ENSAIOS SOBRE O PROJETO DE LEI NO. 4.253/2020: UM OLHAR SOBRE AS INOVAÇÕES QUE SERÃO TRAZIDAS PELA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

Introdução
 

Foi com muita ansiedade que se aguardou a tão esperada aprovação do Projeto de Lei no. 4.253/2020, que traz o texto da nova lei de licitações e contratos da Administração Pública.

No entanto, tal expectativa foi, em parte, frustrada, na medida em que a lei, após sofrer a sanção presidencial e publicação na imprensa oficial, somente será obrigatória após decorridos 2 anos. Esse prazo tem sido chamados por alguns autores de vacatio legis. Mas, para alguns, considerando o texto normativo, não foi fixada a vacatio., pois está fixado que a nova lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Assim, para melhor explicar o desdobramento jurídico, antes de adentrar na norma, passo a uma breve explanação sobre o instituto da vacatio legis

Vacatio Legis: conceito e espécies

Nomeia-se de vacatio legis o período dentro do qual uma lei leva para entrar em vigor após a sua publicação.

Tal período costuma ser necessário, quanto mais para normas complexas, a fim de permitir a adaptação da sociedade, nela incluídas as instituições públicas e privadas, aos novos comandos, bem como da implementação dos diversos mecanismos de coercitividade para o cumprimento pelo poder de império do Estado. Durante esse lapso temporal, à evidência, vigorará, ainda, a lei velha.

O sistema adotado no Brasil é chamado de Sistema simultâneo ou sincrônico. De acordo com esse sistema, a lei sempre entra em vigor na mesma data em todo o território nacional. Há, portanto, uma sincronia na entrada em vigor da lei; o fundamento desse sistema é a segurança jurídica. Expirado o prazo da vacatio, a nova lei entra imediatamente em vigor em todo o território nacional. Vigora, no Brasil, desde 1942.

Sobre o sistema pátrio de vacatio, Esclarece Fábio Vieira de Figueiredo[1] que:

Desse modo, temos quatro possibilidades distintas: a) lei com período de vacatio legis ordinário, b) lei com vacatio legis expressa, c) lei com data de entrada em vigor expressa e, por fim, d) lei que exclui período de vacatio legis. As leis com período de vacatio legis ordinário possuem duas ordens distintas de vacatio legis: quarenta e cinco dias como regra geral para a lei que entra em vigor no território brasileiro e três meses para leis brasileiras que entrem em vigor em território estrangeiro; As leis com vacatio legis expressas são aquelas em que o legislador faz constar expressamente qual o período de vacatio legis para a entrada em vigor da lei, deixando de lado o prazo geral de quarenta e cinco dias em território nacional ou três meses em território estrangeiro; As leis com data de entrada em vigor expressas são aquelas em que o legislador determina a data de entrada em vigor da lei, não deixando ao critério ordinário, nem mesmo fixando prazo para entrada em vigor, apenas determinando de maneira última a data precisa de entrada em vigor da lei. Podem existir, ainda, leis que excluem o período de vacatio legis e, nesses casos, ocorre a imediata entrada em vigor da lei na data de sua publicação. Os motivos que levam o legislador a optar por uma das quatro possibilidades são de conveniência e oportunidade, levando-se em consideração a repercussão atingida por aquela certa e determinada lei. Assim é que seria absolutamente destemperado por parte do legislador dar a uma lei como o Código Civil, por exemplo, pela importância e, portanto, grau de repercussão social que atinge, o prazo de vacatio legis ordinário de quarenta e cinco dias tendo sido conferido à respectiva lei o prazo de vacatio legis de um ano.

Entendido o instituto da vacatio legis, vejamos como se encontra descrita no PL 4.253/2020:

Art. 190. Ficam revogados:

I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;

II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.

Art. 191. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Como visto, teremos uma situação pouco ortodoxa e essa é a razão para a discrepância ente os autores. Ao mesmo tempo que a nova lei entrará em vigor na data da sua publicação, as leis licitatórias anteriores somente serão revogadas após decorridos 2 (dois anos).

Como regra, uma lei é produzida para que tenha vigência até que outra expressamente a revogue, desde que não tenha sido publicada com indicação de vigência temporária. É nesse sentido que o artigo 2º da LINDB dispõe:

Art. 2° Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

A revogação de uma lei pode ser expressa ou tácita, nos casos em que uma nova lei entrar em conflito com aquela já em vigor. Para situações como essa, tem-se a redação do parágrafo 1º do dispositivo legal supra transcrito:

§ 1° A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Significa que, mesmo não tendo sido declarada revogada de forma expressa, se a lei nova regular por completo a matéria da anterior, esta perde imediatamente a sua vigência.

No caso do PL 4.253/2020, não se pode falar em vacatio na medida em que a nova lei estará vigente desde a data da sua publicação. Mas ao mesmo tempo, a forma como se acha disposta a conjugação das duas normas não encontra amparo legal na LINDB. Pois cria uma lei nova; dá-lhe vigência imediata com a sua publicação, mas mantém em vigor normas que estão completamente reguladas nessa nova lei.

Isto porque, nada obstante entrar em vigor na data da sua publicação, a mesma não será de aplicação obrigatória pelos destinatários, permanecendo vigente o sistema normativo de licitações e contratos anterior.

Diferente foi o caso das normas licitatórias instituídas pela Lei 13.303/2016, para as sociedades de economia mista e empresas públicas. No referido diploma, houve a revogação do art. 67 da Lei 9.478/1997, fundamento de validade do Decreto 2.745/1998, que aprovou o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras, muito embora, o art. 91 da L. 13.303/2016 tenha fixado prazo de 24 meses para que as estatais se adaptassem à nova lei. No caso da Lei das Estatais, não houve vacatio.

Poder-se-ia argumentar que se trata de ultratividade da lei anterior.

Por ultratividade, entende-se pela hipótese de ser possível aplicar lei já revogada. Tal instituto guarda relação com o princípio da aplicação mais benéfica ao réu da lei penal. No Direito Civil, é bastante aplicada no Direito das Sucessões. Também se vê no direito Tributário. A Súmula 112 do STF firmou entendimento segundo o qual “o imposto de transmissão causa mortis é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura da sucessão”.

A teoria da ultratividade da lei é a hipótese porque passou a PETROBRÁS, pois, houve a revogação do art. 67 da Lei no. 9.478/1997, o que causou a revogação do seu Regulamento Simplificado. Mas, como o art. 91 da Lei no. 13.303/2016concedeu prazo de 24 meses para adaptação, o art. 67 da Lei no. 9.478/1997, e, consequentemente, o Regulamento Simplificado se mantiveram aplicáveis até que o escoamento daquele prazo.

Esse, definitivamente, não é o caso previsto no PL no. 4.253/2020, pois a Lei no. 8.666/93; a Lei nº 10.520/2002 e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462/2011 não serão revogados. Permanecerão vigentes pelo mencionado período.

Assim, considerando que a nova lei será vigente com a sua publicação, e tratará inteiramente a lei anterior, nos termos do §1º, do art. 2º da LINDB, o entendimento correto é que o PL 4.253/2020, no seu art. 190, II, se constitui em um dispositivo que cria uma norma com vigência temporária, típica de disposição transitória. Na prática, a lei nova, mesmo que não de forma expressa, irá revogar as leis que o citado dispositivo menciona, sendo certo que o art. 190, II do referido Projeto de Lei, estenderá suas vigências por prazo determinado.

Essa é uma hipótese jurídica consubstanciada na discricionariedade do Gestor escolher qual a norma regulará o ato administrativo é sui generis no Direito Administrativo, muito embora seja até comum no Direito civil, quando a norma estabelece uma condição, mas faculta as partes disporem de forma diversa. Á guisa de exemplo (são inúmeros), cite-se o art. 22, VIII da Lei no. 8.245/1991 (Lei do Inquilinato), dispõe que o locador é obrigado a “pagar os impostos e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra fogo, que incidam ou venham a incidir sobre o imóvel”. Mas conclui dispondo que essa obrigação pode ser voltada ao locatário, se houver “disposição expressa em contrário no contrato”. Em outras palavras, a lei fixa uma obrigação, mas permitem às partes disporem de forma diversa.

Portanto, encerrando o debate sobre a existência ou não de vacatio legis para a nova lei de licitações, aduzimos de forma negativa, na medida em que a lei nova entra em vigor na data da sua publicação. O que está sendo proposto é um dispositivo normativo que estende a vigência das leis anteriores provisoriamente, pelo período de dois anos.
 

Aplicação da nova norma de forma híbrida

Prosseguindo, conforme dito acima, o texto aprovado possibilitou que órgãos e entidades da Administração Pública excetuem a vacatio, autorizando a sua aplicação imediata, senão vejamos:

§ 2º Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 190, a Administração poderá optar por licitar de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.

§ 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 190 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência.

Vê-se que os parágrafos acima transcritos indicam que o novo sistema normativo poderá ser utilizado a critério da Administração. Tratar-se-á de uma decisão discricionária e a cada caso concreto. O órgão poderá adotar o novel sistema em um determinado edital, e, em outro, utilizar o sistema anterior (que ainda estará vigente por dois anos).

A ideia é boa, mas, a meu particular aviso, desnecessária.

Boa porque comete tempo de adaptação e testes da utilização dos novos institutos. O órgão poderá, por exemplo, implementar, desde a data da publicação, a modalidade de diálogo competitivo, que traz importante e inovadora forma de contratar objetos mais complexos e vultosos; em outro edital, para aquisição de um bem comum, manterá adoção da Lei 10.520/2002. Também poderá adotar os procedimentos auxiliares da licitação, como por exemplo, a pré-qualificação e o credenciamento.

Mas, considerando a cultura das instituições públicas no Brasil, e até mesmo o perfil do brasileiro, no geral, esse prazo, que deveria ser utilizado para ensaios e testes, com a implementação aos poucos das novas normas e capacitar os servidores, servirá apenas para adiar a modernização dos sistemas de contratações públicas, ao menos, na maioria dos órgãos.

Vale lembrar que contamos com mais de 5.700 municípios e, a grande maioria tem parcos recursos técnicos e de mão de obra qualificada. Se usar um sistema já dá trabalho e não raro as licitações não geram resultado útil, que o dirá usar dois sistemas simultaneamente.

Conclusões

A nova lei de licitações, quando sancionada, entrará em vigor imediatamente, porém, as normas relativas ao sistema licitatório permanecerão vigentes por ainda 2 (dois) anos.

Os órgãos da Administração Pública poderão, desde a data da publicação da nova lei, adotar o novo sistema, a cada caso concreto, devendo o edital explicitar qual norma regerá o prélio licitatório.

Não será possível adotar as normas combinadas.

Não há, portanto, o estabelecimento de vacatio legis, mas sim, um dispositivo (art. 190, II) que estende, por tempo determinado, a vigência da lei anterior.

_________________

[1] Manual de Direito Civil, 2ª. ed.. Jus Pudivm, 2020, págs 48 e 49.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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