ERRO GROSSEIRO NAS CONTRATAÇÕES DO SISTEMA “S”

Um dos grandes temores dos colaboradores que atuam nos processos de contratações é a responsabilização pelos atos praticados, ou mesmo, por eventual omissão. No processo de contratação pública, desde a fase de planejamento até o recebimento definitivo do objeto, há condutas ou atos omissivos que podem ensejar a responsabilização do agente.

Saliente-se que, no sistema jurídico brasileiro, há independência entre as instâncias civil, penal e administrativa, de sorte que uma mesma conduta pode acarretar a responsabilização nas três esferas e pode decorrer de conduta dolosa ou culposa.

Dolo, segundo Cezar Roberto Bitencourt é “a consciência e a vontade de realização da conduta descrita em um tipo penal, ou, na expressão de Welzel, ‘dolo, em sentido técnico penal, é somente a vontade de ação orientada à realização do tipo de um delito”.[1] Infere-se que no dolo há a intenção do agente de realizar determinada conduta com consciência do resultado ilegal ou antieconômico no processo de contratação pública.

Já a culpa “é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, mas objetivamente previsível”. A culpa pode decorrer de negligência, imprudência ou imperícia, conforme explica, mais uma vez, Cezar Bitencourt:

“Imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou perigosa e tem caráter comissivo. Conduta imprudente é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação do agente.

Negligência é a displicência no agir, a falta de precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar as cautelas necessárias, não o faz. É a imprevisão passiva, o desleixo, a inação. É o não fazer o que deveria ser feito antes da ação descuidada.

Imperícia é a falta de capacidade, de aptidão, despreparo ou insuficiência de conhecimento técnico par ao exercício de arte, profissão ou ofício.[2]

Cumpre, para os objetivos deste artigo, analisar a responsabilização por culpa[3], principalmente em face das alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. Com efeito, o art. 28, da referida Lei, prescreve que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Já de plano, percebe-se que a norma não faz qualquer menção à culpa, mas apenas a dolo ou erro grosseiro.

As alterações promovidas na LINDB têm o claro intuito de conferir maior segurança jurídica aos agentes e evitar abusos no controle exercido pelos órgãos em relação aos processos de contratação, pois não é raro, infelizmente, a responsabilização decorrer pura e simplesmente de divergências acerca de um dispositivo legal ou mesmo por destoar da opinião pessoal do julgador.

Nesse sentido, é importante diferenciar culpa de erro, conforme bem pondera José Anacleto Abduch Santos:

“À prima facie, se poderia argumentar que o erro seria categoria subsumida na noção de culpa em sentido estrito, ou seja, negligente, imprudente ou imperita. Contudo tal não se revela juridicamente correto. Culpa em sentido estrito se caracteriza pela falta do dever de cuidado objetivo.

Porém, o erro é uma categoria jurídica independente. A conduta maculada pelo erro não necessariamente será originária de falta de cuidado objetivo. Não necessariamente será imprudente, imperita ou negligente, mas aquela que se dá por uma falsa ou incorreta representação da realidade que opera, ou pode operar efeitos significativos no plano da manifestação da vontade”[4]. (grifou-se)

Do exposto, conclui-se que a conduta culposa decorre da falta de dever de cuidado, enquanto erro está relacionado à falsa percepção da realidade. Segundo essa distinção, portanto, é possível a prática de ato culposo sem que tenha havido erro, assim como erro sem os elementos da culpa – negligência, imprudência ou imperícia. Ora, o agente pode ter atuado de maneira diligente e cautelosa, mas a partir de uma falsa percepção da realidade, ter dirigido sua conduta com erro.

Dessa feita, sempre foi comum na doutrina clássica a distinção entre culpa e erro. O advento da Lei nº. 13.655/18, que promoveu modificações na LINDB, porém, acabou por qualificar o erro grosseiro como uma espécie de culpa qualificada, ou seja, a culpa grave, conforme destaca José Anacleto Abduch Santos:

“O erro grosseiro de que trata a Lei é caracterizado pela conduta culposa praticada com grave negligência, grave imprudência ou grave imperícia. Trata-se, pois, em que pese a designação de “erro” na norma legal, de conduta maculada pela culpa grave. Assim, o erro grosseiro de que trata a Lei é figura jurídica relativa à culpa qualificada pela gravidade da negligência, da imprudência ou da imperícia”[5].

Não é qualquer erro, portanto, que deve levar à responsabilização do agente. Ora, no exercício da função pública, é comum e até mesmo esperado do agente o cometimento de erros, principalmente em face da complexidade das contratações públicas. É preciso ter em mente que o agente, antes de tudo, é humano e, como tal, suscetível a erros.

Erro grosseiro, a luz da Lei nº. 13.655/18 “é aquela conduta, comissiva ou omissiva, equivocada, incorreta, praticada sob falsa ou incorreta premissa, e qualificada pelo elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”[6]. Portanto, para fins de responsabilização, não basta os elementos da culpa em sentido estrito – negligência, imprudência ou imperícia – sendo indispensável a demonstração de que a desídia foi grave a ponto de caracterizar erro grosseiro. Convém, mais uma vez, citar as precisas lições do professor José Anacleto Abduch Santos:

“Por contraditório que possa parecer, ao fazer referência a que somente o erro grosseiro – verdadeira dimensão qualificada de culpa – pode redundar responsabilização pessoal do agente, fica excluída a possibilidade jurídica de responsabilização pessoal por erro. Aquele que erra, na estrita dimensão do significado jurídico do erro, como antes dito, não pode mais ser responsabilizado pessoalmente”[7].

Por essa razão é que o Acórdão 2012/2022, da Segunda Câmara do TCU, de relatoria do Ministro Anastasia, merece críticas, com o devido respeito. Isso porque, o julgado abaixo colacionado, ao que tudo indica, reproduziu jurisprudência da Corte de Contas anterior à LINDB, adotando como parâmetro para a responsabilização do agente conduta que destoa daquilo que seria esperada do “homem médio[8]”:  

Boletim de Jurisprudência 400/2022

Acórdão 2012/2022-TCU-Segunda Câmara (Embargos de Declaração, Relator Ministro Antonio Anastasia)

Responsabilidade. Culpa. Erro grosseiro. Conduta. Avaliação.

O erro grosseiro a que alude o art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), incluído pela Lei 13.655/2018, fica configurado quando a conduta do agente público se distancia daquela que seria esperada do administrador médio, avaliada no caso concreto”.

Partindo da premissa de que o homem médio é aquele que age de maneira diligente, a responsabilização irrestrita de qualquer conduta que destoa do que seria esperado do homem médio equivale a esvaziar a alteração promovida na LINDB pela Lei nº. 13.655/18, porquanto leva à responsabilização por mera culpa.

Nesse sentido é o recente julgado do TCU, de relatoria do Ministro Benjamin Zymler que, em nosso entender, melhor reproduz a sistemática do art. 28, da LINDB:

Boletim de Jurisprudência 433/2023

Acórdão 63/2023-TCU-Primeira Câmara (Tomada de Contas Especial, Relator Ministro Benjamin Zymler)

Responsabilidade. Culpa. Erro grosseiro. Caracterização. Referência. Conduta.

Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, considera-se erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 – LINDB) aquele que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal ou que poderia ser evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, decorrente de grave inobservância do dever de cuidado. Associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada do homem médio significa tornar aquela idêntica à culpa comum ou ordinária, negando eficácia às mudanças promovidas pela Lei 13.655/2018 na LINDB, que buscaram instituir novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização. (grifou-se)

Diante do exposto, conclui-se que a responsabilização do agente pode decorrer de ato comissivo ou omissivo, por dolo ou erro grosseiro, assim entendido como aquele que poderia ter sido evitado por pessoa com diligência abaixo do normal, portanto, com nível de atenção inferior ao homem médio.

Por fim, embora os colaboradores do Sistema “S” não sejam agentes públicos, aplica-se a eles o disposto no art. 28, da LINDB, uma vez que exercem função de relevante interesse social e coletivo, portanto, equiparada à pública[9][10].


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16ª ed. Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 314.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 16ª ed. Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 329.

[3] E apenas para fins de responsabilização pessoal do agente, o que não afasta o dever de reparar eventuais prejuízos ocasionados: “Antes, porém, de adentrarmos na caracterização desse conceito jurídico indeterminado, é preciso verificar o alcance do novo artigo 28 da LINDB. Importa realçar que a recomposição dos cofres públicos tem a mesma gênese da reparação civil (artigo 927 do CC): aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem (erário) tem o dever de reparar. Nesse contexto, consoante dicção do artigo 944 do nosso Código Civil: “A indenização mede-se pela extensão do dano”, não obstante a exceção prevista no parágrafo único do mesmo artigo. Nessa esfera, cuida-se precipuamente do restabelecimento do status quo ante do patrimônio público. Assim, o conceito de gradação da culpa revela-se inadequado quando se trata do dever de reparar ou indenizar por danos causados a terceiros/Estado”. CRUZ, Alcir Moreno da; BORGES, Mauro. O artigo 28 da LINDB e a questão do erro grosseiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-14/opiniao-artigo-28-lindb-questao-erro-grosseiro

[4] SANTOS, José Anacleto Abduch. Erro grosseiro no processo de contratação pública. Blog JML, 28 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=a4ab4b46e2a9f6fb5fe28ce165e9436d

[5] SANTOS, José Anacleto Abduch. Erro grosseiro no processo de contratação pública. Blog JML, 28 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=a4ab4b46e2a9f6fb5fe28ce165e9436d

[6] SANTOS, José Anacleto Abduch. Erro grosseiro no processo de contratação pública. Blog JML, 28 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=a4ab4b46e2a9f6fb5fe28ce165e9436d

[7] SANTOS, José Anacleto Abduch. Erro grosseiro no processo de contratação pública. Blog JML, 28 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=a4ab4b46e2a9f6fb5fe28ce165e9436d

[8] “Homem médio é, hipoteticamente, aquele dotado de capacidade cognitiva, inteligência, grau de conhecimento e de informação, saúde, dentre outras qualidades ou potencialidades, de natureza intermediária, central ou razoavelmente exigível de qualquer outra pessoa dotada do mesmo padrão de potencialidades e capacidades. Faz-se referência a um entendimento do homem médio ou a uma compreensão do homem médio como parâmetro para avaliar uma certa atitude humana – o parâmetro é a representação da realidade fática ou jurídica que um homem comum, dotado de capacidades e potencialidades comuns e medianas, em igual situação produziria”. SANTOS, José Anacleto Abduch. Erro grosseiro no processo de contratação pública. Blog JML, 28 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.blogjml.com.br/?area=artigo&c=a4ab4b46e2a9f6fb5fe28ce165e9436d

[9] Conforme defendeu Thiago Bueno de Oliveira, em palestra realizada na 17ª edição do Núcleo “S”, em Curitiba, Paraná, nos dias 16 a 18 de setembro de 2020.

[10] Embora a questão seja discutível sob o aspecto da responsabilização penal, em nosso entender, em âmbito administrativo, o colaborador do Sistema “S” é equiparado a agente público para fins de responsabilização. Sobre o tema no aspecto penal, sugere-se a leitura do seguinte julgado: “PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PECULATO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ENTIDADE PARAESTATAL. SISTEMA “S”. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. CAPÍTULO I DO TÍTULO XI DO CÓDIGO PENAL – CP. INAPLICABILIDADE. GESTOR DO SISTEMA “S”. ATIPICIDADE E INÉPCIA DA DENÚNCIA. RECURSO PROVIDO. ORDEM DE TRANCAMENTO CONCEDIDA. 1. O trancamento prematuro da ação penal somente é possível quando ficar manifesto, de plano e sem necessidade de dilação probatória, a total ausência de indícios de autoria e prova da materialidade delitiva, a atipicidade da conduta ou a existência de alguma causa de extinção da punibilidade, ou ainda quando se mostrar inepta a denúncia por não atender comando do art. 41 do Código de Processo Penal – CPP. 2. A jurisprudência desta Corte, na esteira de precedentes do Supremo Tribunal Federal, tem compreendido que não se aplicam aos dirigentes do “Sistema S”, a Lei n. 8.666/1993 (Lei das Licitações) e o Capítulo I do Título XI do Código Penal, o qual tipifica os crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral. 3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida para trancamento das ações penais em referência (1034028- 93.2020.4.01.3400 e 1034047-02.2020.4.01.3400), relativamente ao citado delito, por atipicidade das condutas imputadas ao recorrente”. STJ. Recurso em Habeas Corpus nº. 163470 – DF (2022/0105069-9).

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