Por Julieta Mendes Lopes Vareschini[1]
Muito se discute acerca do correto enquadramento em inexigibilidade de licitação, principalmente em relação à hipótese contemplada do art. 10, inciso II, do Regulamento de Licitações e Contratos dos Serviços Sociais Autônomos:
“Art. 10. A licitação será inexigível quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I. Na aquisição de materiais, equipamentos ou gêneros diretamente de produtor ou fornecedor exclusivo;
II. Na contratação de serviços com empresa ou profissional de notória especialização, assim entendido aqueles cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com sua atividade, permita inferir que o seu trabalho é o mais adequado à plena satisfação do objeto a ser contratado;
III. Na contratação de profissional de qualquer setor artístico;
IV. Na permuta ou dação em pagamento de bens, observada a avaliação atualizada;
V. Na doação de bens.”(grifou-se)
A interpretação literal do Regulamento pode induzir à conclusão de que basta, para o adequado enquadramento, tratar-se o profissional de notório especialista, assim entendido como aquele que, no campo de sua atuação, é o mais adequado à plena satisfação do objeto a ser contratado.
Não se pode olvidar, porém, que qualquer hipótese de inexigibilidade requer a demonstração da inviabilidade de competição, a qual decorre da ausência de competitividade e/ou de julgamento objetivo. Nas precisas lições de Marçal Justen Filho, a inexigibilidade de licitação decorre: “3.1. ausência de alternativas; 3.2. ausência de mercado concorrencial; 3.3. ausência de objetividade na seleção do objeto; 3.4. ausência de definição objetiva da prestação a ser executada”[2] .
Especificamente na hipótese contemplada no art. 10, inciso II, do Regulamento, o que justificativa a inexigibilidade é a ausência de julgamento objetivo na seleção do profissional. Porém, em que pese a omissão do Regulamento, é forçoso reconhecer que não é qualquer objeto que justifica a contratação de notório especialista.
Para melhor compreensão, cita-se a disciplina da Lei 8.666/93, ainda que não vincule os Serviços Sociais Autônomos, em nosso entender, especificamente neste ponto a norma regulamentou o tema de forma mais adequada:
“Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(…)
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
§ 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.(grifou-se)
Infere-se que a hipótese contemplada no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/93, requer a demonstração de três pressupostos, consoante reconheceu o TCU na Súmula 252/2010: “A inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no art. 13 da referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado”. (grifou-se)
O serviço será técnico quando exigir a aplicação do conhecimento teórico e da habilidade pessoal, reunindo dois aspectos, a saber:
“O primeiro é a transposição para a vida prática de um conhecimento teórico, de modo a gerar uma utilidade efetiva e concreta. Os serviços ditos ‘técnicos’ caracterizam-se por envolverem a aplicação de rigorosa metodologia ou formal procedimento para atingir determinado fim. A técnica pressupõe a operacionalização do conhecimento científico, permitindo aplicações práticas para uma teoria. Por meio de um serviço técnico, obtém-se alteração no universo circundante e se atinge um resultado preordenado que se colimava.
Bem por isso, o desenvolvimento de uma pesquisa científica não se enquadra usualmente na categoria de um serviço técnico. Tal deriva da ausência de prestabilidade de uma pesquisa a gerar alterações concretas no mundo. Mas diversa seria a situação se houvesse a contratação para fabricação de uma vacina destinada a prevenir doenças. A produção da vacina resulta da aplicação do conhecimento teórico, científico, traduzindo-se numa utilidade prática, concreta e definida.
A segunda característica do serviço técnico reside na exigência de uma habilidade individual, numa capacitação peculiar, relacionada com potenciais personalíssimos. Promove-se uma espécie de ‘transformação’ do conhecimento teórico em prático, o que envolve um processo intermediado pela capacidade humana. Daí se segue que toda atividade técnica reflete a personalidade e a habilidade humanas”. [3]
Mas, consoante se infere do art. 13, da Lei 8.666/93, não basta que o serviço seja técnico, é indispensável que ele seja também profissional e especializado. O serviço é profissional quando é inerente a uma profissão, ou seja, possui um objeto próprio e sua execução é feita a partir de regras inconfundíveis, que os distinguem de outras atuações humanas, exigindo uma habilitação específica para sua prestação. Pode referir-se tanto a profissões regulamentadas por lei como não[4] . A especialização, por seu turno, tem relação com a capacitação para o exercício de uma atividade com características e habilidades que não são usuais a qualquer profissional. A especialização agrega ao profissional uma capacitação superior a usualmente identificada no mercado. “O especialista é aquele prestador de serviço técnico profissional que dispõe de uma capacidade diferenciada, permitindo-lhe solucionar problemas e dificuldades complexas”.[5]
Em apertada síntese, na esteira de Marçal Justen Filho, “o conceito legal é composto pela soma de todas essas características. Trata-se de um serviço técnico. Mas, além de técnico, é profissional. E, além de profissional, é especializado. Não basta uma habilitação genérica para o desempenho de serviços dotados dessa complexidade. Por exemplo, a inscrição no órgão de classe habilita ao desempenho da profissão regulamentada. Porém, a atividade do inscrito no órgão de classe, por si só, não se caracteriza como serviço técnico profissional especializado”[6] .
Ainda que os três pressupostos sejam necessários para o enquadramento em inexigibilidade de licitação, o que efetivamente justifica a inviabilidade de competição, pela ausência de critérios objetivos, é a singularidade do objeto. Com efeito, o simples fato de o serviço ser técnico profissional especializado ou mesmo ser o profissional detentor de notória especialização não conduzem à inexigibilidade.
A singularidade tem relação com a complexidade do objeto, com seu caráter incomum, que destoa e se distingue dos serviços corriqueiros, conforme se extrai da farta jurisprudência do TCU:
“Boletim de Jurisprudência 104/2015
Acórdão 2616/2015 Plenário (Solicitação do Congresso Nacional, Relator Ministro Benjamin Zymler)
Indexação
Licitação. Inexigibilidade de licitação. Singularidade do objeto.
Enunciado
Nas contratações diretas por inexigibilidade de licitação, o conceito de singularidade não pode ser confundido com a ideia de unicidade, exclusividade, ineditismo ou raridade. O fato de o objeto poder ser executado por outros profissionais ou empresas não impede a contratação direta amparada no art.25, inciso II, da Lei 8.666/93. A inexigibilidade, amparada nesse dispositivo legal, decorre da impossibilidade de se fixar critérios objetivos de julgamento.
Boletim de Jurisprudência 16/2013
Acórdão 7840/2013 Primeira Câmara
Indexação
Contratação Direta. Pedido de Reexame. Singularidade do objeto.
Enunciado
O conceito de singularidade de que trata o art.25, inciso II, da Lei 8.666/93 não está vinculado à ideia de unicidade, mas de complexidade e especificidade. Dessa forma, a natureza singular não deve ser compreendida como ausência de pluralidade de sujeitos em condições de executar o objeto, mas sim como uma situação diferenciada e sofisticada a exigir acentuado nível de segurança e cuidado”.
(…)
Informativo de Licitações e Contratos 10/2010
Acórdão
Acórdão n.º 658/2010-Plenário, TC-021.717/2007-5, rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 31.03.2010
Colegiado
Plenário
Enunciado
Inexigibilidade de licitação: 1 – Singularidade do objeto e seu caráter incomum
Texto
Denúncia formulada ao TCU apontou suposta irregularidade no âmbito do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), envolvendo a contratação de serviços de consultoria e de treinamento por inexigibilidade de licitação, com fundamento no art. 25, II, da Lei n.º 8.666/93. Para a unidade técnica, as razões de justificativa do presidente do Confea sobre a contratação de pessoa física para “prestar consultoria com o objetivo de assessorar a organização e elaboração de edital de licitação para a contratação de empresa especializada para a organização do evento WEC-2008 (Congresso Mundial de Engenheiros)” e para “ministrar curso de capacitação de pessoal no âmbito de concepção e operacionalização da Resolução n.º 1.010/2005” deveriam ser acolhidas. No primeiro caso, entendeu a unidade técnica que “o objeto contratado se reveste de singularidade, visto o caráter incomum do evento de cunho internacional, que […] envolveria diversos aspectos que, de fato, exigiriam um planejamento pormenorizado, com vistas a um resultado exitoso”. Tratava-se, ainda, de “serviço técnico especializado, previsto no art. 13 da Lei de Licitações, prestado por profissional notoriamente especializado”, estando presentes, portanto, todos os requisitos do art. 25, II, da Lei n.º 8.666/93. No segundo caso, quanto à prestação de serviços de capacitação sobre a Resolução n.º 1.010/2005, “que dispõe sobre a regulamentação da atribuição de títulos profissionais, atividades, competências e caracterização no âmbito de atuação dos profissionais inseridos no Sistema Confea/CREA, para efeito de fiscalização do exercício profissional”, a unidade técnica também concluiu que as justificativas apresentadas mereceriam prosperar. “Primeiramente, trata-se de serviço técnico enumerado no art. 13, inciso VI, daquele normativo. Em segundo lugar, tem natureza singular, considerando o ineditismo e as especificidades da recém-aprovada Resolução nº 1.010/2005, cuja complexidade suscitou diversas discussões e questionamentos, antes, durante e após sua aprovação. Por fim, resta patente a notória especialização do profissional contratado, que teria participado, como consultor, das diversas etapas de sua elaboração, detendo profundo conhecimento da matéria.”. Acompanhando a unidade instrutiva, o relator propôs e o Plenário decidiu acolher os argumentos do responsável. Acórdão n.º 658/2010-Plenário, TC-021.717/2007-5, rel. Min-Subst. André Luís de Carvalho, 31.03.2010”.
Assim, é possível que o serviço seja técnico profissional especializado, dentre os elencados no art. 13, porém, sem complexidade e, portanto, não justifica a contratação de notório especialista. Qualquer profissional da área, que atenda às condições impostas pela Entidade, assegurada a qualificação mínima, pode executá-lo. Da mesma forma, não é crível contratar um notório especialista que, comumente pratica valores superiores à média de mercado, para objeto que não seja revestido de complexidade.
Por isso que o ponto chave para justificar a inexigibilidade de licitação com fundamento no art. 10, II, do Regulamento, é a singularidade do objeto, pois é a complexidade e o caráter incomum do serviço que respaldam a busca pelo melhor profissional existente no mercado. E como a escolha parte do grau de confiança depositado no profissional, conforme já reconheceu o TCU na Súmula 264[7] , é nesse ponto que reside a ausência de parâmetros objetivos e, portanto, a licitação resta inviável.
Sobre o tema, Luiz Cláudio de Azevedo Chaves fez detalhado estudo que, pela relevância, pede-se vênia para colacionar:
“É de se reconhecer que um dos conceitos jurídicos mais complexos dentre todos os institutos presentes no arcabouço normativo das contratações governamentais é, justamente, o de singularidade para fins de caracterização da inviabilidade de competição. Isto porque a lei não deixa nenhum traço objetivo que possibilite sua identificação. Muito embora haja na doutrina diversas propostas de conceituação desse instituto, formuladas pela pena de renomados jurisconsultos, ainda não há entre eles uma uniformidade que esgote o tema. E o que se verifica, ao se tentar acomodar tais conceitos aos casos práticos do dia a dia é que tais proposições terminam por não encerrar um norte objetivo para o aplicador da norma, abrindo um perigo espaço de discrição onde a vinculação é absolutamente imprescindível.
À guisa de exemplo, veja-se a doutrina de Marçal Justen Filho[5], que entende que a singularidade “caracteriza-se como uma situação anômala, incomum, impossível de ser enfrentada satisfatoriamente por qualquer profissional ‘especializado’. Envolvem casos que demandam mais do que especialização, pois apresentam complexidades que impedem a obtenção de solução satisfatória a partir da contratação de qualquer profissional (ainda que especializado)”. Já o eminente jurista, Carlos Pinto Coelho Motta[6], citando Régis Fernandes de Oliveira, concorda com este último no sentido de que a singularidade “implica em característica própria de trabalho, que o distingue dos demais.” Por sua vez, Jessé Torres Pereira Júnior[7] acerca do conceito de singularidade, traz escólio a partir de julgado do TCE/RJ que afirma que “não se considera de natureza singular aquilo que pode ser executado por numerosos profissionais ou empresas. Petrônio Braz[8], conclui que a expressão (singularidade) “traz sentido especial, com peculiaridades que permitem distinguir a coisa, não podendo a expressão ser entendida literalmente.” Para não estender demais, finaliza-se com a definição de Jacoby Fernandes[9], que aponta que “singular é a característica do objeto que o individualiza, distingue dos demais. É a presença de um atributo incomum na espécie, diferenciador.” O eminente jurista prossegue a lição oferecendo alguns exemplos de como, em sua arguta visão, se identificaria em um serviço o elemento da singularidade. Vale a transcrição:
“Por exemplo, é um serviço singular, a aplicação de revestimento em tinta com base em poliuretano, na parte externa de um reator nuclear, devido às irradiações desse objeto; enquanto pintar é uma atividade comum, as características do objeto que vai receber a tinta exigem uma forma de aplicação de produto que não ocorre nos demais; apagar incêndio é uma atividade que pode ser executada por qualquer bombeiro, mas debelar um incêndio em um poço de petróleo apresenta-se como singular; a demolição é uma atividade comum, mas a necessidade de que seja efetuada por técnica de implosão pode torna-la singular”[10] Não se nega que quando o serviço se mostra peculiar, especial ou inusitado; que quando o objeto em si possui características intrínsecas que o diferencie dos demais, o mesmo possa ser considerado singular. Mas, parece que dizer isso, apenas isso, se torna insuficiente para se chegar a uma conclusão definitiva sobre o conceito de singularidade que possibilite, nos casuísmos da rotina diária das entidades do Poder Público, a identificação da presença deste requisito. Pergunta-se: o que é inusitado ou peculiar? Qual atributo específico se exige que o serviço apresente para que nele se reconheça, com precisão, que o mesmo é singular? Que “característica própria de trabalho” distingue um serviço de outro para os fins de nele reconhecer a inviabilidade de comparação objetiva entre as várias possíveis propostas? Inusitado, especial ou peculiar são conceitos abertos e, por isso mesmo, não oferecem resposta objetiva para essas indagações.
Em que pese o reconhecido talento científico do autor suso citado, parece que os exemplos acima também não se encaixam com o necessário conforto no conceito de singularidade, pois, todos, partem da premissa de que singular é algo incomum. Serviços realizados em reatores nucleares, muito embora pouco usuais (principalmente no Brasil, onde só há duas usinas nucleares em operação), seguem métodos e padrões técnicos documentados e rigorosamente observados, porém, executados padronizadamente pelos respectivos especialistas. O mesmo se diz do combate a incêndio em poço de petróleo e a demolição pela técnica de implosão. Estes também são serviços, altamente especializados, é claro, mas que seguem padrões de execução conhecidos dos respectivos especialistas.
Não se deve confundir singularidade com exclusividade, ineditismo, complexidade ou mesmo raridade.Se fosse único ou inédito, seria caso de inexigibilidade por ausência de concorrentes e a contratação seria capitulada na cabeça do art. 25 da L. 8.666/93, e não em seu inciso II. O fato de o objeto ser prestado por poucos profissionais ou empresas não impede que estes disputem o objeto. O serviço de concessão de canal para transmissão de dados (link de internet) é prestado, em muitas regiões por duas ou três operadoras e nem por isso são singulares, sendo normalmente licitados por todos os órgãos e entidades da Administração Pública. Ao mesmo tempo, o fato de haver inúmeros possíveis executores não é excludente da hipótese de singularidade, pois essa não é uma condição (objetiva) estipulada na norma legal regedora da espécie. E nem tampouco a complexidade induz a singularidade, pois casos haverá que o serviço, apesar de não complexo, mantém guardada uma certa característica que lhe tornará singular, conforme se verá mais adiante.
A despeito de haver opiniões em sentido contrário, outro conceito que se reputa impróprio é a de que a singularidade pode decorrer da notória especialização de seu executor. Para essa corrente doutrinária[11], a notória especialização envolveria uma singularidade subjetiva. Todavia, se imaginarmos que a inviabilidade pode decorrer da pessoa do contratado, teríamos que admitir a ideia de que um mesmo objeto seria, a um só tempo, singular e não singular, conforme a pessoa que o executar. Ora, o serviço é ou não é singular. Um projeto arquitetônico para casas populares, não pode ser classificado como singular apenas porque sua contratação recaiu em um internacionalmente premiado escritório de arquitetura. O projeto, em si, continuaria usual. Jacoby Fernandes[12], de forma bastante lúcida, salienta que o processo de contratação de obras e serviços inicia-se, necessariamente, pela definição do objeto, o que envolve a elaboração do projeto básico e/ou executivo, e não pela escolha do executor. Acrescenta que “quando os órgãos de controle iniciam a análise pelas características do objeto, percebe-se quão supérfluas foram as características que tornaram tão singular o objeto, a ponto de inviabilizar a competição.”
Como se demonstrou acima, os conceitos existentes na doutrina pátria, muito embora totalmente corretos, não esgotam a matéria, deixando larga margem de subjetivismo para o aplicador da norma. Após muita reflexão sobre essa questão e análise dos inúmeros precedentes e casuísmos existentes na rotina diária das repartições públicas, percebe-se que há um elemento comum que está presente em todos os serviços singulares, qual seja, o da imprevisibilidade ou incerteza do resultado da execução. Pode-se considerar que o serviço é singular quando seu resultado não é previsível ou incerto; quando o contratante, apesar de apontar as características do que pretende contratar, não tem como saber antecipadamente o que irá receber em mãos como resultado da execução; é o serviço cujo resultado pode variar de executor para executor (e por isso não é previsível).
Cumpre deixar desde já consignado que não se está falando da variabilidade da forma de execução, mas do resultado dela. Um sistema informatizado pode ser construído a partir de diversas metodologias de produção (formas de execução), mas o resultado será o mesmo e é previsível. Se o contratante quer um sistema que possibilite administrar o estoque e a logística de distribuição de materiais do almoxarifado, com a possibilidade de gerar relatórios gerenciais de demanda, de fluxo, de atendimento entre outros, o resultado será exatamente esse quem quer que o execute, muito embora, a arquitetura do sistema possa ser elaborada de modo variado de acordo com a metodologia empregada pelos diversos especialistas disponíveis no mercado. O serviço não seria singular, porquanto previsível seu resultado. Veja-se outro exemplo.
Imagine que um órgão pretenda contratar um projeto arquitetônico (art. 13, I da L. 8.666/93), definindo as características que a edificação deverá apresentar, tais como: espaço para biblioteca que acomode 20.000 exemplares; um departamento de saúde com capacidade para atendimento ambulatorial simultâneo para até 10 pacientes bem como um leito de unidade de terapia semi-intensiva; vaga coberta para no mínimo 200 automóveis; que o prédio possua sistema de captação de energia solar para conversão em energia elétrica e reaproveitamento de águas pluviais e de re-uso. O resultado que será apresentado já é sabido mesmo antes de iniciada a execução, independentemente de quem ou quantos escritórios de arquitetura venham a elaborar o projeto. Cada projeto contará com aquelas características solicitadas e, ainda que se diferenciem aqui e ali (tipo de fachada, materiais de acabamento etc) estará possibilitado ao órgão contratante antecipar o resultado. Logo o resultado é perfeitamente previsível, e, portanto, viável seria a licitação.
Mas, se o contratante solicitasse o mesmo projeto, porém, além daquelas características, exigisse que o mesmo, uma vez executado, fosse capaz de transformar o prédio em um novo símbolo, uma marca que tornará a cidade reconhecida internacionalmente. Se a principal intenção fosse essa, os vários possíveis executores apresentariam seus respectivos projetos atendendo a essa exigência cada qual a partir da sua particular leitura, e o contratante não teria como conhecer antecipadamente o resultado. No serviço singular o resultado é, pois, imprevisível, ou seja, o contratante faz o pedido, mas não sabe exatamente o que irá receber como resultado da execução. No primeiro caso, a forma arquitetônica era desimportante; neste, é o elemento primordial.
A contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal é um excelente exemplo para a confirmação da tese ora proposta, tendo em vista já citado entendimento firmado pelo Tribunal de Contas da União.[13] Apesar de os fundamentos daquele decisum terem estreita relação com os conceitos doutrinários já anteriormente citados, ao se examinar com o olhar ora defendido, se perceberá que a hipótese se enquadra perfeitamente à proposição aqui encaminhada. E para esse exame, bastará que se faça uma análise sobre o que compõe o resultado da execução do serviço treinamento de pessoal para identificar se o mesmo é previsível ou imprevisível.
Nos serviços de treinamento, o resultado que se busca alcançar, ou seja, aquilo que se perfaz com a execução é o aprendizado, sendo que dois são os fatores que podem ser determinantes para seu alcance: a metodologia; ou, a intervenção direta do docente. As características do projeto do treinamento, isto é, os objetivos gerais e específicos, público alvo, metodologia e o conteúdo programático e recursos instrucionais, constituem características técnicas do objeto para que o resultado do serviço seja alcançado.
A execução do serviço de treinamento se materializa, sem dúvida, com a aula que o docente ministra. É por meio desta ação que o profissional, fazendo uso da metodologia didático-pedagógica, utilizando os recursos instrucionais já definidos e aplicando o conteúdo programático estabelecido, executa o objeto com o fito de possibilitar o alcance do resultado pretendido. Se o resultado, para ser alcançado, depender essencialmente da intervenção direta e personalíssima do docente, por óbvio, que o resultado da execução será imprevisível. Afinal de contas, cada professor possui sua técnica própria, sua forma de lidar com grupos, sua empatia e capacidade didática. Fará suas exposições com base não só em seus conhecimentos técnicos, mas também a partir das suas experiências pessoais, seu ritmo e timbre de voz. Aliás, o próprio professor poderá executar o serviço de forma distinta a cada aula proferida, ainda que do mesmo tema, provocado, por exemplo, por uma mudança de visão e conceitos. Quer dizer, as aulas sempre serão diferentes, seja na condução, seja nas conclusões, seja na forma de exposição. Tudo isso faz com que seja absolutamente impossível ao contratante desse serviço prever o resultado que irá receber ao cabo da execução, isto é, que nível de aprendizado será possível captar. Nestes casos, não se poderá admitir que, quem quer que seja o executor, desde que aplicando os recursos didáticos pre-definidos, vá obter os mesmos resultados. Não há como negar, diante desse contexto, a singularidade desse específico objeto.
O mesmo não ocorre com os treinamentos cujo resultado se alcança primordialmente a partir do emprego da metodologia e/ou material didático a ser aplicado. Nesses, a intervenção do professor passa a ser acessória, não sendo determinante na obtenção dos resultados esperados. A metodologia, sim, é que seria o principal elemento responsável pelo alcance desses resultados, o que induz a percepção de que, seguindo a metodologia e utilizando os materiais didáticos pré-definidos, o resultado será sempre previsível, não se alterando substancialmente mesmo quando executado por profissionais ou empresas distintas. Cite-se os cursos de datilografia ou digitação. Nestes, o instrutor é um condutor da metodologia. Sua intervenção é mínima e se resume a verificar se o aluno está executando os exercícios de forma correta. Se positivo, o instrutor o autorizará a passar para o próximo exercício, e assim sucessivamente até que o mesmo esteja completamente treinado. Qualquer instrutor treinado na metodologia atrairá resultados muito aproximados entre os alunos, portanto, perfeitamente previsíveis.[14]
Diante do acima exposto, é correto afirmar que, sempre que a intervenção pessoal do instrutor for o elemento determinante para o alcance dos resultados pretendidos, revelada estará a natureza singular do serviço, pois o nível do aprendizado não será previsível. Em contrapartida, caso o método supere a intervenção do mestre para esse desiderato, o treinamento será licitável, porquanto o resultado será basicamente o mesmo quem quer que o execute (desde que detentor das habilidades específicas na metodologia). Para afastar de vez a confusão que ainda possa existir em relação ao conceito de singularidade, abordemos dois exemplos: Curso de Atualização em Língua Portuguesa e o Curso de LIBRAS.
Em nossa vida acadêmica já tivemos professores muito habilidosos, que, com uma didática excepcional, nos faziam entender mais facilmente a matéria; e outros, a despeito de serem detentores de elevado conhecimento e domínio da matéria, não eram tão capazes de transmitir adequadamente o conteúdo. No caso, não seria gramática o principal fio condutor do resultado, mas a intervenção pessoal do professor de língua portuguesa. Apesar de se tratar de um treinamento de matéria de nível médio (o que significa não ser de alta complexidade), para o qual há no mercado inúmeros professores habilitados, ainda sim o mesmo guarda a característica de singularidade.
Nos cursos de LIBRAS, a linguagem de sinais, o instrutor não apenas adestra o aluno nas formas que as mãos devem assumir para sinalizar cada letra do alfabeto ou sílabas ou expressões; vai muito mais além. O curso envolve também o aluno saber interpretar o ritmo com que os sinais são executados, a expressão facial e corporal do portador da deficiência auditiva, e outros trejeitos que compõe o universo do idioma de sinais. Logicamente que cada instrutor apresenta esse conteúdo de forma personalíssima, e, por isso, não previsível e incompossível de comparação objetiva entre os vários possíveis executores”.[8] (grifou-se)
É possível que um serviço técnico profissional especializado seja contratado por meio de licitação (se o objeto não comportar singularidade) ou por inexigibilidade (quando presentes os três requisitos a que alude o art. 25, II, da Lei 8.666/93 e o art. 10, II, do Regulamento). O enquadramento, portanto, deve ser feito à luz das especificidades do caso concreto, jamais em abstrato. Justamente por isso há julgados do TCU reconhecendo a inexigibilidade de licitação para contratação de serviços jurídicos, assim como por meio de licitação. Não sendo o serviço portador de complexidade/incomum, a regra é a licitação.
Cabe uma análise do objeto e das práticas do mercado específico pelo setor técnico competente a fim de eleger o melhor procedimento. E existindo possibilidade de fixação de critérios objetivos para comparação e seleção de propostas, porque o objeto não é incomum, esvazia-se eventual justificativa para a contratação direta por inexigibilidade, na medida em que essa hipótese exige, para sua regular utilização, a demonstração fática de inviabilidade de competição, seja em razão da ausência de pluralidade de sujeitos aptos a atender a demanda da entidade ou quando, ainda que existente mais de uma alternativa, a comparação objetiva entre as propostas é inviável.
Um exemplo ajuda a esclarecer. Imagine-se a contratação de um jurista para patrocínio de uma causa (portanto, serviço técnico profissional especializado, nos termos do art. 13, inciso II, da Lei 8.666/93) sem maiores complexidades ou riscos à Entidade. Por evidente, a situação não justifica uma inexigibilidade, por não estar caracterizada a singularidade do objeto. Por outro lado, imagine-se que, em virtude do julgamento do Recurso Extraordinário 603.624, que tramita no Supremo Tribunal Federal, cujo cerne envolve a constitucionalidade das contribuições parafiscais (especificamente no caso do SEBRAE, APEX e ABDI) com o advento da Emenda Constitucional 33/01, as Entidades julguem que, pelo risco potencial de julgamento que reconheça a inconstitucionalidade da cobrança, faz-se necessário contratar o melhor advogado na área (não basta alguém com experiência, pois a singularidade do objeto exige a contratação do melhor, a partir do grau de confiança nele depositado). Essa situação enquadra-se na inexigibilidade prevista no art. 10, II, do Regulamento de Licitações e Contratos.
Sobre o tema também disserta Marçal Justen Filho: “ocorre que a singularidade do objeto nada mais reflete do que a singularidade do próprio interesse estatal a ser atendido. Ou seja, um certo objeto não pode ser substituído por outro, para fins de contratação administrativa, por ser ele o único adequado a atender a necessidade estatal ou as necessidades coletivas”[9] .
Recentemente, a Lei 14.039/2020 alterou, dentre outras normas, o Estatuto da Advocacia, inserindo o art. 3º-A:
“Art. 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”
ALei 14.039/2020 não inovou na ordem jurídica com nova possibilidade de contratação por inexigibilidade, na verdade, o objetivo da norma, ao que nos parece, foi o de apenas traçar o entendimento de que, por si só, os serviços advocatícios são singulares, o que não exime as Entidades das cautelas que já existiam antes da lei, como o dever de motivar o ato, e, quando diante de um objeto complexo, eleger o particular a partir de sua notória especialização.
Ou seja, o enquadramento legal para contratação de notório especialista continua a ser o inciso II, do art. 10, do Regulamento de Licitações e Contratos. O que a norma citada fez foi respaldar ainda mais a contratação desses serviços por inexigibilidade, por considerá-los singulares.
Mas, em nosso entender, a norma deve ser interpretada com razoabilidade e em conjunto com as recomendações dos órgãos de controle, porquanto nem todo serviço jurídico justifica a contratação de um notório especialista. Ao contrário, algumas demandas são padronizadas e comuns.
Neste sentido, é o entendimento de Ana Carolina Coura Vicente Machado, que analisou os reflexos da Lei 14.039/2020, dentro dos limites da Lei 8.666/93, quando da contratação direta de serviços prestados por advogados e contadores, vejamos:
Mas será que tal reconhecimento legal da natureza singular dos serviços prestados por advogados e contadores é a saída para justificar/autorizar contratações diretas de modo automático e afastar o risco de ações de improbidade? Será que a partir de agora o administrador está isento do dever de motivar seus atos para justificar a contratação pautada em inexigibilidade de licitação? Será que os Tribunais de Contas e órgãos jurisdicionais aceitarão o quesito “confiança” como justificativa única e suficiente para comprovar a inviabilidade de competição no caso concreto exigido pela Lei 8.666 para as situações de inexigibilidade de licitação?
A resposta, em nosso sentir, é negativa para todas essas questões.
Primeiro porque a motivação é da essência do ato administrativo e, conforme ensina Celso Antonio Bandeira de Mello, “implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.”[2]
No mesmo sentido, explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.
Na Constituição Federal, a exigência de motivação consta expressamente apenas para as decisões administrativas dos Tribunais e do Ministério Público (arts. 93 e 129, § 4o, com a redação dada pela Emenda Constitucional no 45/04), não havendo menção a ela no artigo 37, que trata da Administração Pública, provavelmente pelo fato de ela já ser amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Na Constituição Paulista, o artigo 111 inclui expressamente a motivação entre os princípios da Administração Pública.”[3] Segundo, porque a própria Lei de Licitações exige, para a regularidade da inexigibilidade de licitação com fundamento no art. 25, II, que haja a demonstração da inviabilidade de competição para a contratação de serviço técnico profissional, de natureza singular, o qual demanda sua regular execução por notório especialista, assim entendido como aquele que, no campo de sua atuação, é o mais adequado à plena satisfação do objeto a ser contratado.
Da mesma forma, exige o art. 26 que as situações de dispensa e inexigibilidade devem ser necessariamente justificadas, devendo o processo ser instruído, inclusive, com a razão da escolha do fornecedor ou executante.[10]
Em face do exposto, conclui-se que, em que pese a omissão do Regulamento, o enquadramento na hipótese prevista no art. 10, inciso II, requer a demonstração de três requisitos: a) serviço técnico profissional especializado; b) natureza singular; c) notória especialização do profissional.
A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993”. (grifou-se)
[8] RJML nº. 38, março de 2016, seção doutrina, p.04.