O ORÇAMENTO IMPOSITIVO E A PERSPECTIVA DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

Por ocasião da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, as emendas parlamentares individuais passaram a ter execução obrigatória, sendo destinado 1,2% da receita corrente líquida do exercício anterior a ser dividido igualmente entre os parlamentares, cabendo a ressalva que metade dos recursos destinados às emendas individuais deveriam ser destinados às ações e serviços públicos de saúde.

Como cediço, a EC 86/2015 tornou impositiva a execução das emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento da União, de maneira que o Poder Executivo é obrigado a executar as emendas parlamentares ao Orçamento até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no ano anterior, nos termos do art. 166, §9º[1], havendo ressalva que metade (0,6%) será destinada a ações e serviços públicos de saúde, o que inclui o custeio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Convém salientar que, embora as emendas parlamentares individuais sejam, em regra, de execução obrigatória, o próprio texto constitucional prevê duas hipóteses de exceção: a) quando a arrecadação real da receita ficar abaixo da estimativa orçamentária e for preciso recorrer à limitação de empenhos para o cumprimento da meta de resultado fiscal (art. 166, § 18º; e b) quando houver impedimento de ordem técnica, verificado e justificado pelo órgão setorial, caso em que o parlamentar poderá remanejar a programação (art. 166, § 13º).

Além da instituição do orçamento impositivo, caracterizado pela execução obrigatória dos limites impostos pelo orçamento, houve a relevação da necessidade de apresentação das certidões de regularidade[2] do beneficiário que receberá tais valores, nos moldes determinados pela nova redação do art. 166 da Constituição Federal.

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, incluiu o §13 ao art. 166 da Constituição Federal, segundo o qual, in verbis:

Art. 166. […] § 13. Quando a transferência obrigatória da União, para a execução da programação prevista no §11 deste artigo, for destinada a Estados, ao Distrito Federal e a Municípios, independerá da adimplência do ente federativo destinatário e não integrará a base de cálculo da receita corrente líquida para fins de aplicação dos limites de despesa de pessoal de que trata o caputdo art. 169.

Acerca da desnecessidade de adimplência do ente federativo destinatário o, à época, Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, através do Departamento de Transferências Voluntárias, emitiu o Comunicado n.º 12/2016[3], orientando à Administração Pública Federal a adotar o entendimento exarado no Parecer Jurídico n.º 00996/2016/CGJOE/CONJUR-MP, que, analisando a “necessidade, ou não, de adimplência do ente destinatário, para a realização de transferências, da União para outros entes federativos, de recursos advindos de emendas parlamentares individuais impositivas, diante da Emenda Constitucional n° 86/2015, que incluiu o § 13 ao art. 166 da CF” concluiu, em suma, pela dispensa da regularidade, nos termos postos pela Constituição Federal.

A Advocacia Geral da União fundamentou sua decisão também com base no entendimento exarado pelo Tribunal de Contas da União, que entendeu que as emendas parlamentares individuais impositivas, dentre elas, as transferências da União para outros entes da federação, configuram-se, essencialmente, como voluntárias:

Além disso, na realização de transferências para execução das emendas individuais, o novel texto constitucional dispensou somente o requisito da adimplência do ente, permanecendo aplicáveis, portanto, as demais exigências elencadas no art. 25 da LRFpara realização de transferências voluntárias.
[…] o Ministério Público de Contas corrobora o entendimento da unidade técnica de que as transferências de recursos federais para Estados, Municípios e o Distrito Federal decorrentes da execução financeira das EPIss caracterizam-se, essencialmente, como transferências voluntárias, sujeitando-se, pois, às restrições da Lei Eleitoral(art. 73, VI, “a”, da Lei 9.504/1 997) e aos requisitos do art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal, à exceção do requisito da adimnlência do ente federativo beneficiário (art. 25. & 1°. IV. “a”, da LC 101/2000). único expressamente ressalvado pela Constituição (art. 166. § 13).
[…] Se as emendas fossem efetivamente despesas obrigatórias, não haveria necessidade, ou seria redundante, afirmar que a transferência das mesmas não depende da adimplência do ente, uma vez que a LRF não impõe condições para a transferência de recursos relacionados a despesas efetivamente obrigatórias, a exemplo do FPM ou FPE […] A intenção foi a de garantir a transferência de recursos da União para os demais entes, ainda que em débito com a União. […](Acórdão n°287/2016. Relator Ministro José Múcio Monteiro. Data da Sessão: 17/02/2016) – destacamos

Assim, concluiu o Parecer da AGU que “a transferência de recursos advindos de emendas parlamentares individuais impositivas deve ser instrumentalizada por meio de ‘Convênios’, ‘Contratos de Repasse’ ou outro instrumento similar, com atenção aos atos normativos aplicáveis, dispensando-se, a partir do exercício financeiro de 2016, a adimplência do ente destinatário, em respeito ao previsto no § 13 do art. 166 da CF, incluído pela Emenda Constitucional n° 86/2015.”

Desta maneira, instituído em 2014, a partir do exercício financeiro de 2016 o orçamento impositivo tratou-se de um relevante instituto em prol do fortalecimento das ações destacadas dos parlamentares, ao passo que também fomentou a distribuição orçamentária para entes federativos que, em outras situações, se encontrariam impossibilitados de receber recursos em face de sua inadimplência perante o sistema da seguridade social.

Pois bem. Devidamente integradas ao orçamento geral, o Tribunal de Contas da União iniciou, em 2018, auditoria sobre emendas parlamentares individuais ao interesse do Congresso Nacional, tendo como objeto as emendas impositivas referentes ao Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Regional, Ministério da Economia e Secretaria de Governo da Presidência da República.

Delimitando o objeto da auditoria, o TCU informou que objetivo principal seria aprimorar a aplicação dos recursos públicos oriundos de emendas parlamentares, verificar a aderência desses investimentos às políticas públicas, assim como a efetividade dos resultados e a transparência nos processos relacionados, considerado nas análises o período de 2014 e 2017, e de acordo com o Relatório, ao longo do tempo de vigência do orçamento impositivo, não se empenhou toda a dotação prevista, ou seja, não se alcançou o limite mínimo de execução orçamentária e financeira imposto no art. 166, § 11, da Constituição Federal[4], sendo o volume dessas despesas inscritas em restos a pagar, numerário que tem sido elevado ao longo dos anos. Registrou, o TCU, que o valores inscritos em restos a pagar não processados – que correspondem aquelas despesas que foram empenhadas, mas não foram liquidadas – foram superiores a 70% dos valores empenhados durante os quatro anos de execução das emendas, concluindo que o volume de despesas inscritas em restos a pagar não processados é reflexo da dificuldade de execução das emendas dentro do exercício de sua aprovação.

A auditoria do Tribunal de Contas da União apurou, ainda, que entre 2014 e 2017, em relação à dotação total autorizada de R$ 36,54 bilhões em emendas parlamentares individuais, somente R$ 24 bilhões (65,7%) foram empenhados, dos quais R$ 20,2 bilhões (84,2%) resultaram em inscrições em restos a pagar não processados, aduzindo, ademais, que “esse expressivo volume de despesas empenhadas sem liquidação demonstra a dificuldade de se concretizarem os projetos no mesmo exercício em que as emendas parlamentares foram fixadas”. Ainda chama a atenção, o Tribunal, para a disposição dos numerários: dos R$ 24 bilhões empenhados no período, 51% foram para a área de saúde, 21% para a de infraestrutura urbana e ínfimos 4% para atendimento da área de educação.

Além das dificuldades de concretização dos projetos, a Corte de Contas ainda destacou “o uso político que se faz das emendas parlamentares, na negociação de votações de matérias que tramitam no Congresso Nacional. É que, embora as emendas sejam de execução obrigatória, podem ser alvo de contingenciamento, como qualquer despesa discricionária, com vistas ao cumprimento da meta de resultado primário”, de maneira que, além dos entraves de execução, a atividade política também influi de maneira negativa nos resultados sobre a efetividade do orçamento impositivo.

Para o Tribunal de Contas da União,

[…] as emendas parlamentares individuais possibilitam a discricionariedade ao parlamentar para a escolha alocativa do recurso, ou seja, para onde e em que objeto o congressista irá destinar o valor emendado. A fim de prover o parlamentar de informações relevantes para sua tomada de decisão, seria desejável que houvesse um levantamento prévio de necessidades e de prioridades para a alocação desses recursos do erário federal, que possibilitasse uma atuação sinérgica entre parlamentares, órgãos setoriais e entes beneficiários, e uma destinação de recursos públicos que promovesse maior efetividade para as questões prioritárias, bem como maior uniformização dos critérios utilizados para a alocação. Contudo, isso não tem acontecido em todos os casos.

O Relatório de Auditoria do TCU foi, sem dúvidas, um relevante documento de análise do instituto do orçamento impositivo, especialmente por revelar que os municípios, de maneira geral, não dispõem de um levantamento prévio das suas necessidades prioritárias, nem de um canal de articulação com os congressistas, o que colabora, sobremaneira, para a dificuldade de alocação e implementação das emendas impositivas, além de destacar que as emendas envolvem recursos que são distribuídos e executados de forma isonômica entre parlamentares e partidos políticos, embora não constituam um instrumento hábil para promover equidade na redução das desigualdades regionais, considerando que os entes federativos mais populosos findam por conseguir mais recursos do referido orçamento impositivo por contarem com maior número de congressistas, distorção que merece ser revista.

Em face dos resultados da auditoria, proferiu-se o Acórdão nº 2704/2019, do Plenário do TCU, apresentando às seguintes recomendações: que o Ministério da Economia, à Secretaria Executiva do Ministério da Saúde e à Secretaria Nacional de Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento Regional que adotem medidas institucionais e estruturadas, alinhadas com o cronograma do ciclo das emendas parlamentares, no sentido de elencar e informar ao Parlamento objetos prioritários e aptos ao recebimento de recursos federais oriundos dessas emendas, contemplando, inclusive, obras paralisadas por falta de verbas. Destacou, ainda, especificamente para o Ministério da Economia que avalie a possibilidade de estruturar, na Plataforma Mais Brasil ou em outro sistema informatizado adequado, ferramenta que possibilite implementar a recomendação referente às medidas institucionais retro referidas, permitindo sua ampla visualização por parlamentares, gestores públicos e a sociedade em geral, a fim de auxiliar a tomada de decisão pelos congressistas e possibilitar o engajamento social acerca da gestão municipal, recomendando, ainda, a necessidade de estruturar ferramentas de governança para que não sejam iniciados novos projetos de obras públicas financiados com recursos de emendas parlamentares caso não haja previsão de recursos orçamentários e financeiros, para o exercício corrente, suficientes para suportar a execução regular de todos aqueles empreendimentos já em curso.

Por fim, houve a determinação à Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura Urbana do TCU (SeinfraUrbana) para que monitore a implementação das recomendações que foram apresentadas pelo Acórdão nº 2704/2019, de modo é esperada, em um futuro próximo, alterações acerca da execução das verbas referentes ao orçamento impositivo, visando maior efetividade no cumprimento do comando constitucional de destinar parte do orçamento geral para utilização igualitária dos membros do parlamento, especialmente visando a diminuição das desigualdades regionais, em prol de um país menos desigual.

Destarte, à semelhança do que aconteceu em outros Acórdãos do Tribunal de Contas da União que resultaram em alterações no ordenamento jurídico visando maior eficiência no cumprimento dos institutos existentes, espera-se que o Acórdão nº 2704/2019 seja uma mola propulsora de mudanças positivas na execução das emendas individuais (orçamento impositivo), visando o fiel cumprimento das disposições constitucionais, não apenas para fortalecer as ações parlamentares, mas para combater as desigualdades regionais e contemplar os entes federativos mais carentes com as ações específicas que sua população mais precisa.


[1] Art. 166 […] § 9º As emendas individuais ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde.
[2] Art. 195 […]  3º A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
[3] Disponível em http://portal.convenios.gov.br/noticias/comunicado-n-012-de-2016
[4] Art. 196 [… ] § 10. A execução do montante destinado a ações e serviços públicos de saúde previsto no § 9º, inclusive custeio, será computada para fins do cumprimento do inciso I do § 2º do art. 198, vedada a destinação para pagamento de pessoal ou encargos sociais.

Renila Lacerda Bragagnoli

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