Passados dois meses que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou pandemia global em virtude do COVID-19, nosso País ainda luta para adotar medidas eficazes ao combate da referida pandemia, com reflexos não apenas na área de saúde, mas também no âmbito das contratações públicas.
Nesse ínterim, diversas normas foram editadas, dentre elas a Medida Provisória nº. 961, publicada no Diário Oficial da União em 07 de maio de 2020, consignando três matérias que, em nosso sentir, contribuirão para a celeridade e eficiência das contratações durante o cenário da pandemia. São elas:
a) aumento dos limites de dispensa em razão do valor, para obras e serviços de engenharia até R$ 100.000,00 (cem mil reais), desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou, ainda, para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; e R$ 50.000,00 (cinquenta mil)para outros serviços, compras e para alienações, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;
b) o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração, desde que cumpridos alguns requisitos que serão analisados na sequência;
c) a aplicação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, de que trata a Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações.
Para os fins específicos desse artigo, vamos trabalhar com as duas primeiras hipóteses.
À primeira vista, é possível que se entenda como temerária a normativa em tela, por viabilizar um maior número de contratações diretas, supostamente abrir espaço para superfaturamentos e colocar em risco o Erário na hipótese de antecipação de pagamento sem a correspondente prestação do serviço.
Essa, porém, não é a nossa posição. Ao contrário, entendemos que a iniciativa deve ser festejada.
Claro que, infelizmente, em momentos de crise, sempre há quem vise obter vantagens indevidas, razão pela qual a justificativa de preços nas contratações públicas é de suma importância, além de medidas acauteladoras na hipótese de antecipação de pagamento, consoante será destacado, e definição precisa das penalidades.
Por outro lado, é preciso reconhecer que o cenário complexo que estamos enfrentando exige a quebra de alguns paradigmas e, por consequência, a adoção de novos modelos, sob pena de até mesmo inviabilizar a satisfação do interesse público.
Dizem os especialistas que o mundo que conhecemos não será mais o mesmo pós pandemia, o que vai exigir do gestor público, por evidente, a busca de novos modelos, já que os antigos não mais se coadunarão com os desafios. A bem da verdade, mesmo antes da pandemia o modelo tradicional do Direito Administrativo, calcado no princípio da supremacia do interesse sobre o privado, já era objeto de questionamento e relativização.
É preciso, assim, que o gestor público se reinvente. E, com maior razão, que abra espaço à concepção do Direito Administrativo Consensual, passando a vislumbrar o contrato administrativo como um negócio jurídico que deve beneficiar ambas as partes.
É nesse contexto que, em nosso entender, a possibilidade de antecipação de pagamento, desde que acompanhada das devidas cautelas, deve ser festejada. Com efeito, é inquestionável que, salvo exceções, mesmo em momentos de normalidade a Administração Pública atrasa pagamentos, o que gera no mercado privado insegurança jurídica e, muitas vezes, falta de interesse em fornecer para o Estado ou mesmo, elevação de custos em virtude do “risco do negócio”. Dessa feita, o pagamento antecipado pode ampliar a competitividade e até mesmo reduzir os custos das contratações.
Saliente-se que a antecipação de pagamento, em situações excepcionais, já era aceita tanto pela Advocacia Geral da União, quanto pelo Tribunal de Contas da União, respectivamente:
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 37, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2011
“A ANTECIPAÇÃO DE PAGAMENTO SOMENTE DEVE SER ADMITIDA EM SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS, DEVIDAMENTE JUSTIFICADA PELA ADMINISTRAÇÃO, DEMONSTRANDO-SE A EXISTÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO, OBSERVADOS OS SEGUINTES CRITÉRIOS: 1) REPRESENTE CONDIÇÃO SEM A QUAL NÃO SEJA POSSÍVEL OBTER O BEM OU ASSEGURAR A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO, OU PROPICIE SENSÍVEL ECONOMIA DE RECURSOS; 2) EXISTÊNCIA DE PREVISÃO NO EDITAL DE LICITAÇÃO OU NOS INSTRUMENTOS FORMAIS DE CONTRATAÇÃO DIRETA; E 3) ADOÇÃO DE INDISPENSÁVEIS GARANTIAS, COMO AS DO ART. 56 DA LEI Nº 8.666/93, OU CAUTELAS, COMO POR EXEMPLO A PREVISÃO DE DEVOLUÇÃO DO VALOR ANTECIPADO CASO NÃO EXECUTADO O OBJETO, A COMPROVAÇÃO DE EXECUÇÃO DE PARTE OU ETAPA DO OBJETO E A EMISSÃO DE TÍTULO DE CRÉDITO PELO CONTRATADO, ENTRE OUTRAS”.
(…)
“Boletim de Jurisprudência 187/2017
Acórdão
Acórdão 1826/2017 Plenário (Representação, Relator Ministro Vital do Rêgo)
Indexação
Licitação. Edital de licitação. Pagamento. Antecipação. Justificativa.
Enunciado
A inclusão de cláusula de antecipação de pagamento fundamentada no art. 40, inciso XIV, alínea d, da Lei 8.666/1993 deve ser precedida de estudos que comprovem sua real necessidade e economicidade para a Administração Pública”.
Essa possibilidade, portanto, não é nova. Ainda que em caráter excepcional, a Administração Pública já prevê em contrato ou no edital a antecipação de pagamento naqueles casos em que a pesquisa de mercado comprova que a medida é necessária para viabilizar a contratação ou mesmo representa economicidade aos cofres públicos.
Mas, por evidente, a previsão normativa confere ao gestor público maior segurança jurídica, sem afastar, por evidente, as cautelas previstas na Medida Provisória.
Traçadas essas premissas, cumpre citar o disciplinado na norma:
“Art. 1º. Ficam autorizados à administração pública de todos os entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos:
(…)
II – o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração,desde que:
a) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço; ou
b) propicie significativa economia de recursos; e
§ 1º Na hipótese de que trata o inciso II do caput, a Administração deverá:
I – prever a antecipação de pagamento em edital ou em instrumento formal de adjudicação direta; e
II – exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto.
§ 2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, a Administração poderá prever cautelas aptas a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como:
I – a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente;
II – a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 1993, de até trinta por cento do valor do objeto;
III – a emissão de título de crédito pelo contratado;
IV – o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e
V – a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.
§ 3º. É vedado o pagamento antecipado pela Administração na hipótese de prestação de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra”. (grifou-se)
Infere-se da norma que não é qualquer contratação que justifica a antecipação de pagamento. Para tanto, é imprescindível, mediante pesquisa no mercado, comprovar que essa medida representa condição indispensável para viabilizar a contratação ou propicia significativa economia de recursos, sendo que este último requisito pode ser comprovado mediante pesquisa que compare os preços praticados em relação à forma de pagamento. Ademais, a norma afastou essa possibilidade no caso de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra.
Para garantir a isonomia e evitar favorecimentos a depender da empresa contratada, o § 1º prescreve a necessidade de previsão da antecipação de pagamento em edital ou no processo administrativo da contratação direta. Além disso, para minimizar os riscos ao Erário, faz-se necessário prever em cláusula a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto (§ 1º) e, a depender do objeto e das regras aplicáveis ao mercado, a Administração poderá exigir garantia contratual, com fulcro no art. 56, da Lei 8.666/93, ou as demais medidas consignadas no § 2º, do art. 1º.
Não obstante a iniciativa do legislador quanto à exigência de garantia contratual seja louvável, porque visa resguardar o Erário, não se pode perder de vista que, na maioria das vezes, tal requisito resta inviável em face da prática de mercado.
De qualquer sorte, a fim de minimizar os riscos, é de suma importância a inserção de cláusula que obrigue a empresa a devolver o valor antecipado, na hipótese de inexecução contratual, além das penalidades cabíveis, impondo-se uma acurada fiscalização contratual por parte da Administração Pública.
Quanto ao aumento dos limites para enquadramento em dispensa em razão do valor, em nosso entender, a medida se mostra também vantajosa e apta a conferir maior celeridade e eficiência à Administração Pública.
Pois bem, em relação à vantajosidade da alteração, em nosso sentir, os limites previstos na Lei 8.666/93, para enquadramento em dispensa em razão do valor (R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia e R$ 17.600,00 para compras e demais serviços), ainda são baixos, mesmo com a atualização realizada pelo Decreto 9.412/2018. Basta compará-los aos montantes previstos, por exemplo, na Lei das Estatais (R$ 100.000,00 para obras e serviços de engenharia e R$ 50.000,00 para compras e demais serviços).
Assim, a Medida Provisória elevou, temporariamente, no âmbito da Administração Pública de todos os entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos o limite de dispensa em razão do valor, equiparando-os aos montantes previstos na Lei das Estatais, com o intuito de conferir maior celeridade às contratações, pois é notório que as contratações diretas por dispensa em razão do valor seguem procedimentos mais simplificados, se comparados à licitação.
Por evidente, a alteração em tela não afasta o dever da Administração Pública de planejar adequadamente suas contratações, englobando objetos de mesma natureza e, no caso de obras e serviços, executados no mesmo local, a fim de não caracterizar o fracionamento indevido.
Por derradeiro, cumpre destacar que o disposto na Medida Provisória aplica-se durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº. 06/2020, ou seja, até 31 de dezembro de 2020, conforme previsto no art. 2º. E o parágrafo único do mencionado dispositivo ainda prescreve que “o disposto nesta Medida Provisória aplica-se aos contratos firmados no período de que trata o caput independentemente do seu prazo ou do prazo de suas prorrogações”. E, diferente do que ocorre com a Lei 13.979/2020, cujas contratações ficam restritas ao combate da pandemia do COVID-19, a Medida Provisória 961/2020 não fez qualquer restrição nesse sentido, aplicando-se a qualquer contratação que se faça necessária durante o estado de calamidade pública.