JURISPRUDÊNCIA COMENTADA – PREGÃO ELETRÔNICO – MODOS DE DISPUTA – EXAME DE INEXEQUIBILIDADE

No modo de disputa aberto e fechado (art. 31, inciso II, do Decreto 10.024/2019), o pregoeiro deve desclassificar lances manifestamente inexequíveis durante a etapa aberta, uma vez que estes não podem servir de parâmetro à convocação de licitantes para a etapa fechada (art. 33, §§ 2º e 3º, do Decreto 10.024/2019), sob risco de prejuízo à competitividade do certame. (TCU, Acórdão no. 2920/2020, Rel. Min. Augusto Sherman).

 
O julgamento destacado aborda tema inovador, uma vez que trata do exame de viabilidade da proposta formulada em pregão eletrônico já sobre a égide dos novos modos de disputa instituídos pelo Dec. Federal no. 10.024/2019.
 
Como se pode ver do enunciado acima transcrito, o Tribunal de Conta da União entendeu que o Pregoeiro tem o dever de desclassificar a proposta que se mostrar manifestamente inexequível durante a etapa aberta, no modo de disputa aberto e fechado. Justifica tendo em vista que a formação de preços insustentáveis pode prejudicar a entrada de outros licitantes na etapa fechada da disputa.
 
Esta decisão tem causado bastante alarde entre os aplicadores e intérpretes do Direito. Tenho visto muito compartilhamento dessa decisão nas redes sociais.
 
Mas divido com meus leitores e seguidores uma preocupação importante que me acomete.
 
E uma leitura apressada do enunciado pode conduzir a atos absolutamente contrários à jurisprudência pátria e entendimento doutrinário relativo ao exame de inexequibilidade de propostas formuladas em certames licitatórios.  Para melhor compreensão do decisum, cumpre esclarecermos o real significado do fenômeno da inexequibilidade e suas implicações. Senão vejamos.
 
Inexequívelou inviável é a proposta cujos termos não são suportáveis pelo proponente, ou seja, ele compromete a sua palavra, mas não terá condições de mantê-la ao longo da execução do ajustado, sendo que, muitas vezes, sequer consegue dar início à execução. A doutrina explica esse fenômeno. Iniciamos pelas lições do festejado mestre Jessé Torres[1], que, segundo sua ótica, preço inexequível é
 

“(…) aquele que sequer cobre o custo do produto, da obre ou do serviço. Inaceitável que empresa privada (que almeja sempre o lucro) possa cotar preço abaixo do custo, o que a levaria a arcar com prejuízo se saísse vencedora do certame, adjudicando-lhe o respectivo objeto. Tal fato, por incongruente com a razão de existir de todo empreendimento comercial ou industrial (o lucro), conduz, necessariamente, à presunção de que a empresa que assim age está a abusar do poder econômico, com o fim de ganhar mercado ilegitimamente, inclusive asfixiando competidores de menor porte. São hipóteses previstas na Lei n° 4.137, de 10.09.62, que regula a repressão ao abuso do poder econômico.

 
Marçal Justen Filho adota posicionamento distinto em relação a este problema, considerando que “aquestão fundamental não reside no valor da proposta, por mais ínfimo que o seja ¾o problema é a impossibilidade de o licitante executar aquilo que ofertou.”[2] Conclui esse pensamento ponderando que não compete à Administração fiscalizar a atividade empresarial, ou seja, a decisão de receber lucros ou arcar com prejuízos é da empresa.
 
Unindo ambas as visões e buscando simplicidade, podemos entender que proposta inexequível é aquela que se demonstra inviável tecnicamente ou cujo valor sequer cobre os custos de produção ou execução e, principalmente, não pode ser mantido sem prejuízo para a qualidade e o perfeito cumprimento das obrigações contratuais assumidas. É, pois, proposta irresponsável. Bruno da Conceição São Pedro, em ótimo trabalho publicado no site Jus Navigand[3], citando Victor Mazman, se encaminha na mesma direção, aduzindo que:
 

A proposta que, a toda evidência e à primeira vista, se mostrar inviável, não é séria por não ser exequível. O procedimento licitatório tem um objetivo. É oportunizar, após sua realização, a formalização do contrato entre a Administração e o licitante vencedor. Desta forma, se o conteúdo da proposta, não só quanto ao preço como às demais condições, não permite que, se vencedora, se realize o contrato administrativo, não ingressa na razoável área da competitividade e desatende o essencial objetivo da avença posterior. Daí a desclassificação.

 
Certo, portanto, é que a inexequibilidade somente ensejará a desclassificação da proposta se ficar demonstrado que a mesma não é suportável pelo proponente (inexequibilidade absoluta). Se, ao contrário, restar demonstrado que, a despeito da formação de preços abaixo do custo de execução, o proponente tem condições de suportar a execução (inexequibilidade relativa), a proposta deve ser mantida válida no certame.
 
Mais uma vez citando Marçal Justen Filho[4] “a desclassificação por inexequibilidade apenas pode ser admitida como exceção, em hipóteses muito restritas”. Para o autor, “os arts 44, §3º e 48, II §§ 1º e 2º devem ser interpretados no sentido de que a formulação de proposta de valor reduzido exige avaliação cuidadosa por parte da Administração.”
 
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no mesmo diapasão, reconhecendo que não se pode presumir a inexequibilidade de uma proposta, sem que haja oportunidade para o licitante demonstrar a viabilidade da sua proposta:
 

“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. PROPOSTA INEXEQUÍVEL. ART. 48, I E II, § 1º, DA LEI 8.666/93. PRESUNÇÃO RELATIVA. POSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO PELO LICITANTE DA EXEQUIBILIDADE DA PROPOSTA. RECURSO DESPROVIDO. 1. A questão controvertida consiste em saber se o não atendimento dos critérios objetivos previstos no art. 48, I e II, § 1º, a e b, da Lei 8.666/93 para fins de análise do caráter exequível/inexequível da proposta apresentada em procedimento licitatório gera presunção absoluta ou relativa de inexequibilidade. 2. A licitação visa a selecionar a proposta mais vantajosa à Administração Pública, de maneira que a inexequibilidade prevista no mencionado art. 48 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos não pode ser avaliada de forma absoluta e rígida. Ao contrário, deve ser examinada em cada caso, averiguando-se se a proposta apresentada, embora enquadrada em alguma das hipóteses de inexequibilidade, pode ser, concretamente, executada pelo proponente. Destarte, a presunção de inexequibilidade deve ser considerada relativa, podendo ser afastada, por meio da demonstração, pelo licitante que apresenta a proposta, de que esta é de valor reduzido, mas exequível. 3. Nesse contexto, a proposta inferior a 70% do valor orçado pela Administração Pública (art. 48, § 1º, b, da Lei 8.666/93) pode ser considerada exequível, se houver comprovação de que o proponente pode realizar o objeto da licitação. […] a vencedora do certame “demonstrou que seu preço não é deficitário (o preço ofertado cobre o seu custo), tendo inclusive comprovado uma margem de lucratividade”. […] (STJ – REsp: 965839 SP 2007/0152265-0, Relator: Ministra DENISE ARRUDA, Data de Julgamento: 15/12/2009, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/02/2010).

 
A decisão plenária em exame causa certa perplexidade, uma vez que a própria jurisprudência do Tribunal de Contas da União, vem se posicionando no mesmo sentido, ou seja, reconhece a necessidade de abrir o contraditório à empresa proponente, antes de promover sua desclassificação tendo, inclusive, sumulado o tema:
 

“TCU – SÚMULA N.º 262 – O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.”
 
“Assuntos: INEXEQUIBILIDADE e LICITAÇÕES. DOU de 23.08.2011, S. 1, p.94. Ementa: alerta ao SENAI/RJ quanto à constatação das seguintes impropriedades verificadas na condução de um convite: a) utilização indevida da unidade “verba” para referenciar serviços identificados na planilha orçamentária do convite, em infringência às exigências contempladas no art. 13, § 2º do Regulamento de Licitações e Contratos do SENAI, quanto à suficiência e adequação do conjunto de elementos necessários à caracterização da contratação de obras e serviços de engenharia; b) aferição da inexequibilidade da proposta de uma empresa licitante privada de extintores, ao convite, que encerrava a oferta menos onerosa para o SENAI/RJ, em caráter sumário e baseada em restrito referencial de preços, e com base no orçamento em vez do valor médio das propostas, bem assim, sem propiciar a oportunidade de demonstração da exequibilidade da proposta, contrariando a finalidade precípua da licitação, que é a obtenção da proposta mais vantajosa para a administração (cf. art. 2º do RLC/SENAI), e o entendimento jurisprudencial que se extrai da Sumula/TCU nº 262 (itens 9.2.2 e 9.2.3, TC-008.075/2009-1, Acórdão nº 6.439/2011-1ª Câmara).

 
 
Dito isto e retomando o caso concreto, vê-se que a decisão necessita de temperagem, de maneia a abrigar a garantia aos princípios da livre iniciativa do contraditório (respectivamente, art. 170 e art. 5º, LV, da CRFB).
 
No modo de disputa aberto e fechado do pregão eletrônico (art. 33 do Dec. Federal no. 10;024/2019), os licitantes podem ofertar lances por 15 minutos, período após o qual, inicia-se uma nova etapa em que o autor da proposta de menor valor e os demais que estiverem a até 10% deste preço, poderão encaminhar um novo e derradeiro lance, dentro do período de cinco minutos. Tal procedimento é bastante assemelhado com o estabelecido no art. 4º, VIII, da Lei 10.520/2002 para o pregão na forma presencial.
 
Conforme visto com profundidade acima, o exame de exequibilidade da proposta prescinde de oportunização do proponente em justificar seu preço e/ou condições de execução. Logo, é temerário entender que o TCU passou a admitir que se proceda à desclassificação sumária de proposta por mera presunção de inexequibilidade.
 
A leitura do inteiro teor do acórdão em tela, revela que, de fato, não é essa a correta orientação. Em suas razões de decidir, discorrendo sobre o proceder do Pregoeiro, o relator assim se posicionou:
 

6. […] Contudo, não suficientes para que esta Corte determine, por exemplo, a anulação do certame. Com efeito, as propostas apresentadas na etapa fechada podem ser consideradas satisfatórias, já que apresentaram bom desconto com relação ao valor estimado (mais de 12%) para um objeto que é bastante competitivo (terceirização de serviços) , o que foi evidenciado, uma vez que o certame contou com um bom número de empresas participantes (vinte duas). (GN)

 
Ora, se a etapa fechada, mesmo com o preço aparentemente inexequível, foi possível atrair propostas satisfatórias, como o próprio Relator reconheceu, significa que o preço tido por inexequível, em verdade, era perfeitamente viável. Tanto que foi acompanhado por outras empresas. Se a proposta que serviu de parâmetro para a etapa fechada fosse ser considerada inexequível, as que a acompanharam também o deveriam ser.
 
Mais adiante, o i. Relator se manifesta nos seguintes termos:
 

Por outro lado, não haveria como prever, por exemplo, se o preço obtido pelo objeto do certame seria menor, caso a disputa ocorresse com a presença das outras empresas que não foram para a etapa fechada em razão da proposta inexequível registrada e não desclassificada pelo pregoeiro. […] De outra parte, não se pode desconsiderar que a empresa Stilo insistiu no oferecimento de lances inexequíveis, o que culminou na limitação do número de participantes na etapa fechada do certame, prejudicando sua competitividade. Ou seja: a conduta da empresa acabou alijando do processo outras empresas.

 
Preciso discordar dessa ilação.
 
Se o preço tido por inexequível não estivesse presente, as empresas que não participaram da fase fechada, até poderiam apresentar propostas, porém, em valores superiores aos ofertados por aquelas que a acompanharam. Tal conclusão é um consectário lógico do fato de que tais proponentes (as que não tiveram oportunidade de lançar novos preços), caso tivessem condições, teriam ofertado lança na etapa aberta, a fim de viabilizar sua participação na etapa fechada. Em outras palavras, a desclassificação prematura e sumária da proposta de menor valor não teria atraído preços mais vantajosos.
 
Destaco ainda o posicionamento em relação à atuação do Pregoeiro que presidiu a referida sessão:
 

O erro, imputável ao pregoeiro, pode ser entendido como escusável, tendo em conta o efetivamente observado na licitação, uma vez que não há evidência de que preços menores seriam selecionados, caso a dinâmica da disputa houvesse sido outra, ainda que, de fato, tenha sido reduzida a competitividade do certame. (GN)

 
É mister destacar que o exame de aceitabilidade das propostas, no pregão eletrônico, de acordo com a nova sistemática instituída pelo novel regulamento, somente tem lugar após a disputa. NUNCA durante a realização da mesma:
 

Art.  39. Encerrada a etapa de negociação de que trata o art. 38, o pregoeiro examinará a proposta classificada em primeiro lugar quanto à adequação ao objeto e à compatibilidade do preço em relação ao máximo estipulado para contratação no edital, observado o disposto no parágrafo único do art. 7º e no § 9º do art. 26, e verificará a habilitação do licitante conforme disposições do edital, observado o disposto no Capítulo X.  (GN)
 
Art. 43. […]§ 4º Na hipótese de a proposta vencedora não for aceitável ou o licitante não atender às exigências para habilitação, o pregoeiro examinará a proposta subsequente e assim sucessivamente, na ordem de classificação, até a apuração de uma proposta que atenda ao edital.

 
 
Em conclusão, em que pese o TCU ter emprestado entendimento quanto à desclassificação de propostas durante a etapa de lances, este procedimento é antijurídico, tanto sob o aspecto da reserva legal, pois tal procedimento somente é previsto para momento posterior à etapa de lances, bem como em observância aos princípios da livre iniciativa, do contraditório e do devido processo legal.


[1] Comentários…, p. 498.
[2] Comentários..,.p..455.
[3] SÃO PEDRO, Bruno da Conceição. Análise da inexeqüibilidade nas licitações. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1713, 10 mar. 2008. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/11012>. Acesso em: 17 fev. 2018.
[4]Comentários…p. 653.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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