O objetivo deste texto é apresentar, sem pretensão de esgotar o tema, algumas novidades acerca da pré-qualificação previstas na Nova Lei de Licitações. Assim, em um primeiro momento, esclarecemos que, de acordo com o inc. XLIV do art. 6.º da 14.133/21, a pré-qualificação consiste em “procedimento seletivo prévio à licitação, convocado por meio de edital, destinado à análise das condições de habilitação, total ou parcial, dos interessados ou do objeto”. Como vemos, então, a pré-qualificação configura-se como um procedimento auxiliar das atividades decisórias a serem desenvolvidas em posterior licitação, não integrando um certame específico.
O art. 78, por sua vez, esclarece que o instituto além de ser um dos instrumentos auxiliares das licitações e das contratações, precisa ter seus critérios claros e objetivos definidos em Regulamento. Mesmo que ainda não tenhamos aludida regulamentação, o art. 80 traça algumas diretrizes.
Inferimos dos incs. I e II do art. 80 da Lei 14.133/21 que a pré-qualificação, como um procedimento técnico-administrativo auxiliar das licitações, tem por objetivos: (a) selecionar previamente licitantes que reúnam condições de habilitação para participar de futura licitação ou (b) selecionar previamente bens que atendam às exigências técnicas ou de qualidade estabelecidas pela Administração.
A primeira hipótese, que visa à identificação de fornecedores, na nomenclatura de Marçal Justen Filho, corresponderia à modalidade da pré-qualificação subjetiva; a segunda, que visa à identificação de bens corresponderia, por seu turno, a modalidade da pré-qualificação objetiva[1]:
“A pré-qualificação subjetiva poderá ser efetuada por grupos ou segmentos de objetos a serem contratados, segundo as especialidades dos fornecedores. Ela é admitida em diversas espécies de pretensões contratuais, como aquisições, serviços e obras. Já a pré-qualificação objetiva envolve a identificação de bens aptos ao atendimento da pretensão contratual. Nos termos da Lei 14.133/21, ela é destinada a identificar ‘bens que atendam as exigências técnicas ou de qualidades estabelecida pela Administração.”[2]
Consoante previsto no art. 80, § 7º, a pré-qualificação pode ser de 2 espécies: parcial ou total. Na total, a pré-qualificação engloba todos os requisitos técnicos ou de habilitação necessários para futuros certames, já na parcial, apenas se exige parte da documentação que comprove a qualificação técnica que será futuramente requerida[3]. Logo, a distinção entre pré-qualificação total ou parcial não faz sentido em relação à pré-qualificação objetiva (art. 80, inc. II), apenas para a pré-qualificação subjetiva (art. 80, inc. I). [4]
Aliás, aproveitamos a temática para fazer uma breve digressão acerca das aproximações e afastamentos entre a pré-qualificação e o cadastramento, também previsto no rol do art. 78 como um procedimento auxiliar das licitações e contratações. No que concerne à pré-qualificação objetiva não há pontos de contato, pois, grosso modo, o cadastramento de fornecedores almeja a comprovação da titularidade das condições de habilitação de um sujeito, enquanto a pré-qualificação objetiva busca a comprovação da qualidade dos produtos que se pretende adquirir. Apesar de a pré-qualificação subjetiva estar mais próxima do cadastramento, com este também não se confunde:
“O cadastramento envolve basicamente a avaliação dos requisitos de habilitação relativamente à habilitação jurídica, à qualificação econômico-financeira e à regularidade fiscal. A pré-qualificação subjetiva parcial consiste no reconhecimento formal da titularidade por um sujeito de determinados requisitos de qualificação técnica. Já a pré-qualificação subjetiva total envolve todos os requisitos de habilitação e se aproxima da figura do cadastramento. (…) Não se afigura despropositado conjugar, ao menos parcialmente, as atividades de cadastramento e de pré-qualificação subjetiva. Eventualmente, a mesma documentação pode se prestar para o cadastramento e para a pré-qualificação subjetiva. Usualmente, o cadastramento versa sobre os requisitos de habilitação jurídica, habilitação fiscal, social e trabalhista e habilitação econômico-financeira. Já a pré-qualificação subjetiva destinar-se-ia mais propriamente a avaliar a habilitação técnica.” [5]
A partir da noção que a pré-qualificação é um procedimento que auxilia nas atividades decisórias a serem desenvolvidas em licitações posteriores, e que justamente por isso não integra um processo licitatório específico, notamos que a pré-qualificação tem dupla eficácia, uma declaratória e outra constitutiva:
O ato administrativo de pré-qualificação apresenta eficácia declaratória no tocante ao preenchimento por um sujeito de requisitos genéricos e (ou) específicos de habilitação ou ao atendimento por um produto de requisitos determinados de qualidade para satisfazer as necessidades administrativas.
Os efeitos constitutivos do ato administrativo consistem na atribuição ao titular da pré-qualificação do direito ou à habilitação técnica ou ao reconhecimento de que um produto específico satisfaz determinados atributos de qualidade mínima. Isso significa o descabimento de promover a revisão dos requisitos de habilitação do sujeito ou de qualidade do produto em licitações e contratações posteriores. (…).
A eficácia declaratória e constitutiva da pré-qualificação se produz nos limites estabelecidos previamente pela Administração Pública. Existe um vínculo entre a extensão dos requisitos examinados por ocasião da pré-qualificação e a amplitude dos efeitos resultantes. A pré-qualificação é limitada aos requisitos efetivamente verificados pela Administração Pública.[6]
Resumindo, a pré-qualificação se mostra como “um ato administrativo declaratório do preenchimento a requisitos determinados de qualificação técnica por um sujeito e (ou) atributo mínimo de qualidade por um objeto”, produzindo “efeito em procedimentos licitatórios ou contratações administrativas futuras, pela desnecessidade da nova apresentação da documentação pertinente.” Assim, com a pré-qualificação “reduz-se exponencialmente a repetição de avaliações técnicas de licitantes ou de bens de interesse, ampliando a eficiência da atividade administrativa”, como também “sua adoção para diversas pretensões contratuais compatíveis gera (…) redução de custos transacionais (…). [7]
No que se refere ao procedimento, verificamos que este deve ficar permanentemente aberto para a inscrição de interessados (art. 80, §2º). É com base no seu caráter permanente e por não se resumir e não se esgotar a apenas uma única licitação, que a pré-qualificação subjetiva prevista na Lei 14.133/21 se diferencia daquela prevista no art. 114 da Lei 8.666/93:
Tratava-se de um procedimento destinado a simplificar um procedimento licitatório determinado e específico. Já a pré-qualificação da Lei 14.133/2021 apresenta essa natureza “permanente”. Ou seja, pode ser aplicada para uma série indeterminada de licitações. Isso não impede, no entanto, que a pré-qualificação seja estruturada para produzir efeitos relativamente a uma específica licitação. Isso se passa nos casos em que a participação numa determinada licitação for restrita aos pré-qualificados. [8]
A doutrina ainda destaca que no âmbito da Lei 8.666/93 o procedimento estava destinado apenas para a modalidade concorrência. Ademais, era recomendado pelo TCU apenas para casos nos quais o objeto da licitação requeresse uma análise mais apurada da qualificação técnica dos interessados. “Havia certa desconfiança porque, no modelo [da] Lei 8.666/93, a pré-qualificação ampliava o risco de conluio entre pré-qualificados, já que nos contornos da Lei 8.666/93, a pré-qualificação funcionava apenas como uma antecipação da parte do certame relacionada à aferição técnica dos interessados”. [9]
No edital devem constar as informações mínimas necessárias para definição do objeto (art. 80, §3º, inc. I), como também a modalidade, a forma da futura licitação e os critérios de julgamento (art. 80, §3º, inc. II). A doutrina alerta que o instituto não deve ser desvirtuado, vale dizer, não se devem fazer no edital exigências excessivas ou desnecessárias, que em tese não poderiam constar na qualificação de uma licitação concretamente considerada. “A adoção da pré-qualificação [subjetiva] não autoriza a ampliação de requisitos de habilitação além daqueles autorizados no art. 66 da Lei 14.133/21.”[10]
De outra sorte, segundo o inc. I do §8º do art. 80 da Lei 14.133/21, a certificação oriunda da pré-qualificação tem validade de no máximo 1 ano e pode ser utilizada a qualquer tempo. O escopo de tal prazo é evitar que o risco de defasagem entre a pré-qualificação e a realidade concreta dos fatos afete negativamente a aquisição da Administração; o prazo também busca incentivar os licitantes a manterem as condições exigidas para a pré-qualificação. Acerca do tema, registramos, ainda, que nada impede que durante o prazo de validade da certificação ocorra uma atualização e/ou ampliação das condições da pré-qualificação. “Assim, por exemplo, o sujeito pode comunicar à Administração que adquiriu determinadas habilidades de que não dispunha anteriormente e tal autoriza o seu enquadramento em categoria distinta de pré-qualificação”. [11]
Já o inc. II do §8º, sublinha expressamente que o prazo de validade da pré-qualificação não pode ser superior (ultrapassar) ao prazo de validade dos documentos apresentados pelos interessados. O dispositivo merece ser interpretado com cautela, pois pode ocorrer que durante o prazo de validade do certificado de pré-qualificação algum documento apresentado pelo interessado venha a vencer/perder seu prazo de validade (inferior a 01 ano), nesse caso não se faz necessário refazer todo o procedimento, basta que o interessado comprove, mediante nova documentação com prazo de validade pertinente, a manutenção doas condições requeridas. [12]
A doutrina sinaliza, por derradeiro, que a previsão de extinção da pré-qualificação em virtude do esgotamento do prazo não impede que a pré-qualificação se encerre antes por fato superveniente. “A extinção da pré-qualificação poderá apresentar natureza sancionatória. Tal se passará quando a causa da extinção for uma conduta defeituosa, não satisfatória ou reprovável imputável ao titular da pré-qualificação. A questão pode envolver quer a pré-qualificação subjetiva como a pré-qualificação objetiva.”[13]
A apresentação de documentos deve ser feita junto ao órgão ou comissão indicada pela Administração, que deve examiná-los no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis e determinar correção ou reapresentação de documentos, quando for o caso, com vistas à ampliação da competição (art. 80, §4º). Os licitantes e os bens pré-qualificados devem ser obrigatoriamente divulgados e mantidos à disposição do público (art. 80, §9º). Sinalizamos que a pré-qualificação não pode ser concedida quando existir algum impedimento jurídico sobre o requerente da certificação, tal como estar sancionado com o impedimento de licitar e contratar com a Administração. [14] Do ato que defira ou indefira pedido de pré-qualificação de interessado, cabe recurso no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data de intimação ou de lavratura da ata (art. 165, inc. I, a).
Por fim, informamos que de acordo com a regra fixada no §10 do art. 80, a licitação decorrente do procedimento da pré-qualificação poderá ser restrita a licitantes ou bens pré-qualificados. Este caso configura-se como:
“uma solução diferenciada e que não se identifica com a pré-qualificação usual e normal. Usualmente, a pré-qualificação é uma faculdade destinada a ampliar a competição e facilitar a participação de interessados. A restrição em questão impede que os não pré-qualificados disputem o certame. (…) A solução somente é admissível nos casos em que a complexidade do objeto licitado propicie a inconveniência de submeter a avaliação dos requisitos de habilitação ou de qualidade mínima a uma disputa no âmbito da licitação. São aqueles casos em que a complexidade dos requisitos tende a gerar conflitos e disputas, eis que envolvem situações problemáticas. Uma outra circunstância que autoriza a restrição reside na conveniência de restringir a disputa apenas a licitantes e a produtos dotados de atributos incontestáveis. Trata-se de eliminar o risco de propostas por sujeitos ou de objetos cuja idoneidade não tenha sido examinada com a cautela e a minúcia apropriada.” [15]
Seja como for, optando por fazer uma licitação restrita aos pré-qualificados são necessárias algumas cautelas, já que tal restrição pode aumentar os riscos de desvios da competição. “Assim se passa porque existe uma competição mais reduzida, se a possibilidade de terceiros ingressarem no mercado para disputar o objeto licitado. Portanto, os inconvenientes gerados pela restrição devem ser compensados por razões econômicas e jurídicas satisfatórias”. [16]
Como pudemos observar desse breve panorama, que não pretendeu esgotar o tema, mas apenas pontuar algumas novidades, a pré-qualificação prevista na Lei 14.133/21 em virtude de seu caráter permanente e por não se limitar a auxiliar a apenas um certame/modalidade, em quase nada se assemelha daquela fixada na Lei 8.666/99. As novidades pontuadas indicam que o instrumento terá seu alcance ampliado e que pretende concretizar especialmente os princípios da economicidade e eficiência nas contratações.