolução do entendimento do TCU acerca do instituto, deixando assente que:

18. Como já dito, o TCU já tinha o entendimento de que, embora não estivesse previsto nos incisos do art. 25 da Lei 8.666/1993, o credenciamento era admitido “como hipótese de inexigibilidade inserida no caput do referido dispositivo legal, porquanto a inviabilidade de competição configura-se pelo fato de a Administração dispor-se a contratar todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições por ela estabelecidas, não havendo, portanto, relação de exclusão. Para a regularidade da contratação direta, é indispensável a garantia da igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido”. (…) 20. Fica explícito, pois, que a prática administrativa e o TCU, na sua jurisprudência, elegeram o credenciamento como uma das hipóteses de inexigibilidade de licitação baseadas no caput do art. 25 da Lei 8.666/1993 (esse caput trazia exemplos, mas não impedia que outras hipóteses de inexigibilidade pudessem ser utilizadas pelo gestor) 21. Nesse sentido, é importante ressaltar a tendência do TCU em respaldar soluções inovadoras eficazes, como foi o caso dos diversos credenciamentos realizados. E a importância das deliberações desta Corte de Contas, abonando a utilização desse instrumento, é refletida justamente em sua positivação na lei.[12]

Em suma, o objetivo deste texto foi apresentar notas gerais da doutrina e da jurisprudência do TCU acerca do credenciamento, destacando alguns aspectos relativos à aplicabilidade prática do procedimento auxiliar disciplinado no art. 79 da Lei 14.133/21.

Referências:

ARAUJO, Danielle Regina Wobeto de. Sistema s. Inexigibilidade de licitação. Credenciamento. Legitimidade. Requisitos. In: RJML 62, p. 55-59.  Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=33531c5a9f0c6daef5805dff7243d155&busca=.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2021. (ebook).

PÉRCIO, Gabriela. Lei 14.133/21: um olhar pragmático sobre os Procedimentos Auxiliares. In. Observatório da Nova Lei de Licitaçõeshttps://www.novaleilicitacao.com.br/2022/06/17/lei-14-133-21-um-olhar-pragmatico-sobre-os-procedimentos-auxiliares/. Acesso em 19.07.22.

TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações públicas comentadas. 12 ed. São Paulo: IusPodivum, 2021.

 


[1]`PÉRCIO, Gabriela. Lei 14.133/21: um olhar pragmático sobre os Procedimentos Auxiliares. In. Observatório da Nova Lei de Licitaçõeshttps://www.novaleilicitacao.com.br/2022/06/17/lei-14-133-21-um-olhar-pragmatico-sobre-os-procedimentos-auxiliares/. Acesso em 15.06.22.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal.  Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2021. (ebook). RL-1.25.

[3] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações públicas comentadas. 12 ed. São Paulo: IusPodivum, 2021. p. 454.

[4] TCU. Ac. 533/22 do Plenário.

[5] PÉRCIO, Op. Cit.

[6] TCU. Ac. 533/22 do Plenário. Min. Relator Antonio Anastasia.

[7] PÉRCIO, Op. Cit.

[8] PÉRCIO, Op. Cit. No mesmo sentido, com amparo do art. 6º, inc. XLIII e art. 79 da Lei 14.133/21, é o voto do Min. Relator Antonio Anastasia no Ac. 533/22 do Plenário do TCU: 14. “A par disso, o posterior advento do novo Estatuto de Licitações (Lei 14.133/2021) , ao prever expressamente o credenciamento como forma de seleção de fornecedores, nos respectivos arts. 6º e 79, não impôs a exigência de contratação de os credenciados  (…)”.

[9] JUSTEN FILHO, Marçal.  Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2021. (ebook). RL-1.25.

[10] ARAUJO, Danielle Regina Wobeto de. Sistema s. Inexigibilidade de licitação. Credenciamento. Legitimidade. Requisitos. RJML 62, p. 55-59.  Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=33531c5a9f0c6daef5805dff7243d155&busca=. Acesso em 15.06.22.

[11] TCU. Ac. 533/22 do Plenário.

[12] TCU. Ac. 533/22 do Plenário.

Danielle Regina Wobeto de Araujo

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