Recebimento de hospitalidades por servidores para participação em eventos privados

Recebimento de hospitalidades por servidores para participação em eventos privados: riscos, oportunidades e o limite ético nas relações com fornecedores

Resumo:

Constitui estratégia comezinha de marketing empresarial das empresas que vendem tecnologia, a promoção de eventos técnicos e sociais, de natureza comercial, com o objetivo de apresentar seus serviços, produtos e soluções. Frequentemente, para esses eventos, que podem ser feiras de negócio, patrocinados por um pool de empresas do mesmo segmento, ou mesmo eventos exclusivos, as empresas patrocinadoras oferecem convites e até mesmo alguns mimos para atrair a atenção do potencial mercado consumidor. Em que pese essa estratégia ser vista com normalidade no campo do comércio na iniciativa privada quando direcionada ao setor público assume contornos mais sensíveis. Se de um lado a participação em eventos dessa natureza é importante para os órgãos públicos para manterem-se atualizados tecnologicamente, por outro, há que se atentar para a observância dos princípios da transparência, impessoalidade e da moralidade. Conciliar essas duas dimensões constitui o principal desafio abordado neste trabalho.

Palavras-chave: Licitação. Conflito de interesses. Eventos. Moralidade. Impessoalidade. Riscos. Governança pública. Compliance. Responsabilidade do agente público.

Summary

Organizing technical and social events of a commercial nature is a common marketing strategy adopted by technology companies to present their services, products, and solutions. These events — which may include trade fairs sponsored by a pool of companies in the same sector or exclusive corporate gatherings — frequently offer invitations and even gifts to attract the attention of potential consumers. Although such practices are considered normal within private sector commerce, when directed toward the public sector they acquire more sensitive implications. On one hand, participation in these events is essential for public agencies to remain technologically up-to-date; on the other, strict adherence to the principles of transparency, impartiality, and morality must be observed. Reconciling these two dimensions constitutes the central challenge addressed in this paper.

Keywords: Public procurement; Conflict of interest; Events; Morality; Impartiality; Risk management; Public governance; Compliance; Accountability of public officials.

Sumário

1. Linhas introdutórias. 2. A prática usual no mercado para apresentação de produtos e captação de clientes. 3. O peculiar nicho de mercado governamental. 4. Ética na participação de servidores em feiras e convenções: os cuidados que devem ser adotados. 5. Principais problemas éticos concretos decorrentes da aceitação de hospitalidades pelos servidores públicos. 6. Arcabouço normativo que trata do tema. 7. Contraponto: o equilíbrio entre o incentivo à inovação e à formação de parcerias do setor público com o setor privado e os princípios éticos da administração pública 8. Limites legais a serem observados. 9. Conclusões.

1. Linhas introdutórias

A interação entre a Administração Pública e o setor privado é um fenômeno inevitável e até mesmo desejável para o desenvolvimento de políticas públicas e o fortalecimento de setores estratégicos da economia. Nesse contexto, não é incomum que servidores públicos recebam convites para participar de eventos privados organizados e financiados por empresas fornecedoras de bens e serviços para a Administração Pública. E, não raro, tais convites são acompanhados da oferta de alguma hospitalidade, como ingresso gracioso no evento, passagens aéreas, hospedagem, alimentação e, em alguns casos, até mesmo o pagamento de honorários, quando o servidor convidado é chamado a proferir uma palestra.

A despeito de a contratação de qualquer de seus produtos deva se dar por meio da realização de procedimento licitatório prévio, o fato é que essa parece ser a forma mais direta que as empresas têm de apresentar seus produtos e soluções. Afinal, se seus produtos não forem conhecidos, dificilmente serão contratados. Como a licitação pública não permite, em regra, a indicação de marca, exigindo que o Termo de Referência aponte especificações técnicas que reflitam o produto que poderá atender a necessidade de interesse público estampada no documento de formalização da Demanda-DFD[1], novos produtos, materiais e soluções tendem a não se encaixar em especificações antigas, o que inviabilizaria a formulação de propostas contemplando essas novas soluções.

Mas, sem dúvida, o recebimento de hospitalidades para participação em eventos comerciais como convenções e feiras de negócio, deve ser vista com cautela, mormente quando o participante convidado é um servidor que exerce funções na alta administração dos órgãos públicos, pelo elevado risco que se abre no sentido do conflito de interesses, justamente pela autoridade que exercem.

2. A prática usual no mercado para apresentação de produtos e captação de clientes.

O planejamento de ações é requisito básico em qualquer processo de administração. Administrar é estabelecer uma direção de governabilidade na qual dela são componentes intrínsecos: o planejamento, organização, direção e controle.

Acerca dos benefícios da participação em feiras de negócio e eventos, o SEBRAE reconhece o valor estratégico dessa medida para o fim de aumentar a visibilidade da marca e dos produtos da empresa. Nesse sentido, assim discorre:

Eventos corporativos oferecem uma oportunidade única para as empresas aumentarem a visibilidade de suas marcas e captar leads qualificados. Essas ocasiões permitem interações diretas com o mercado, facilitando o estabelecimento de conexões comerciais e a compreensão de novas tendências de mercado.[2]

Mas a renomada entidade do Serviço Social Autônomo não restringe a importância das feiras de negócio aos benefícios para as empresas que colocam seus produtos no mercado de consumo. Também os potenciais clientes se servem, e muito, dessas oportunidades, assim arrematando:

Feiras e eventos são mais do que apenas oportunidades de vendas, eles são necessários para entender melhor as dinâmicas do mercado, aprender com os líderes do setor e testar inovações em um ambiente real. Aproveitar ao máximo essas oportunidades pode definir o futuro de uma empresa no mercado competitivo atual. (GN)

Já a respeitada consultoria Brandme, especialista em gestão de marca e planejamento estratégico, reconhece que promover e participar de eventos é uma das principais estratégias de promoção da marca de uma empresa e recomenda fortemente que essa ação deve fazer parte do plano de marketing que priorize a exposição da marca e a geração de demanda, destacando que:

Qualquer evento permite que a marca da empresa, juntamente com seus produtos e serviços, sejam degustadas sem dispersão e por uma audiência altamente qualificada que muitas vezes até paga para participar de um evento focado.[3]

Nesse sentido, e considerando que os órgãos públicos são fortes clientes, é forçoso reconhecer que a participação de servidores públicos em uma feira de negócio não é um mal em si. Muito ao contrário, é mesmo desejável a fim de possibilitar que novos produtos, tecnologias e serviços possam ser contratados. Para as empresas, atrair potenciais clientes para conhecer suas marcas e produtos é uma prática usual e representa investimento das empresas para que seus produtos e soluções se tornem conhecidos do mercado consumidor.

3. O peculiar nicho de mercado governamental.

Para aquele que se propõe a colocar produtos ou serviços no mercado de consumo, uma recomendação unânime entre os especialistas em planejamento estratégico é que a empresa deve identificar em qual nicho de mercado ela pretende atuar. Isto porque, o mercado de atuação é muito amplo. Sem a identificação de uma fatia específica desse mercado, a empresa assume o risco de elevar seu investimento em marketing e mesmo assim, não atingir os leads qualificados.[4]

Um nicho de mercado pode ser conceituado como uma subdivisão específica e rigorosamente delimitada de um mercado mais amplo, composta por um grupo de consumidores que compartilham características socioeconômicas, comportamentais ou funcionais homogêneas, cujas necessidades permanecem parcial ou totalmente não atendidas pelas ofertas generalistas disponíveis. Em termos conceituais, distingue-se do segmento de mercado por sua maior granularidade e especialização, implicando estratégias de posicionamento e desenvolvimento de soluções orientadas para um público-alvo altamente definido.

Segundo o consultor Ilan Weinttreich[5], o estabelecimento de um nicho de mercado permite a criação de um plano de marketing mais personalizado, o que traz vantagens competitivas importante para as empresas, tais como, melhor alocação de recursos, criação de barreiras competitivas mais altas, inovação direcionada, entre outras. Com extremo didatismo, autor oferece exemplos de como o estabelecimento de um nicho pode impactar os negócios. Cita que um dentista, buscando reformar seu consultório, provavelmente dará preferência a um arquiteto especializado em ambientes de saúde, em detrimento de outros profissionais generalistas (usa-se a expressão não nichados).

Olhando por esse prisma, há de se reconhecer que o mercado governamental representa um nicho bem específico do mercado consumidor, com enorme potencial para atrair o interesse das empresas. Isto porque o Estado, por meio de seus órgãos e entidades vinculados, sem dúvida, é o maior e mais regular comprador. Segundo dados do Ipea[6], as compras governamentais chegam a atingir o patamar médio de 12,5% do PIB nacional. Em números frios, está-se falando em algo superior a R$ 140 bilhões de reais em oportunidade de negócio, tomando por base o PIB divulgado para o ano de 2024[7]. Como o Estado nunca encolhe, ao revés, a tendência é crescer em serviços à sociedade, significa que a empresa que escolhe esse nicho de mercado tem à frente uma gama enorme de possibilidades comerciais.

Mas, diferentemente dos nichos de mercado do setor privado, o governamental oferece desafios diversos às empresas que querem vender seus serviços e produtos aos órgãos públicos.

Como a venda ao Governo depende, na maioria dos casos, de sucesso em disputas licitatórias, e estas, são regidas por um intrincado e complexo conjunto de normas legais, as empresas que se aventuram especializar nesse campo, acabam se especializando tão profundamente, que, não raro, passam a atuar exclusivamente para órgãos do governo.

Essa especialização envolve conhecimento sobre a legislação, domínio das ferramentas de licitação eletrônica, habilidades na interpretação de editais e termos de referência e também no acompanhamento dos contratos. Requer, portanto, alto e específico investimento.

A gestão de custos também é diferenciada. Ao contrário do mercado privado, que admite uma série de variáveis para seus recebíveis (cartão de crédito, financiamento, leasing, marketplace), nas vendas governamentais a regra geral é somente receber o valor da fatura após a entrega do produto ou serviço e decorrido certo tempo necessário aos atos de liquidação da despesa. Sem contar com o risco de atrasos de pagamento, que, infelizmente, não são raros na Administração Pública brasileira.

Todas essas circunstâncias, somadas, fazem dessas empresas verdadeiras especialistas em venda governamental. E, claro, para que seus produtos e serviços possam ser conhecidos, uma das melhores alternativas é o patrocínio de eventos comerciais tendo como público-alvo, os representantes dos órgãos da administração pública.

4. Ética na participação de servidores em feiras e convenções: os cuidados que devem ser tomados

Muito autores têm enfrentado o problema ético decorrente da interação entre o agente público, que detém algum poder ou influência e o setor privado, mormente nas relações contratuais advindas dessa interação. Do direto regulatório, extrai-se a chamada teoria da captura (ou regulatória), que constitui um arcabouço crítico para entender como o poder regulador do Estado pode ser desviado para servir interesses privados, mesmo sob uma aparência formal de legalidade.

Tal teoria oferece lente privilegiada para interpretar os riscos envolvidos na participação de servidores públicos em eventos patrocinados por empresas que mantêm ou pretendem manter relações contratuais com o Estado. Desde a formulação clássica, com George J. Stigler[8], entende-se que agentes reguladores e decisores estatais podem, de forma gradual, alinhar sua atuação aos interesses dos regulados, em detrimento do interesse coletivo. Richard Posner[9] distingue a regulação legítima — orientada ao interesse público — da “captura”, quando a função normativa ou decisória passa a atender aos regulados, mesmo sem indícios explícitos de corrupção.

No contexto brasileiro, Márcio Iório Aranha[10] aproxima a teoria da escolha pública do desenho jurídico-regulatório, alertando que a captura pode ocorrer pela simples internalização, pelo agente, da agenda privada, gerando decisões enviesadas. Garnica e Kempfer[11], enfatizam que a independência formal dos órgãos não basta para prevenir a captura, sendo necessário adotar salvaguardas institucionais e critérios de transparência.

Quando empresas privadas patrocinam eventos, congressos ou treinamentos, o mais das vezes, não oferecem apenas conhecimento técnico, mas também hospitalidades — transporte, hospedagem, alimentação ou inscrição gratuita. Esse patrocínio tem potencial para criar um vínculo relacional, que pode configurar “captura relacional” ou mesmo “captura informacional”, conforme descrevem Pedro Ivo e Delia Rodrigo, citando Levine & Forrence (1990)[12]. Com isso, abre-se o risco de que a percepção de gratidão, a exposição a narrativas comerciais e a assimetria informacional resultante aumentam o risco de que decisões administrativas futuras favoreçam, consciente ou inconscientemente, o patrocinador.

5. Principais problemas éticos concretos decorrentes da aceitação de hospitalidades pelos servidores públicos

Ao receber e aceitar hospitalidades de empresas fornecedoras do Estado, o órgão público atrai o risco de quebra de integridade, mormente quando o convidado é um servidor que detém poder de decisão de esfera mais elevada.

Rafael Biemmi[13] ressalta que, na gestão de riscos, “é impossível eliminar completamente o fator de risco, por isso usamos o termo ‘mitigação’. Nos casos de fraude e corrupção, essa tarefa se torna ainda mais complexa, pois envolve não apenas processos, controles e sistemas, mas também pessoas”.

O autor destaca que a interação humana é um dos principais pontos de vulnerabilidade, como evidenciado em um estudo de 2014 da IBM, que apontou que 95% das falhas cibernéticas estavam ligadas a erros humanos. Em outro estudo de 2017 da McKinsey[14] mostrou que a automação de processos pode reduzir drasticamente esses riscos, enfatizando que quanto menor a intervenção humana, menores são os riscos.

No contexto dos processos licitatórios, a interação humana ainda é significativa, o que reforça a necessidade de controles internos robustos para mitigação dos riscos próprios da atividade.

A partir das referências suso indicadas, não causa dificuldade a identificação de riscos éticos que são inerentes a esse tipo de situação.

A governança pública é orientada, dentre outros, pelo princípio da responsabilidade corporativa (ou socioambiental). Conforme discorre o Código de Boas Práticas de Governança Pública-IBCG (2023):[15]

A organização deve zelar pela sua perenidade e pelo impacto das suas atividades na sociedade e no meio ambiente, assumindo a responsabilidade por suas ações e resultados e demonstrando-os às partes interessadas.

Nesse contexto, a organização deve buscar, além de resultados financeiros favoráveis, ser e demonstrar ser responsável e transparente, assumindo as consequências de seus atos, prestando contas de de forma ativa.

Dito isto, o primeiro risco que se identifica quando um servidor recebe hospitalidades de um agente fornecedor do Estado é a percepção, para os stakeholders internos e externos, de favorecimento ou mesmo o conflito de interesse entre as partes. Se o risco se torna um realidade, mesmo não havendo efetiva prática ilícita, há um prejuízo institucional decorrente da danificação da sua marca e da sua legitimidade pública.

Outro risco inerente é a possível dependência ou gratidão implícita dirigida a quem forneceu as hospitalidades. Ao ser agraciado, pode ocorrer de o servidor se sentir compelido, de alguma forma, a retribuir o agrado, por exemplo, convidando a empresa patrocinadora a participar, ainda que indiretamente, de decisões futuras ou receber informações privilegiadas.

Também se abre o risco de ocorrência de movimentos de influência da empresa patrocinadora. A empresa pode ter conhecimento prévio da necessidade do órgão e acabar influenciando exigências habilitatórias ou especificações técnicas que lhes sejam mais favoráveis, em prejuízo ao princípio da livre concorrência.

6. Arcabouço normativo que trata do tema

O arcabouço legislativo pátrio aborda essa questão em diversos textos legais, a começar pela Constituição da República, de 1988. Nela, se vê estampado no caput do seu art. 37, os princípios que regem a Administração Pública direta e indireta, dentre eles, se destacando, para os fins deste estudo, o da legalidade, da impessoalidade, moralidade e da publicidade e eficiência. São pontos cardeais que impõem seja a atuação dos agentes públicos pautada pela estrita observância da lei, pela neutralidade em relação a interesses privados, pela ética administrativa, pela transparência e pela busca de resultados eficientes para o interesse coletivo.

O estatuto do servidor público civil da União — Lei nº 8.112/1990 — prevê deveres e proibições que delimitam a conduta do agente. No contexto do tema em apreço, vê-se especialmente o art. 116, II (ser leal às instituições a que servir) e IX (manter conduta compatível com a moralidade administrativa); art. 117, VI (cometer a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos em lei, o desempenho de atribuição que seja de sua responsabilidade ou de seu subordinado; ); IX (vedação ao servidor valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública); e, XII (receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições).

A Lei nº 8.429/1992, alterada pela Lei nº 14.230/2021, considera ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração “receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta” em razão das atribuições do cargo (art. 11, VII). Sendo assim, o recebimento de hospitalidades tais como como passagens, hospedagem ou inscrições custeadas por empresa privada pode, portanto, a depender da circusntância, configurar ato de improbidade, especialmente se houver relação regulatória, contratual ou fiscalizatória entre o órgão e a empresa patrocinadora.

Do ponto de vista das empresas, a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) prevê a responsabilização objetiva por atos lesivos contra a Administração Pública, incluindo oferecer vantagem indevida a agente público (art. 5º, I). O custeio de viagens ou eventos, sem transparência e sem autorização formal do órgão público, pode ser interpretado como vantagem indevida, mormente se, posteriormente ao evento, a empresa patrocinadora se beneficiar ilegitimamente de alguma forma em contratos com o órgão a que pertence o servidor convidado.

7. Contraponto: o equilíbrio entre o incentivo normativo à inovação e à formação de parcerias do setor público com o setor privado e os princípios éticos da administração pública

A promoção da inovação e a busca de maior eficiência na prestação de serviços públicos têm levado o Estado brasileiro a criar mecanismos normativos que favoreçam a cooperação entre o setor público e o setor privado. Instrumentos como parcerias para inovação, contratos de colaboração, modelos de concessões e as PPPs (parcerias público-privadas) representam uma evolução no paradigma tradicional da Administração Pública, aproximando-a de práticas de governança mais modernas.

A começar pela CRFB, que em seu art. 219 reconhece a importância da ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento nacional sustentável. Já o art. 174 prevê que o Estado exercerá, como agente normativo e regulador, funções de incentivo ao setor privado, harmonizando o desenvolvimento econômico.

Por lado outro, o marco legal de ciência, tecnologia e inovação, instituído pela Lei nº 13.243/2016, criou medidas de incentivo à inovação, prevendo que a União, os Estados e os Municípios podem fomentar a cooperação entre instituições científicas e tecnológicas e o setor empresarial, inclusive mediante compartilhamento de laboratórios, equipamentos e recursos humanos. Vale lembrar que no julgamento da ADI nº 5.152, o STF considerou constitucional o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, afirmando que a cooperação entre entes públicos e privados é compatível com os princípios constitucionais e necessária para o avanço científico e tecnológico.

A Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004) é outro exemplo de que a legislação vem se modernizando com o fito de melhor integrar o Poder Público ao setor privado, ao estabelecer normas gerais para a contratação de concessões patrocinadas e administrativas, como forma de atrair investimentos privados para infraestrutura e serviços públicos de interesse coletivo.

O Decreto nº 10.531/2020 fixa a Estratégia Nacional de Inovação, definindo diretrizes para a política nacional de inovação, prevendo a ampliação de ambientes de experimentação regulatória (regulatory sandboxes) e a integração entre setor público e setor privado.

Também deve se mencionar as políticas públicas voltadas à parceria entre o segmento privado e o setor governamental. Os contratos de parceria para PD&I (pesquisa, desenvolvimento e inovação), com regras simplificadas de contratação, consubstanciadas no Decreto Federal nº 9.283/2018. O fomento direto e indireto, via subvenções econômicas, créditos e incentivos fiscais, instituída pela Lei nº 11.196/2005 (Lei do Bem).

Não se olvide que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) traz dispositivos expressos para promoção da inovação (art. 6º, XXII; art. 79) e introduz institutos voltados ao estreitamento das relações entre o poder público e o setor privado, como a audiência pública (art. 21), o diálogo competitivo (arts. 32 a 35), o procedimento de manifestação de interesse-PMI (art. 81), permitindo que a Administração realize interação com o mercado para construir soluções inovadoras antes da licitação.

E por fim, a Lei Complementar nº 182/2021 (Marco Legal das Startups) que disciplina a licitação para inovação tecnológica, introduzindo o Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) para testes e o posterior Contrato de Fornecimento sem nova licitação. A legislação busca fomentar o empreendedorismo inovador, permitindo a seleção de soluções tecnológicas que resolvam problemas de interesse público.

A conclusão a que se chega é que o incentivo normativo à inovação e à formação de parcerias público-privadas, por se tratar de uma realidade consolidada no ordenamento jurídico brasileiro, com respaldo constitucional, deve ser encarada como o ponto de equilíbrio entre o dever de observância aos mecanismos de governança, transparência e controle social e o aproveitamento das oportunidades oferecidas pelo setor privado. A consolidação de políticas públicas que promovam ambientes regulatórios inovadores e parcerias estratégicas é fundamental para que o Estado cumpra sua função de indutor do desenvolvimento econômico e social, sem abdicar da observância aos princípios da legalidade, da eficiência e da moralidade administrativa.

Disso decorre que, não há uma ilegitimidade intrínseca das práticas de expedição de convites e oferta de hospitalidade a servidores públicos. Muito ao contrário, o excesso de rigor na interpretação das normas de controle, de modo a inviabilizar por completo que agentes do Poder Público possam participar de feiras de negócios, convenções e outros eventos comerciais e técnicos, conduziria a administração pública, por não atuar no segmento econômico, à verdadeira estagnação tecnológica, ou seja, resultado opostos ao pretendido por todo o arcabouço normativo suso citado.

De fato, o que se deve coibir é o excesso, o luxo, o capricho, a quebra de integridade. E, para tanto, há mecanismos que, bem observados, são suficientes para resguardar o interesse coletivo, concatenando o interesse do Estado na busca de melhores soluções de serviços à sociedade.

8. Limites legais a serem observados

A Lei nº 12.813/2013 (Lei de Conflito de Interesses), regulamentada pelo Decreto Federal nº 10.889/2021 trata diretamente do tema, regulando a participação de servidores públicos do Executivo Federal em audiências e sobre a concessão de hospitalidades por agente privado, bem como o recebimento de presentes. Tais normas, em resumo, proíbem o recebimento de presentes por agentes públicos oferecidos por quem tenha interesse em decisão sua ou de colegiado do qual participe. De outro turno, não são considerados presentes, brindes de pequeno valor e hospitalidades.

Nos termos do regulamento, são considerados brindes os itens de baixo valor econômico e distribuído de forma generalizada, como cortesia, propaganda ou divulgação habitual (agendas, calendários de mesa, canetas etc.). Como baixo valor econômico, entende-se aquele menor que um por cento do teto remuneratório previsto no inciso XI do caput do art. 37 da CRFB, que atualmente está em R$ 46.366,19, em vigor desde 1º de fevereiro de 2025. Logo, para ser considerado brinde, o item não pode ter valor superior a R$ 463,61.

Hospitalidades são serviços ou despesas com transporte, alimentação, hospedagem, inscrição em eventos como cursos, seminários ou congressos, feiras ou com atividades de entretenimento, concedidos por agente privado para agente público no interesse institucional do órgão ou da entidade em que atua.

O recebimento de um item de hospitalidade pelo agente público deve ser autorizado no âmbito do órgão ou entidade, de acordo com os critérios estabelecidos no Capítulo VI do Decreto nº 10.889/2021. Caso o agente público receba hospitalidades em decorrência de suas atribuições, porém sem relação com o exercício de representação institucional, ou seja, sem a devida autorização do seu órgão ou entidade, essas serão consideradas presentes (a não ser que se enquadrem no conceito de brinde).

O recebimento de hospitalidades deve ser autorizado pela autoridade competente, o que significa que o convite, ainda que dirigido a um servidor, devem ser entendido como institucional, isto é, deve ser endereçado ao órgão ou entidade, e não de forma direta ao servidor. Além disso, a decisão de autorização deve ser fundamentada na análise de um conjunto de circunstâncias a serem considerados pela autoridade competente.

A primeira delas, é que a participação do servidor no evento deve ser do interesse institucional do órgão ou entidade (art. 19, §1º, I). O patrocínio da participação de um servidor, que ocupa um cargo executivo na área de TI de seu órgão, em uma feira de tecnologia, em tese, abarca tal condição, porquanto seria do interesse do órgão que este servidor, em razão do cargo que ocupa, tenha conhecimento das inovações tecnológicas disponíveis e, com isso, possa melhor cumprir com seu múnus público. No entanto, se este mesmo servidor é convidado para assistir a uma competição esportiva, com ingresso gracioso a um camarote com open bar e open food, não haveria que se falar em interesse institucional a favor do órgão ou entidade.

Também deve ser objeto de apreciação a existência de risco à integridade e à imagem do órgão ou da entidade (art. 19, §1º, II). Assim, a decisão deverá estar fundamentada em análise técnica de risco, na qual se avaliará o grau de probabilidade e impacto em decorrência da eventual decisão autorizativa. Após o cruzamento dessas variáveis, se o risco for qualificado como inaceitável, a decisão da autoridade deverá ser pelo indeferimento.

Outro ponto a ser abordado é que os itens recebidos devem estar relacionados aos propósitos legítimos da representação de interesses, em circunstâncias apropriadas de interação profissional, não devendo caracterizar benefício pessoal (art. 19, §2º, I e III). Podem ser considerados legítimos o recebimento de: inscrição no evento; transporte, mesmo que aéreo; hospedagem; alimentação, durante a realização do evento; materiais técnicos ou de apoio, tais como pastas, blocos, canetas, mostruários etc.

Escapam a esse conceito e, portanto, podem caracterizar benefício pessoal, o recebimento de ingressos para passeios turísticos, shows e espetáculos de entretenimento fora do evento, extensão do período de hospedagem para além do período de realização do evento; convites extensivos a acompanhantes; oferta de upgrades de transporte ou hospedagem entre outros.

Ainda que a princípio legítimos, os itens recebidos devem ter valor compatível com os padrões adotados pela administração pública federal em serviços semelhantes e/ou as hospitalidades ofertadas a outros participantes nas mesmas condições (art. 19, §2º, II). Se o servidor público recebeu transporte aéreo na primeira classe e os outros palestrantes do mesmo evento receberam bilhetes para classe econômica, restaria configurado o benefício pessoal inadmitido pela legislação.

Ademais destes, devem ser observados outros critérios de legitimidade complementares.

Em homenagem ao dever de transparência, a autorização deve ser registrada e publicada, permitindo escrutínio interno e externo. Além do interesse institucional, deve estar presente a necessidade funcional, isto é, a participação daquele servidor deve contribuir para o desempenho das suas funções. Tomando o exemplo acima, uma feira de negócios de soluções de TIC pode ser do interesse institucional de um Tribunal de Justiça. Mas não faria sentido algum a autorização para recebimento de hospitalidades para participação de servidor que tem atuação diretamente ligada a atividade-fim, e.g., como seria o caso de um assessor de magistrado sem função administrativa.

Deve se dar especial atenção ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que o padrão da hospitalidade não pode gerar percepção de privilégio ou vantagem indevida. Tal circunstância deve ser objeto quando da análise de risco conforme acima indicado.

E, por óbvio, ausência de contrapartida. O patrocinador não pode condicionar o benefício a qualquer decisão ou favorecimento, ou ainda à deferimento em pleitos administrativos, como concessão de revisão contratual ou prorrogação do contrato.

Ademais disso, a participação em eventos de interesse institucional pode ser autorizada pela Administração, com concessão de diárias e passagens (Lei nº 8.112/1990, art. 58), de modo a evitar que o custeio recaia sobre entes privados e, assim, se preserve a impessoalidade.

9. Conclusões

A participação de servidores públicos em eventos patrocinados por empresas privadas não só é possível, como desejável. Deve, no entanto, respeitar os princípios constitucionais, as normas legais e os códigos de ética aplicáveis.

A transparência, a autorização formal e o custeio preferencial com recursos públicos são medidas essenciais para prevenir conflitos de interesse e proteger a confiança da sociedade na Administração Pública.

A adoção de boas práticas de compliance tanto por órgãos públicos quanto por empresas privadas é fundamental para que essa interação seja saudável, legítima e contribua para o aprimoramento das políticas públicas e para o desenvolvimento econômico do país, de forma a conciliar a legítima capacitação técnica do servidor com a preservação da imparcialidade de suas decisões e opiniões técnicas, bem como na preservação da confiança da sociedade na Administração Pública.

Tudo isso considerado e com base nos princípios da Lei nº 12.813/2013, do Decreto nº 10.889/2021, da jurisprudência do TCU e das Diretrizes da OCDE sobre Integridade Pública, propõe-se o seguinte Roteiro para balizar as decisões sobre pedidos de participação em eventos patrocinados por entidades privadas, com a finalidade de se tornar uma ferramenta prática para prevenção de captura e conflitos de interesse:

Roteiro de Autorização de Hospitalidades

1. Finalidade Institucional

O evento ou atividade está diretamente relacionado às atribuições do órgão ou do servidor?

A participação do servidor gera benefício para a Administração Pública (capacitação, troca de informações, cooperação técnica)?

 Existe documento formal (ofício, convite, programa) que descreve objetivos e agenda?

2. Necessidade e Adequação

A presença do servidor é necessária (ex.: palestrante, representante oficial, participante técnico)?

A hospitalidade é essencial para viabilizar a participação (passagem, hospedagem, inscrição)?

O padrão da hospitalidade é compatível com a função pública e não extrapola o razoável (classe econômica, hotel de padrão médio, alimentação vinculada ao evento)?

3. Proporcionalidade e Limitação

A hospitalidade cobre apenas o período do evento (sem diárias extras para lazer)?

Não há extensão de benefícios a familiares ou acompanhantes?

Não inclui itens de lazer ou entretenimento alheios ao propósito institucional?

4. Integridade e Conflito de Interesses

O patrocinador é ou poderá ser fornecedor/contratado/regulado pelo órgão?

Há risco de que a hospitalidade influencie ou pareça influenciar decisões futuras?

Existe algum processo administrativo, licitação ou fiscalização em curso que envolva o patrocinador?

Caso haja risco, foram adotadas medidas de mitigação (declaração de conflito, registro, substituição do participante)?

5. Transparência e Registro

A proposta de hospitalidade foi registrada no sistema de agendas públicas (se aplicável)?

Haverá publicação da autorização e dos benefícios concedidos, conforme Decreto nº 10.889/2021?

A comissão de ética ou autoridade competente aprovou formalmente a participação antes da viagem?

Decisão Final

Aprovar: se todas as respostas forem “sim” e não houver risco relevante de conflito.

Aprovar com ressalvas: se houver algum risco identificado, mas mitigável (registrar justificativa formal).

Negar: se houver conflito de interesse, risco não mitigável, benefício desproporcional ou ausência de pertinência com a função pública.

*Luiz Claudio de Azevedo Chaves é Administrador Público e Jurista, pós-graduado em Direito Administrativo. Assessor Especial para Contratações de STIC do Tribunal de Justiça/RJ, onde é servidor de carreira, com mais de 30 anos de serviço. É Professor da Pós-graduação em Direito da UERJ, da Fundação Getúlio Vargas-FGV/PROJETOS e da PUC-RIO, além de diversas instituições de ensino e Escolas de Governo do País, Autor, dentre outras, das seguintes obras: Curso Prático de Licitações, os segredos da Lei 8.666/93, Lumen Juris, 2011; Licitação Pública, Compra e Venda governamental Para Leigos, Alta Books, 2016; Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratações de Serviços da Administração Pública, ed. JML, 2020; A Atividade de Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, 2ª. ed. Fórum, 2023; e, Como fixar os requisitos de qualificação técnica nas licitações da administração pública, ed. Fórum, 2022. Membro do Conselho Editorial da Revista SÍNTESI – Direito Administrativo, ed. IOB.


[1] Sobre os artefatos de planejamento da contratação, vide o nosso Contratações de STIC: o desafio de estabelecer as atribuições da área requisitante no planejamento da contratação e na gestão do contrato, disponível em: https://zenite.blog.br/contratacoes-de-stic-o-desafio-de-estabelecer-as-atribuicoes-da-area-requisitante-no-planejamento-da-contratacao-e-na-gestao-do-contrato/

[2] Benefícios da participação em feiras e eventos. Blog SEBRAE digital. Disponível em: https://digital.sebraers.com.br/blog/mercado/beneficios-da-participacao-em-feiras-e-eventos/ Acessado em 29/04/2025.

[3] In Ativando a Marca: Eventos, Feiras e Convenções. Disponível em: https://brandme.com.br/7-eventoss/ Acessado em 29/04/2025.

[4] Um lead qualificado é um potencial cliente que demonstra interesse no seu produto ou serviço, alinhando-se ao perfil ideal do seu negócio e estando potencialmente pronto para comprar.

[5] In Nichos de Mercado: explore esta oportunidade, SEBRAE-RJ, 2021. Disponível em: https://sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/RJ/Sebrae%20de%20A%20a%20Z/Nichos%20de%20mercado%20-%20explore%20esta%20oportunidade%2016.05.pdf Acessado em 06/08/2025.

[6] In, O Mercado de Compras Governamentais Brasileiro (2006/2007: mensuração e análise. Ipea. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/server/api/core/bitstreams/0e8fcb46-64ec-4d26-ba99-29a70492e3d4/content Acessado em 06/08/2025.

[7] Vide https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/42774-pib-cresce-3-4-em-2024-e-fecha-o-ano-em-r-11-7-trilhoes Acessado em 06/08/2025.

[8] STIGLER, George J. The Theory of Economic Regulation, Revista Bell de Economia e Ciência da Gestão, Vol. 2, No. 1, pp. 3-21 (19 páginas) 1971.

[9] POSNER, Richard A. The Concept of Regulatory Capture, Cambridge University Press, 2013.

[10] ARANHA, Márcio Iorio. Teoria Jurídica da Regulação: entre a Escolha Pública e a Captura. RDU – v. 1, nº 1 (jul./set. 2003), págs. 11-37.

[11] GARNICA, Vitor Gabriel e KEMPFER, Marlene. O fenômeno da captura e a independência das agências reguladoras no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia do Direito, Belém, v. 5, nº 2, pp 43-60, jul/dez 2019.

[12] RAMALHO, Pedro Ivo Sebba e RODRIGO, Delia. Interesses e Influência: Participação das Partes Interessadas no Processo Regulatório, 2022. Disponível em: https://www.scirp.org/journal/paperinformation?paperid=120582 Acessado em 18/08/2025.

[13] Fraudes em Licitações e Contratos Públicos – Como Identificar e Prevenir. Disponível em: https://lec.com.br/fraudes-em-licitacoes-e-contratos-publicos-como-identificar-e-prevenir/ Acessado em 19/09/2025.

[14] Disponível em: https://propmark.com.br/mckinsey-mostra-que-automacao-vai-modificar-profissoes/#:~:text=Estudo%20da%20McKinsey%20mostra%20que%20cerca%20de,das%20atividades%20humanas%20podem%20ser%20totalmente%20automatizadas. Acessado em 22/09/2025.

[15] Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=24640 Acessado em 22/09/2025.

O conteúdo deste artigo reflete a posição do autor e não, necessariamente, a do Grupo JML.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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