Deve haver uma mudança cultural para a eficiente adoção de mecanismos de planejamento previstos na lei de licitações
Por Edcarlos Alves Lima[1]
O planejamento como vetor constitucional
A satisfação dos anseios da sociedade é garantida, em certa medida, pela atuação do Estado na prestação dos serviços públicos, na intervenção no domínio econômico e social, no exercício regular do poder de polícia e no fomento das atividades de interesse público e social.
Todas as formas de atuação do Estado, todavia, devem ser precedidas do necessário planejamento, desde a identificação das necessidades sociais até as estratégias de sua atuação, de modo a garantir maior legitimidade, eficiência e economicidade às ações adotadas e a eficaz alocação de recursos públicos.
O planejamento, concebido como um instrumento da “dimensão temporal” para a gestão pública de longo prazo, é a ferramenta necessária ao alinhamento dos comportamentos econômicos pretendidos pelo Estado aos sujeitos de direito existentes em seu território, de modo a tornar “compreensível a atividade global dos vários atores, vertidos aos mesmos fins”.[2]
Além de conferir transparência e consistência às ações estatais, o planejamento visa à racionalização coordenada das opções disponíveis para a concretização de políticas e valores fundamentais de nossa República.
Aliás, forçoso registrar que a atividade de planejar é obrigatória ao Estado[3], devendo ser desenvolvida a partir de diagnósticos técnicos, econômicos e estudos prospectivos, a fim de orientar a escolha das políticas públicas a serem concretizadas em um determinado espaço e tempo.
Não há como se concretizar uma política pública e/ou idealizar a prestação de um serviço público sem o devido planejamento estratégico, não só para definir o campo de atuação do Estado, mas também, conforme sobredito, a eficiente alocação dos recursos públicos que, como sabemos, são finitos.
Planejar nada mais é do que eleger prioridades, avaliar as diversas opções disponíveis e escolher aquela que seja mais adequada, econômica, efetiva e eficaz, devendo ser uma atividade constante, perene e ininterrupta a ser praticada em todos as atividades de responsabilidade do Estado.
Não obstante, em que pese a atividade de planejamento esteja imbricalmente ligada à gestão da coisa pública, ela ainda é, nos dias atuais, muito precária e banalizada, fazendo com que não se alcance eficácia e efetividade nas atividades desenvolvidas pelo Estado.
O planejamento como princípio norteador das contratações públicas
O legislador, sendo conhecedor das dificuldades reais relacionadas à costumeira ausência de preparação, programação, organização, coordenação e estratégia — mesmo após mais de 30 anos de existência do art. 174 da Constituição Federal –, viu-se na contingência de reforçar o planejamento como princípio norteador do sistema de contratações da nova lei de licitações e contratos administrativo (LLCA, art. 5º).
Isto se fez relevante para que a alta administração do órgão ou entidade fosse relembrada de que o planejamento de qualquer ação estatal, e da contratação pública de modo particular, é de suma importância para garantir a alocação eficiente dos escassos recursos públicos[4]. Afinal, o gestor público não deve apenas se preocupar em implementar a política pública ou viabilizar a prestação do serviço público, mas também que tais ações estatais sejam eficientes e de qualidade.
Nesse sentido, é possível reconhecer que o planejamento é um dos pilares que devem sustentar o novo sistema de contratações públicas disciplinado pela LLCA.
No âmbito da nova lei, o princípio do planejamento foi concretizado por meio de diversos artefatos capazes de traduzir o caminho percorrido pela Administração Pública, desde o surgimento da necessidade e/ou problema a ser resolvido, passando pela escolha da solução “ótima”, que seja plenamente capaz de satisfazê-la, e espraiando-se por toda a execução contratual, até a finalização do pacto eventualmente celebrado.
Mais do que isso, o planejamento das contratações públicas deve ser iniciado com a elaboração eficiente do Plano de Contratações Anuais do órgão ou entidade, que deve estar compatibilizado com as leis maiores de planejamento orçamentário (PPA, LDO e LOA) e ser amplamente divulgado e mantido à disposição da sociedade em seu portal eletrônico oficial.
É dentro do planejamento inicial, portanto, que devem estar inseridos a avaliação, o levantamento, a mensuração e a quantificação de todos os riscos possíveis de existir no âmbito da licitação e da execução do contrato administrativo.
Antes mesmo de o planejamento ser uma obrigação expressa no âmbito das contratações governamentais, seja como vetor ou a partir de regras que o concretizem, os Tribunais de Contas já vinham alertando gestores públicos em torno de sua necessidade.
O planejamento como meio de garantir a eficácia de políticas públicas
A atividade de planejamento é, portanto, de suma importância à eficiência e eficácia da gestão pública, de modo que tratar do tema com a gravidade que lhe é inerente é medida de extremada urgência, sobretudo para combater da precariedade ainda existente no âmbito dos entes subnacionais.
Para analisar a precariedade acima referida, fez-se um recorte metodológico para serem avaliados os dados de eficiência na gestão dos municípios que se encontram no mais rico Estado da Federação Brasileira, qual seja, o Estado de São Paulo. Para tanto, foram utilizados os dados do IEG-M divulgados pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP).
O precitado IEG-M foi criado pela Corte de Contas Paulista com a finalidade de medir a qualidade e eficiência das políticas públicas sob sete dimensões da execução do orçamento público: saúde, planejamento, educação, gestão fiscal, proteção aos cidadãos, meio ambiente e governança em tecnologia da informação. [5]
Os resultados são obtidos a partir das notas alcançadas nas dimensões do IEG-M e classificados de acordo com as seguintes faixas: “A”, quando a gestão é altamente efetiva (pelo menos 90% da nota máxima e, no mínimo, 5 dimensões com a nota A); “B+”, quando for muito efetiva (entre 75% a 89,9% da nota máxima); “B”, quando for efetiva (entre 60,0% a 74,9% da nota máxima); “C+”, quando estiver em fase de adequação (entre 50,0% e 59,9% da nota máxima); e “C”, quando houver baixo nível de adequação (for menor ou igual a 49,9%).
No que toca à dimensão do planejamento – aspecto que mais interessa a este breve arrazoado -, verifica-se que, segundo os dados divulgados, dos 644 municípios jurisdicionados do TCE/SP, 419 possuem nota C (baixo nível de adequação) e 92 nota C+ (em fase de adequação). Ou seja, pode-se concluir que 511 municipalidades não possuem um eficaz e eficiente planejamento de suas políticas públicas, o que representa algo em torno de 80% do total de Municípios existentes no Estado de São Paulo.
De acordo com a celebre frase atribuída a Franco Montoro, é nos Municípios que a vida acontece!
Com efeito, os entes subnacionais, independentemente do porte, infraestrutura ou orçamento que possuam, são responsáveis pela implementação da grande maioria de políticas públicas e da prestação de serviços públicos que impactam, de uma forma ou outra, a vida dos cidadãos brasileiros.
Nesse cenário, é preocupante o baixo nível de adequação, no que toca ao viés de planejamento das ações e serviços prestados em âmbito municipal, de modo que a criação (ou inserção) de uma cultura de planejamento de tais atividades é, sem sombra de dúvidas, medida a ser urgentemente adotada, notadamente por se tratar de um já vetusto vetor constitucional e fundamental alicerce para a boa aplicação da nova de licitações e contratos, que, a partir de abril de 2023, será o principal diploma para viabilizar as contratações governamentais.
[1] Mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), especialista em direito tributário pela mesma instituição, professor de direito das Faculdades Integradas Rio Branco (Campus Cotia) e Advogado-Chefe da Consultoria Jurídica em Licitações e Contratos da Advocacia Geral do Município de Cotia.
[2] OCTAVINI, Alessandro. O Direito Econômico e a Pandemia: A Disciplina Jurídica com Dimensão de Tempo, Escala e Escopo para Resolver Situações de Complexidade Sistêmica. In WARDE, WALFRIDO; VALIM, RAFAEL; et al. As Consequências da COVID-19 no Direito brasileiro. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020
[3] Na forma prevista pelo art. 174 da Constituição Federal, verbis: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”
[4] Aliás, o legislador fez um alerta específico direcionado à alta administração do órgão ou entidade, conforme se verifica no parágrafo único do art. 11 da LLCA: “A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”
[5] SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Índice de Efetividade da gestão municipal. Manual 2021, dados do exercício de 2020. Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/Manual-IEG-M%202021%20-%20Dados%20do%20exerc%C3%ADcio%202020.pdf. Acesso em: 24 jan. 2023.