PONDERAÇÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DA LEI Nº 13.979/2020 PELAS EMPRESAS ESTATAIS

A Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, foi publicada e esquecida ainda em fevereiro, porém, com o avanço do coronavírus e o reconhecimento da pandemia, passou a ser mais debatida, especialmente nas disposições que alcança as licitações e os contratos. A Lei, inclusive, sofreu fortes alterações com a edição da Medida Provisória nº 926, editada e publicada em de 20 de março corrente.

A Lei em apreço dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, e estipula medidas sanitárias e de saúde, como o isolamento e a quarentena, além de instituir uma nova hipótese de dispensa de licitação, inovação que interessa ao presente estudo.

O objeto deste ensaio é analisar a aplicação de disposições da Lei nº 13.979/2020, no que tange às licitações e contratos, às empresas estatais, tendo em vista que estas entidades possuem lei específica própria, a Lei nº 13.303/2016, bem como também se regem por suas regulamentações internas específicas sobre licitações e contratos.

Inicialmente é de se deixar assente, como bem aclarado pelos professores Luciano Elias Reis e Marcus Vinícius Reis de Alcântara no livreto orientativo Contratação Pública Extraordinária no Período do Coronavírus[1], “a Lei nº 13.979/2020, quando dispõe sobre contratações, é uma norma geral de licitações e contratos públicos, nos termos do artigo 22, XXVII, da Constituição da República Federativa do Brasil. Portanto, plenamente aplicável a todos os entes”, de maneira que, não há maiores dificuldades em se admitir que a Lei nº 13.979/2020 se aplica às estatais, já que seu alcance não é relativo ao sujeito, e sim ao objeto da contratação.

No entanto, a Lei nº 13.979/2020 apresenta algumas inovações em matérias de licitações e contratos, notadamente quando apresenta uma nova hipótese de dispensa de licitação, e enquanto lei geral, para que as empresas estatais a utilizem, é mister que suas previsões estejam harmonizadas com as disposições da Lei nº 13.303/2016.

Como cediço, a Lei nº 13.979/2020 é uma lei com intuito que não é outro senão maior efetividade nas aquisições e contratações públicas mediante dispensa de licitação, desde que o objeto seja destinado ao enfrentamento da emergência de saúde pública.

Nesses termos, o art. 4º da Lei dispõe que é dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata a Lei, tendo o §1º deixado muito claro que essa dispensa de licitação é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública já referida.

Especificamente sobre a necessidade de harmonização da Lei nº 13.979/2020 com a Lei nº 13.303/2016 destacamos a dispensa das certidões regularidade, nos termos do art. 4º-F, inserido pela MP 926/2020:

Art. 4º-F Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição.  Destacamos

No entanto, pela análise das disposições da Lei nº 13.303/2016, nota-se que não há previsão de exigência de certidões de regularidade, nos termos do art. 58, que é sucinto ao dispor que

Art. 58. A habilitação será apreciada exclusivamente a partir dos seguintes parâmetros:
I – exigência da apresentação de documentos aptos a comprovar a possibilidade da aquisição de direitos e da contração de obrigações por parte do licitante;
II – qualificação técnica, restrita a parcelas do objeto técnica ou economicamente relevantes, de acordo com parâmetros estabelecidos de forma expressa no instrumento convocatório;
III – capacidade econômica e financeira;
IV – recolhimento de quantia a título de adiantamento, tratando-se de licitações em que se utilize como critério de julgamento a maior oferta de preço.

Ante a ausência de previsão expressa sobre as certidões que as empresas estatais poderão exigir em seus regulamentos internos de licitações e contratos, analisamos o tema em nossa obra[2], de maneira que,
 

O art. 58 da Lei das Estatais compõe uma revolução no que tange aos critérios de habilitação por não prever literalmente a necessidade de apresentação de certidão regularidade fiscal e trabalhista nos seus incisos.

Nessa esteira, não estão previstos, como documentos de habilitação, a apresentação de certidões de regularidade fiscal, previdenciária, trabalhista, do FGTS e declaração que a empresa licitante não emprega menores, deixando clara a intenção do legislador em privilegiar uma opção menos restritiva à competição, mas que garanta a obtenção de propostas mais vantajosas à Administração.

Dessa maneira, a regularidade trabalhista, inserta nas previsões da Lei n.º 8.666/93, não foi elencada como requisito de habilitação na Lei das Estatais, motivo pelo qual entendemos, portanto, que não deve ser exigida nos editais e regulamentos de licitações e contratos das estatais, haja vista que está regulada em uma legislação que não mais se aplica às empresas estatais.

Sobre a apresentação de declaração, por parte do licitante, de que não emprega menores de dezoito anos em trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres, menores de dezesseis anos em qualquer trabalho, salvo na condição de aprendiz, a partir de catorze anos, é ausente na Lei das Estatais quaisquer determinações nesse sentido, ficando tal obrigatoriedade adstrita às disposições da Lei n.º 8.666/93, art. 27, inciso V e Lei n.º 12.462/2011, art. 14.

No tocante à regularidade fiscal, maior cautela é necessária ao analisar, isoladamente, os dispositivos do art. 58 da Lei das Estatais, haja vista que esta regularidade é composta por um conjunto de “dívidas”. O art. 195, §3º, da Constituição Federal é expresso ao dispor que a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.  Incontroverso que a previdência social é uma das espécies que compõem a certidão de regularidade fiscal, devendo ser exigida, portanto, a certidão de regularidade junto ao INSS, em razão de sua matriz constitucional, ainda que não expressamente prevista na Lei das Estatais.

Ainda que não tenha alicerce constitucional, a regularidade perante à Fazenda Nacional tem previsão no Código Tributário Nacional, em seu art. 193, já prevê que, salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que o contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada.

Portanto, desde a edição da Lei das Estatais já defendíamos, como forma de atender aos ditames de eficiência trazidos da própria Lei, que as estatais, em seus regulamentos, poderiam exigir apenas as certidões de regularidade perante o INSS, o FGTS e a regularidade perante a Fazenda Pública a qual a estatal é vinculada, podendo não exigir, portanto, a CNDT e a declaração de que emprega menor por parte dos licitantes.

Nessa esteira, a Lei nº 13.979/2020 dispensa a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, mantendo a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e a declaração de que não emprega menor, sendo certo que, ao nosso entender, quando da sua utilização por uma estatal, esta deve se orientar pelas disposições de seu regulamento e, uma vez, dispensando o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição, manter a dispensa de apresentação deste documento. Noutro giro, caso preveja a regularidade fiscal e trabalhista, podem deixar de exigir, ante a permissibilidade trazida pela legislação de enfrentamento ao coronavírus.

Sendo a Lei nº 13.979/2020 silente sobre a certidão de regularidade junto ao FGTS, a estatal, ou qualquer outro órgão ou entidade, deve continuar solicitando como documento de habilitação.

Outro ponto que merece atenção é a consensualidade, grande avanço para os contratos trazido pela Lei das Estatais, tendo em vista que seu art. 81, §1º dispõe que o contratado poderá aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato.

Como já afirmamos[3],
 

O art. 81, §1º da Lei das Estatais tem redação quase que copiada da Lei n.º 8.666, com a alteração relevante especialmente para o contratado, que não mais é obrigado a aceitar o aumento ou a diminuição dos quantitativos, o contratado agora poderá ou não aceitar a alteração da planilha. Será, portanto, uma alteração consensual de quantitativos. Inegavelmente foi um grande avanço em termos contratuais, colocando as partes em pé de igualdade para negociar um contrato que é, desde sua gênese, instrumento bilateral, abandonando a alteração unilateral do regime geral.

No entanto, essa bilateralidade em se negociar as alterações contratuais quantitativas trazida pela Lei das Estatais é relativizada pela Lei nº 13.979/2020, não apenas em relação ao percentual de 25%, aplicável outrossim ao regime contratual da Lei nº 8.666/1993, mas também à própria consensualidade, haja vista que o art. 4º-I diz que para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos na Lei nº 13.979/2020, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.    

Note-se, contudo, que não é uma imposição direta: os contratos poderão admitir alterações em até 50%, porém, uma vez admitida essa possibilidade de modificação excepcional, o contratado é obrigado a aceita-las.

Nesse ponto entendemos, destarte, que deve prevalecer as disposições da Lei nº 13.979/2020, por se tratar de medida especial e temporária que busca o pleno enfrentamento à pandemia do coronavírus, de maneira que, sendo realizada a dispensa de licitação prevista pela Lei referida por uma empresa estatal, o contrato dela decorrente poderá não observar a alteração consensual admitida pela Lei das Estatais, de maneira que o acréscimo e/ou a supressão dos quantitativos poderão ser impostas pela Administração ao contratado no limite alargado de até 50% do valor inicialmente contratado. Mantem-se, contudo, a vedação à compensação, nos termos da Orientação Normativa 50 da Advocacia Geral da União[4] e da jurisprudência do Tribunal de Contas da União[5].

É inegável que a edição da Lei nº 13.979/2020, e suas alterações introduzidas pela Medida Provisória nº 926/2020, revelou-se uma medida consciente e inovadora, no sentido de se relativizar procedimentos licitatórios e contratuais como forma de se buscar rápidos e eficientes efeitos nas contratações públicas que objetivam o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, devendo essa relativização ser observada também no que tange à utilização da Lei pelas empresas estatais.

Ante o exposto, entendemos que esses dois pontos, a exigência de certidões de habilitação e as alterações quantitativas dos contratos, devem ser observados com atenção pelas empresas públicas e sociedades de economia mista, especialmente com vistas a harmonizar a Lei nº 13.979/2020 com a Lei nº 13.303/2016 e seus regulamentos internos de licitações e contratos.
 

Renila Lacerda Bragagnoli
Advogada da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba – Codevasf. Chefe da Unidade de Assuntos Administrativos (Consultivo) da Assessoria Jurídica.
Mestranda em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Especialização em Políticas Públicas, Gestão e Controle da Administração pelo Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP/DF).

Referências

BRAGAGNOLI, Renila Lacerda. Lei n.º 13.303/2016: reflexões pontuais sobre a lei das estatais [livro eletrônico]. Curitiba: Editora JML, 2019. Disponível em https://editora.jmlgrupo.com.br/

REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, MarcusVinícius Reis de. Contratação Pública Extraordinária no Período do Coronavírus. Disponível em http://rcl.adv.br/site/contratacao-publica-extraordinaria-no-periodo-do-coronavirus-19-livreto-orientativo/


[1]Disponível em http://rcl.adv.br/site/contratacao-publica-extraordinaria-no-periodo-do-coronavirus-19-livreto-orientativo/
[2]BRAGAGNOLI, Renila Lacerda. Lei n.º 13.303/2016: reflexões pontuais sobre a lei das estatais [livro eletrônico]. Curitiba: Editora JML, 2019. Disponível em https://editora.jmlgrupo.com.br/
[3]BRAGAGNOLI, Renila Lacerda. Lei n.º 13.303/2016: reflexões pontuais sobre a lei das estatais [livro eletrônico]. Curitiba: Editora JML, 2019. Disponível em https://editora.jmlgrupo.com.br/

 

[4]Orientação Normativa AGU 50/2014: Os acréscimos e as supressões do objeto contratual devem ser sempre calculados sobre o valor inicial do contrato atualizado, aplicando-se a estas alterações os limites percentuais previstos no art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666, de 1993, sem qualquer compensação entre si.
[5]Precedentes do Plenário: Acórdão nº 2.059/2013, Acórdão 1536/2016.

Renila Lacerda Bragagnoli

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