VIRADA DE CHAVE PARA A NOVA LEI DE LICITAÇÕES: O FANTASMA DO DIA 31/03/2023

 

Por:

Luiz Claudio de Azevedo Chaves*

Andréa Poggio Contardo da Fonseca**

Resumo:

Durante o período de convivência normativa entres as lei gerais de licitações e contratos anteriores e a nova lei de licitações, a possibilidade de a Administração poder se utilizar do regime licitatório primitivo, conforme conferido pelo art. 191, da Lei federal nº 14.133/2021, pelo prazo de dois anos, em verdade, não se mostrou suficiente para que os órgãos e entidades da Administração Pública fizessem a transição com sobriedade, uma vez que os sistemas do governo Federal somente estiveram totalmente disponíveis para integração no final do ano de 2021. Com a proximidade do fim da vigência da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002, muitos órgãos ainda se ressentem da falta de preparo para encampar os novos institutos licitatórios. Nesse passo, faz-se mister estabelecer com clareza e segurança jurídica até que momento se deve considerar possível utilizar-se do regime anterior, com o qual os órgãos estão, há muito, consolidadamente habituados, de maneira a não emperrar a máquina estatal pelo fato de não poderem mais realizar licitações no regime anterior e ainda não estarem totalmente preparados para os novos tempos.

 

Palavras-chave: Licitação. Regime jurídico. Ultratividade.marco temporal.

 

 

Summary:

During the period of normative coexistence between the general bidding law and previous contracts and the new bidding law, the possibility for the Administration to be able to use the primitive bidding regime, as conferred by art. 191, of Federal Law nº 14.133/2021, for a period of two years, in fact, it was not enough for the Public Administration bodies and entities to make the transition with sobriety, since the Federal government systems were only fully available for integration at the end of 2021. With the approach of the end of the validity of Law nº 8.666/1993 and Law nº 10.520/2002, many bodies still suffer from the lack of preparation to take over the new bidding institutes. In this step, it is necessary to establish with clarity and legal certainty until what moment it should be considered possible to use the previous regime, with which the organs have long been solidly accustomed, in order not to impede the state machine due to the fact of no longer being able to hold bids under the previous regime and still not being fully prepared for the new times.

 

Keywords: Bidding. Legal regime. Ultraactivity.timeframe.

 

1. Introdução à situação-problema. 2. O sistema jurídico brasileiro e as regras de convivência dos regimes licitatórios. 3. Correntes doutrinárias para o marco temporal do fim do período de convivência entre os regimes. 4. Dificuldades inerentes ao processo de transição para o novo regime. 4.1 O problema da integração ao sistema federal para órgãos não integrantes do SISG. 5. Interpretação utilitarista do art. 191. 6. A ultratividade e o regime a ser observado nos Contratos e nas Atas de Registro de Preços. 6. Conclusão.

 

1. Introdução à situação-problema

Em matéria publicada no dia 28 de fevereiro próximo passado no Estadão, Pedro Benedetti e Julio Ramos[1], afirmam categoricamente que o País está às vésperas de instituir “um ambiente de insegurança jurídica como nunca antes visto” no que concerne às contratações públicas. Defendem os autores da matéria que o atual governo deveria editar Medida Provisória estendendo a vigência das Leis nº 8.666/1993 e 10.520/2002 por pelo menos mais um ano. Não estão totalmente equivocados.

Não se nega que as normas licitatórias em vigor há muito reclamavam atualização e modernização. A Lei 8.666/1993, a primeira a regulamentar o disposto no art. 37, XXI da Constituição da República[2] foi editada em uma época de tecnologia incipiente em que sequer passava no imaginário do legislador um dia poder ser realizada licitações em ambiente virtual. As licitações, à época, eram verdadeiros procedimentos ultra burocráticos, em que as empresas se apresentavam com envelopes lacrados e opacos contendo calhamaços de documentos em papel e as propostas, normalmente, datilografados em duas vias. As Comissões de Licitações afastavam empresas do certame por qualquer discrepância encontrada, por mais que fosse considerado uma mera formalidade. Para participar do maior número de licitações possível, as empresas precisam montar grandes estruturas administrativas, espalhadas pelo País, contratando grande número de representantes comerciais para se fazer representar nas sessões de entrega e abertura dos envelopes.

Os tempos são outros. Esse passado praticamente ficou para trás. Hodiernamente, há uma geração de servidores públicos que atuam nas repartições em atividades ligadas às contratações públicas, mas que nunca viram ou ouviram falar em Tomada de Preços ou Carta-Convite.

No entanto, estando às portas do fim da vigência das referidas normas, o cenário que se encontra no âmbito das contratações governamentais é de enorme incerteza, visto que o tempo de transição, como se verá mais adiante, foi insuficiente para a grande maioria dos órgãos públicos se prepararem de modo adequado para enfrentar o desafio da adaptação da nova lei.

A elaboração e/ou atualização de normativos internos, novos modelos de artefatos de contratação, capacitação dos agentes públicos, são, dentre outros, grandes desafios a serem enfrentados pelos órgãos públicos. Muitos deles já vêm trabalhando arduamente numa verdadeira corrida contra o tempo. Mas essa tarefa é dificultada pelo fato de que tais providências não podem impedir o funcionamento ordinário da máquina administrativa, sob pena de provocar solução de continuidade, prejudicando as contratações de obras, serviços e bens necessários ao perfeito funcionamento do aparelho estatal.

Dado que as normas primitivas, em breve, perderão vigência, faz-se mister orientar os órgãos da Administração Pública, notadamente, aqueles não integrantes do Sistema de Serviços Gerais do governo Federal-SISG, e, mais especificamente, os setores demandantes das contratações, quanto ao aproveitamento dos processos licitatórios já em curso e, desde já, estabelecer as diretrizes que deverão permear a transição de um regime já sedimentado há quase vinte anos, para outro que ainda prescinde de muitos ajustes. Isto porque, caso não esclarecida a temática em análise, tais órgãos poderão amargar graves prejuízos para continuidade da atividade estatal, com eventual retorno de tais processos à fase inicial, adiando a providência de interesse público.

 

2. O sistema jurídico brasileiro e as regras de convivência dos regimes licitatórios

No direito brasileiro, por regra, uma nova lei entra em vigor quarenta e cinco dias após oficialmente publicada, salvo se houver disposição em sentido contrário. Trata-se do instituto da vacatio legis, encontrando previsão no art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro-LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942).

Tal período costuma ser necessário, quanto mais para normas complexas, a fim de permitir a adaptação da sociedade aos novos comandos, bem como da implementação dos diversos mecanismos de coercitividade para o cumprimento pelo poder de império do Estado. Durante esse lapso temporal, à evidência, vigorará, ainda, a lei velha.

Esse sistema é chamado de sistema simultâneo ou sincrônico. De acordo com esse sistema, a lei sempre entra em vigor na mesma data em todo o território nacional. Há, portanto, uma sincronia na entrada em vigor da lei; o fundamento desse sistema é a segurança jurídica. Expirado o prazo da vacatio, a nova lei entra imediatamente em vigor em todo o território nacional.

Sobre esse sistema, esclarece Fábio Vieira de Figueiredo[3]

 

Desse modo, temos quatro possibilidades distintas: a) lei com período de vacatio legis ordinário, b) lei com vacatio legis expressa, c) lei com data de entrada em vigor expressa e, por fim, d) lei que exclui período de vacatio legis. As leis com período de vacatio legis ordinário possuem duas ordens distintas de vacatio legis: quarenta e cinco dias como regra geral para a lei que entra em vigor no território brasileiro e três meses para leis brasileiras que entrem em vigor em território estrangeiro; As leis com vacatio legis expressas são aquelas em que o legislador faz constar expressamente qual o período de vacatio legis para a entrada em vigor da lei, deixando de lado o prazo geral de quarenta e cinco dias em território nacional ou três meses em território estrangeiro; As leis com data de entrada em vigor expressas são aquelas em que o legislador determina a data de entrada em vigor da lei, não deixando ao critério ordinário, nem mesmo fixando prazo para entrada em vigor, apenas determinando de maneira última a data precisa de entrada em vigor da lei. Podem existir, ainda, leis que excluem o período de vacatio legis e, nesses casos, ocorre a imediata entrada em vigor da lei na data de sua publicação. Os motivos que levam o legislador a optar por uma das quatro possibilidades são de conveniência e oportunidade, levando-se em consideração a repercussão atingida por aquela certa e determinada lei. Assim é que seria absolutamente destemperado por parte do legislador dar a uma lei como o Código Civil, por exemplo, pela importância e, portanto, grau de repercussão social que atinge, o prazo de vacatio legis ordinário de quarenta e cinco dias tendo sido conferido à respectiva lei o prazo de vacatio legis de um ano.

 

Ainda de acordo com a LINDB, uma nova lei automaticamente revoga a lei anterior quando, dentre outras circunstâncias, venha a regular inteiramente a matéria que era tratada. A Lei nº 14.133/2021, em princípio se enquadraria nesta regra, uma vez que veio regular inteiramente a matéria tratada nas Leis nº 8.666/1993, 10.520/2002 e os dispositivos licitatórios específicos da Lei nº 12.462/2011 (RDC). Nada obstante, ao dispor sobre sua vigência e aplicação, em relação ao regime licitatório, a novel lei, a despeito de marcar vigência imediata, manteve as normas licitatórias anteriores também vigentes, estabelecendo um período de convivência de dois anos após sua publicação, momento a partir do qual se ultimaria a revogação daquelas normas. É o que dispõem os arts. 193 e 194, in verbis:

 

Art. 193. Revogam-se:

 

I – os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei;

II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.

 

Art. 194. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

 

Como visto, formou-se uma situação pouco ortodoxa o que causou grande discrepância de entendimentos ente os autores especializados no tema. Ao mesmo tempo que a nova lei entrou em vigor na data da sua publicação, as leis licitatórias anteriores foram programadas para serem revogadas após decorridos dois anos, ou seja, uma revogação diferida[4].

A forma como se acha disposta a conjugação das duas normas não encontra amparo legal na LINDB, porquanto cria uma lei nova; dá-lhe vigência imediata com a sua publicação, mas mantém em vigor normas que estão completamente reguladas nessa nova lei.

Isto porque, nada obstante entrar em vigor na data da sua publicação, a mesma não será de aplicação obrigatória pelos destinatários, permanecendo vigente o sistema normativo de licitações e contratos anterior.

Foi, mutatis mutandis, o que ocorreu no caso das normas licitatórias instituídas pela Lei 13.303/2016, para as sociedades de economia mista e empresas públicas. No referido diploma, o art. 91 fixou prazo de 24 (vinte e quatro) meses para que as estatais se adaptassem à nova lei. Em outro dizer, durante o período de dois anos após sua publicação as Estatais, que se submetiam às regras licitatórias da Lei n° 8.666/1993 e da 10.520/2002, puderam se utilizar do regime anterior apesar de a nova lei já se encontrar em vigor. Mas, diferentemente da Lei nº 14.133/2021, no caso das Estatais, não houve atribuição de discrição ao Gestor acerca de qual regime utilizar. Uma vez que a Estatal aprovasse seu regulamento interno de contratações, as normas gerais licitatórias não mais poderiam ser por ela utilizadas.

A regra em estudo é excepcional e não se confunde com o instituto da ultratividade legal, que é o prolongamento dos efeitos de uma norma para além do prazo de sua vigência. A ultratividade só ocorre quando uma lei já revogada ainda permanece regulando certas relações jurídicas, como é o clássico exemplo da ultratividade da lei penal mais benéfica. No caso da nova lei de licitações e contratos, as normas anteriores não foram revogadas; permaneceram vigentes e eficazes. Estamos tratando, pois, do instituto da revogação diferida ou postergada.

Não chega a ser raro no nosso País uma nova lei ser publicada, mas suas disposições levarem certo tempo para entrar em vigor e passar as relações jurídicas delas advindas. No entanto, o caso da nova lei licitatória é suis generis, ante ao fato de que ela entrou em vigor simultaneamente com as leis que serão revogadas e ainda agregou um elemento a mais, se comparado com a Lei das Estatais, qual seja: o de atribuir ao Gestor Público, na pessoa da autoridade competente, o poder discricionário de optar qual regime utilizar a cada caso concreto. Assim, durante o período estipulado:

 

Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso (grifo nosso).

 

Essa discricionariedade já foi vista justamente na lei que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas-RDC (Lei nº 12.462/2011), criado, dentre outras finalidades, para viabilizar as contratações necessárias à realização da Copa do Mundo 2014 de Futebol Masculino e dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. No art. 1º, §2º a referida lei dispunha que opção pelo RDC deverá constar de forma expressa do instrumento convocatório e, uma vez adotado o regime do RDC, restariam afastadas as normas contidas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Ou seja, assim como agora o faz a nova lei de licitações e contratos, a Lei do RDC também conferiu ao gestor público uma discrição no sentido de optar por um ou outro regime a cada caso concreto.

Não se olvide que a medida tem o condão de estabelecer um período razoável de transição, permitindo que os gestores públicos pudessem, aos poucos, se inteirarem e adaptarem suas organizações aos novos institutos licitatórios. A medida foi muito bem-vinda, considerando a precariedade de muitos órgãos públicos no País em termos de recursos tecnológicos, humanos e de estrutura.

Assim como no RDC, a norma limitou-se a dispor que a opção pelo regime licitatório deveria constar expressamente do edital. Ocorre que o edital, como já dito, é consequência do encadeamento de várias fases, atividades e etapas internas. Logo, a “opção” propriamente dita não é formulada no edital. O edital é apenas o veículo que comunica aos interessados o desejo de a Administração realizar aquela contratação e sob qual regime se dará a competição e que regulará o futuro contrato. Ao fazer a “opção”, o Gestor, em verdade, expede um ato administrativo de natureza decisória de caráter discricionário. Portanto, a “opção” ocorre antes do edital.

A grande celeuma atualmente instalada reside no fato de que a norma é imprecisa quanto ao aspecto prático. É cediço que a licitação pública é um procedimento administrativo complexo, que se forma a partir da integração de diversos atos intermediários e autônomos para obtenção de um ato final e principal”[5]. Logo, o desafio hermenêutico consiste em se saber claramente o momento em que se considera feita a opção mencionada no art. 191: se seria na instauração do processo, na elaboração do termo de referência, na autorização da deflagração do procedimento licitatório, na publicação do edital ou ainda, em outro momento.

 

3. Correntes doutrinárias para o marco temporal do fim do período de convivência entre os regimes

A par dessas incertezas, originou-se a discussão doutrinária a fim de que fosse definido qual o ato jurídico determinaria a aplicação da eventual ultratividade da legislação anterior. Alguns autores defendem que a “opção” se daria com a publicação do edital ou do ato que autoriza a contratação direta; outros, se inclinaram no sentido de que a “opção” é realizada ainda na fase preparatória, através de ato interno, pela autoridade competente, que deve ser considerado para fins de definição do ato jurídico que determinaria a aplicação do princípio da ultratividade. Nomes de peso do Direito Administrativo encampam as duas soluções jurídicas.[6]

Para os defensores da primeira corrente, a tese é no sentido de que a publicação do edital (ou do ato de autorização da contratação direta) é o que torna eficaz perante a sociedade as regras da competição. Por isso, entendem que é este ato que deve ser considerado como o limite para a aplicação da ultratividade legal. Importante destacar que a favor desse entendimento, o Tribunal de Contas da União conta com precedente relativo à aplicação da Lei das Estatais exatamente no mesmo sentido[7]:

 

RELATÓRIO DE AUDITORIA. FISCOBRAS 2018. CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PARA EXECUÇÃO DAS OBRAS CIVIS DE EXPANSÃO DA LINHA 1 – TRECHO SAMAMBAIA DO METRÔ NO DISTRITO FEDERAL. APLICAÇÃO DA LEI 13.303/2016 AOS PROCESSOS LICITATÓRIOS QUE SERÃO PUBLICADOS. ELABORAÇÃO DA REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA SOBRE LICITAÇÕES E CONTRATOS. RECOMENDAÇÕES. CIÊNCIA.

[…]

9.1. dar ciência à Companhia do Metropolitano do Distrito Federal (Metrô-DF) , com fundamento no art. 7º da Resolução 265/2014 – TCU, da necessidade de aplicação da Lei 13.303/2016 nos procedimentos licitatórios que serão publicados, mesmo que a fase interna tenha sido iniciada anteriormente à data prevista no art. 91 daquela lei, com vistas à obtenção dos potenciais benefícios apresentados pela nova legislação;

 

Para os defensores da outra corrente, o argumento central é de que a publicação do edital apenas inicia a fase externa da licitação, mas o procedimento já teria se iniciado com a deflagração do processo administrativo correspondente. Para Joel de Menezes Niebuhr,[8] “o argumento-chave é que a autorização para licitar pelo regime antigo dentro do biênio dada pelo parágrafo único do art. 191 traz implícita a autorização para concluir a licitação e assinar o contrato que lhe seja decorrente”.

Em 31/08/2022, foi publicado o Comunicado nº 10/2022, emitido pela Secretaria de Gestão do então Ministério da Economia (SEGES), informando que o Sistema de Compras do Governo Federal, a contar do dia 31/03/2023, estaria configurado para recepcionar somente as licitações e contratações diretas à luz da Lei 14.133/2021 (e demais leis específicas), considerando o exaurimento temporal da eficácia jurídica-normativa das Leis nº 8.666/1993, 10.520/2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 2011.

O indigitado aviso impôs, por via oblíqua, interpretação no sentido de que seria a divulgação do edital o marco fatal. Todavia, não resolveu o problema hermenêutico. Apenas colocou um empecilho operacional aos órgãos que se utilizam do sistema Compras.gov. Mas é bom lembrar que não são todos os órgãos que fazem uso do sistema federal de contratações eletrônicas, que não se confunde com o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), que passou a ser o veículo obrigatório de divulgação das licitações públicas com a nova lei de licitações (art. 54) para todos os entes da Federação. Só no provedor licitacoes-e, do Banco do Brasil, no dia de hoje, há mais de 2.400 licitações publicadas e mais de 8.000 em fase de homologação[9].

Posteriormente, em 31/12/2022, a SEGES/ME manifestou-se, por meio do Comunicado nº 13/2022, de que não existiria óbice legal e de gestão para que a opção por licitar pelas leis mais antigas seja feita até o dia 31/03/2023 (sexta-feira), desde que se delimite prazo final para a publicação do edital ou do aviso de contratação direta. Também fez referência à manifestação do Exmo. Ministro do TCU, tendo ressalvado que “até que sobrevenha tal manifestação, fica mantido, para todos os fins, o Comunicado nº 10/2022 desta Secretaria.”

Dado o relevo do tema, a Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Advocacia-Geral da União, se lançou em análise dos aspectos práticos que envolvem o tema, visando uniformizar a aplicação da norma no âmbito da Administração Pública, cujas conclusões foram estampadas no Parecer n° 000006/2022/CNLCA/CGU/AGU, que restou assim ementado:

 

EMENTA: LEI 14.133/2021. REVOGAÇÃO DOS REGIMES LICITATÓRIOS (LEI Nº 8.666/93, LEI Nº 10.520/02 E ARTS. 1º A 47-A DA LEI Nº 12.462/11). MARCO TEMPORAL A SER UTILIZADO PARA A APLICAÇÃO DOS REGIMES LICITATÓRIOS QUE SERÃO REVOGADOS. DEMAIS ASPECTOS. EXEGESE DO ART. 191, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 14.133/21.

I – A expressão legal “opção por licitar ou contratar”, para fins de definição do ato jurídico estabelecido como referência para aplicação da ultratividade da legislação anterior, deve ser a manifestação por agente público competente, ainda na fase preparatória, que opte expressamente pela aplicação do regime licitatório anterior (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011);

II – Desde que respeitada a regra do artigo 191, que exige a “opção por licitar” de acordo com o regime anterior, ainda no período de convivência normativa, a Ata de Registro de Preços gerada pela respectiva licitação continuará válida durante toda a sua vigência, que pode alcançar o prazo máximo de 12 meses, sendo possível firmar as contratações decorrentes desta ARP, mesmo após a revogação da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 10.520/2002 e da Lei nº 14.262/2011;

III – Uma vez que a Lei nº 14.133/2021 firmou a ultratividade de aplicação do regime contratual da Lei nº 8.666/93 aos contratos firmados antes de sua entrada em vigor (art. 190 da NLLCA) ou decorrentes de processos cuja opção de licitar ou contratar sob o regime licitatório anterior seja feita ainda durante o período de convivência normativa (art. 191 da NLLCA), as regras de alteração dos contratos administrativos previstas nesta legislação anterior, mesmo após a sua revogação, poderão ser aplicadas no respectivo contrato durante toda a sua vigência;

IV – Os contratos sob o regime jurídico da Lei nº 8.666/93, que tenham sido firmados antes da entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021 (art. 190 da NLLCA) ou decorrentes de processos cuja opção de licitar ou contratar sob o regime licitatório anterior tenha sido feita ainda durante o período de convivência normativa (art. 191 da NLLCA), terão seu regime de vigência definido pela Lei nº 8.666/93, aplicação que envolve não apenas os prazos de vigência ordinariamente definidos, mas também suas prorrogações, em sentido estrito ou em sentido amplo (renovação).

 

Em sessão Plenária do TCU, realizada em 13/12/2022, a questão, ora discutida, foi levantada pelo Exmo. Ministro Antonio Anastasia, que propôs ao Plenário da Corte a realização de estudos conclusivos pela Secretaria – Geral de Controle Externo (Segecex) sobre a compatibilidade das teses firmadas no parecer acima citado, com a sua jurisprudência. Ainda pendente de exame do Relator e submissão ao Plenário, a Unidade Técnica de Auditoria Especializada em Contratações da Segecex, nos autos do processo TC nº 000.586/2023-4, assim se manifestou:[10]

 

[…] 73. Ante todo o exposto, submetem-se os autos à consideração superior propondo:

 

73.1 declarar a compatibilidade do Parecer 6/2022 da Câmara Nacional de Licitações e Contratos Administrativos da Advocacia-Geral da União com a jurisprudência do Tribunal de Contas da União, consubstanciada no Acórdão 2.279/2019-Plenário, da relatoria do Ministro Augusto Nardes;

 

73.2 firmar o entendimento de que a opção pelo regime antigo para licitar ou contratar (Lei 8.666/93, Lei 10.520/2002 e arts. 1º a 47-A da Lei 12.462/2011), que será revogado em 1º/4/2023, somente poderá ser feita por cada órgão ou pelos órgãos centrais da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos, na etapa preparatória da contratação, até o dia 31/3/2023, sem prejuízo de que seja fixada uma data limite para a publicação do edital;

 

73.3. recomendar à Secretaria de Gestão e Inovação (Seges) do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), com fundamento no art. 11 da Resolução-TCU 315/2020, que, tendo em vista o entendimento firmado no tópico anterior, defina um cronograma ou estipule marco(s) limite(s), a exemplo da data da publicação do edital, em conformidade com os princípios da razoabilidade e da duração razoável do processo, para a:

i) utilização do regime antigo, pelos órgãos sob sua jurisdição; e

ii) utilização dos sistemas de contratações federais, para todos os órgãos, entidades ou entes públicos de quaisquer esferas.

 

73.4. encaminhar cópia da deliberação que vier a ser proferida, acompanhada desta instrução e do voto que a fundamentam, ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público, à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal e à Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon);

 

73.5 nos termos do art. 8º da Resolução-TCU 315/2020, fazer constar, na ata da sessão em que estes autos forem apreciados, comunicação do relator ao colegiado no sentido de monitorar a recomendação contida no item 73.3 acima.

 

Como visto, a AGU se inclinou a favor da corrente que defende que o marco fatal para a opção pela utilização do regime anterior seria a do ato formalizado na fase preparatória da licitação que efetivamente faz a “opção” pela adoção do regime licitatório primitivo e não com a publicação do edital.

Já o Tribunal de Contas da União, parece se encaminhar na mesma linha de entendimento, aduzindo, todavia, que no momento da opção, o gestor estipule prazo razoável para a publicação do edital em homenagem aos princípios da segurança jurídica e da duração razoável do processo.

 

4. Dificuldades inerentes ao processo de transição para o novo regime

Não se nega que as duas correntes doutrinárias acima elencadas são legítimas e juridicamente aceitáveis. Isto posto, a adoção de qualquer uma delas estaria, em princípio, albergada pelo princípio da legalidade, pois se apresentam na conformidade do direito. Nada obstante, a melhor decisão para a Administração terá de levar em consideração as suas respectivas consequências práticas, na esteira do que dispõe os arts. 20 e 22, caput, da LINDB:

 

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

 

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

 

Já se disse alhures que a regra legal disposta no art. 191 da NLLC pretendeu proporcionar aos órgãos e entidades da Administração Pública um período confortável para adaptação às novas regras, o que não ocorreu quando da transição do Decreto nº 2.300/1986 para a Lei nº 8.666/1993.

A finalidade da norma, sem sombra de dúvida, era permitir que os órgãos pudessem, durante o período de convivência normativa, ir promovendo adaptações e experimentações paulatinas. Atualmente, quase todos os órgãos do Poder Público (senão, todos) operam com base em sistemas informatizados de administração, o que exigiria, além dos esforços já mencionados (regulamentações, capacitação de agentes e etc), muitas adaptações sistêmicas. Tudo isso demanda tempo e envolve custos.

A nova lei trouxe uma série de novos institutos que não estavam presentes no regime anterior, tais como a modalidade licitatória do Diálogo Competitivo (art. 32); o critério de julgamento de maior retorno econômico (art. 39); o procedimento auxiliar de manifestação de interesse (art. 81), dentre outros. Tais institutos exigem muito estudo e regulamentações específicas para que possam ser bem e efetivamente aplicados. Além disso, a nova lei incorpora uma série de modificações em relação a institutos que já existiam na norma anterior a exigir, igualmente, muito preparo dos sistemas locais de contratação, bem como adaptação dos diversos modelos de artefatos da contratação (ETPs, Termos de Referências, Editais, Contratos etc.). E, por fim e não menos tortuoso, o fato de que a nova legislação traz como regra geral para todas as licitações, independentemente da modalidade, o processamento e julgamento por meio eletrônico.

Não é um trabalho simples, mesmo para órgãos que contam com boa estrutura administrativa e mão de obra qualificada. Considerando as próprias dificuldades apresentadas pelo governo Federal, os órgãos da Administração Pública não tiveram, na prática, os dois anos de preparo para promover a aplicação da nova lei.

 

4.1 O problema da integração ao sistema federal para órgãos não integrantes do SISG

 

Conforme já explicitado, o art. 54 da nova lei estabelece que a divulgação das licitações se dará obrigatoriamente no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). Aqui já se viu o primeiro obstáculo à utilização do novo regime. É que o PNCP somente foi lançado em agosto de 2021. Até então, mesmo que um órgão desejasse realizar suas primeiras experiências, não lhe seria possível fazê-lo por absoluta impossibilidade técnica provocada justamente por quem deveria dar a condição operacional.

 

Somente a partir daquele mês é que se possibilitou aos órgãos iniciar as adaptações à nova lei. E assim mesmo, de forma restrita aos órgãos integrantes do Sistema de Serviços Gerais-SISG, do Governo Federal.

 

Tal situação se complicou em relação aos órgãos que dispõe de sistemas próprios de administração das contratações (são muitos exemplos), em razão do desafio da integração dos sistemas próprios, com o sistema federal no que se refere aos contratos ou os instrumentos que viesse a substituí-los. Ou seja, a possibilidade de utilização do PNCP não foi automática. Bem ao contrário, demandou a mobilização de equipes de TI e profissionais conhecedores dos trâmites internos dos processos de contratações, para orientar a busca nos sistemas internos pelos dados exigidos pelo PNCP, que não são poucos e não estão totalmente alinhados aos registros em termos conceituais (como parcelas e valor global atualizado). Resolvida a integração ao PNCP, reprise-se, somente a partir de outubro/2021, ainda assim, não era suficiente para se iniciar os primeiros procedimentos licitatórios pela nova lei.

 

A novel lei de licitações trouxe um conjunto de cerca de 52 dispositivos que exigem regulamentação específica para serem aplicados. Dados atualizados do Portal de Compras do Governo Federal[11] indicam que, até o presente momento, somente 36 dispositivos tiveram suas respectivas regulamentações publicadas. Destaque-se que o critério de menor preço ou maior desconto (art. 33, I e II), que representa a regra geral como critério de julgamento, somente veio a ser regulamentado no final de setembro de 2022, com vigência a partir de 1º de novembro daquele ano.

Portanto, na prática, tais órgãos não tiveram à sua disposição os dois anos previstos para a transição, e isso provocado justamente pelos setores governamentais que deveriam providenciar os meios necessários e adequados para tal fim.

 

5. Interpretação utilitarista do art. 191

É bastante cediço que a interpretação literal (legalidade estrita) não se revela a melhor solução quando envolvidos vários interesses jurídicos a serem tutelados. Adotar-se um olhar estanque sobre as disposições normativas, especificamente, quanto ao art. 191 da NLLC pode acarretar, em certos casos, prejuízos justamente ao bem jurídico que a citada norma pretende tutelar, posto que seria ilógico admitir interpretação que cause sacrifício aos interesses da coletividade. Faz-se mister sopesar, pôr na balança, os diversos princípios aplicáveis e, a partir daí, extrair da norma a melhor solução ao desiderato a que se destina.

Ronny Charles, Anderson Pedra e Rafael de Oliveira[12], em excelente trabalho no qual abordam minudentemente os vários métodos interpretativos, se encaminham no sentido dessa harmonização. Com apoio na doutrina de Canaris, os autores discorrem sobre o método da interpretação sistemática e da concordância prática, como a solução adequada para o enfrentamento do problema ora tratado:

 

Pelo método da interpretação sistemática o intérprete deve partir do pressuposto de que um enunciado normativo, inclusive o de um princípio publicista, não existe isoladamente, e sim em coexistência com os demais enunciados (normas e regras) que formam o sistema jurídico. A interpretação do direito é a interpretação do direito em seu todo, não de textos isolados – não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços; sendo um dos postulados da metodologia jurídica o da existência fundamental da unidade do Direito, o que converge assim para a interpretação sistemática.

Conjuntamente com o método da interpretação sistemática, o princípio da concordância prática ou da harmonização se apresenta de forma importante e forte para se buscar a solução de conflitos entre princípios.

O princípio da concordância prática ou da harmonização não formula apenas no caso da existência de contradições normativas, mas também nos casos de concorrências e colisões de princípios publicistas no sentido de uma sobreposição parcial dos seus âmbitos de vigência.

 

E arrematam:

Por tal princípio, deve-se buscar a conformação dos diversos princípios que se extraem do ordenamento jurídico e que estejam em confrontação, de forma que se evite a necessidade de exclusão (sacrifício) total de um ou de alguns deles.

 

Dito isto, é dever do intérprete buscar a harmonização dos princípios que se revelam aparentemente conflitantes, buscando a solução mais equilibrada possível.

 

Não há dúvida que o apego imoderado ao formalismo, fulcrado numa interpretação literal e isolada dos dispositivos da Lei nº 14.133/2021 não representa a melhor solução, pois poderá induzir à Administração a suportar prejuízos perfeitamente mitigáveis se adotada a interpretação adequada.

Disso decorre que, na presente avaliação, o ponto focal será verificar-se a que ato propriamente dito corresponde ao conteúdo jurídico da expressão “…a Administração poderá optar…”, constante do art. 191 da NLLC. Tal análise terá como corolário, o dever de eficiência, de razoabilidade, de economicidade e da indisponibilidade do interesse público, sendo que a conclusão deverá indicar como solução aquela que se apresentar como ótima, ou seja, a mais razoável dentre as alternativas disponíveis e juridicamente aceitáveis.

Nesta linha de raciocínio, não vemos como fugir do entendimento segundo o qual a expressão normativa suso citada, deve ter como referência para aplicação do princípio da ultratividade, a manifestação decisória sobre qual regime utilizar, a ser expedido pela Autoridade Competente. Tal ato, vem representado pela decisão da dita autoridade na qual a mesma, exercendo seu personalíssimo juízo de conveniência e oportunidade, autoriza e deflagra o procedimento licitatório.

Assim considerando, não é possível admitir que o marco fatal para a aplicação da ultratividade do regime anterior se dê com a publicação do edital, uma vez que, necessariamente, a manifestação decisória acima indicada o antecede. E, sendo assim, será ainda na fase preparatória, que tal ato será proferido.

Tal entendimento foi manifestado pelo festejado Ministro do Tribunal de Contas da União, Benjamim Zymler, em palestra proferida na Secretaria de Estado de Fazenda, do Estado do Mato Grosso. Na oportunidade, o eminente Ministro afirma de forma categórica, que a opção por licitar em um ou outro regime se faz no início da fase preparatória [13]

Já dissemos que o procedimento licitatório envolve uma série de atos preparatórios. Não raro, são de extrema complexidade e demandam grande esforço de trabalho, consumindo incontáveis horas/homem dos inúmeros profissionais envolvidos. Em uma contratação de obra, em que se consomem vários meses de preparo entre projeto básico, projeto executivo e orçamento, caso fosse considerado o ato de publicação do edital como marco fatal para a escolha, praticamente todo o trabalho preparatório seria perdido e demandaria a necessidade de refazimento de toda a etapa preparatória que é distinta nos dois regimes. Apenas para citar uma consequência desse retorno, dado o tempo gasto na fase de planejamento, muito provavelmente a pesquisa de mercado que serviu de base para a fixação do valor estimado da contratação poderia se tornar defasada, exigindo retrabalho de todas essas atividades, que sabemos ser o principal gargalo da fase preparatória.

Se imaginarmos que não só um, mas os vários processos já se acham em curso, sofram essa solução de continuidade, o risco de emperramento da máquina estatal é nitidamente de elevada probabilidade e impacto.

Importante destacar que o precedente do Tribunal de Contas da União, citado pelos autores que defendem a tese da data da publicação do edital como marco fatal para a ultratividade normativa, deve ser lido com certo cuidado. Naquela assentada, a Corte Federal de Contas se deparou com uma situação extravagante, pois o processo licitatório alvo daquele exame se iniciara no ano de 2014 e, portanto, não se admitiu, naquele caso concreto, que a utilização do regime anterior perdurasse de forma indistinta. Do voto do Relator, se extrai o seguinte excerto:

[…] 17. A essência da discussão está no fato de o legislador não ter explicitado se esse início do procedimento licitatório se refere à sua efetiva publicação ou ao começo do planejamento da licitação, em sua fase interna/preparatória. No presente caso, os estudos para as obras se iniciaram em 2014(…). 18. Entendo não haver dúvida em relação ao momento a ser considerado como de início do procedimento, isso porque não se pode ampliar a interpretação de concessão dada pelo legislador para uma transição de normativos. Com isso, a melhor interpretação é a de que a transição vale para licitações que tiveram seu edital “publicado” entre a edição do regulamento interno referido no § 1º ou até o dia 30 de junho de 2018, o que ocorrer primeiro. 19. E os motivos para essa interpretação são simples. Em primeiro lugar, não seria razoável supor que o legislador fornecesse tempo indeterminado para a utilização da lei antiga, pois, caso prevalecesse a tese encampada pela equipe técnica do Metrô, qualquer objeto que tivesse seus estudos iniciados anteriormente à data de publicação da Lei 13.303, 1º/7/2016, poderia ser licitado por uma empresa estatal com base na Lei 8.666/93, mesmo que decorrido um prazo elevado. Seria ampliar em demasia uma flexibilidade pensada pelo legislador para harmonizar a transição dos comandos de uma lei nova. (GN)

Não por outro motivo que a unidade técnica da Corte Federal de Contas, responsável pelo estudo de adequação da jurisprudência com o Parecer da AGU, ambos já acima citados, concorda que o marco fatal para a aplicação da ultratividade está na fase preparatória, com a expedição do ato que opta pelo regime anterior. A partir daí, independentemente da data em quer for realizada e concluída a licitação, o regime jurídico a ser observado será o da norma que já estará revogada.

Nesse sentido, o recentíssimo Decreto do Estado do Rio de Janeiro nº 48.375 de 28 de fevereiro de 2023, que dispõe o seguinte:

 

Art. 2º – Os órgãos e entidades integrantes da Administração Direta, autárquica e fundacional, inclusive os fundos especiais do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro poderão optar por licitar ou contratar diretamente com fundamento na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, ou na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, e respectivos regulamentos, nos processos em que a autorização da contratação pela autoridade competente para início do procedimento for assinada no documento gerado e indexado no processo eletrônico até o dia 31 de março de 2023.

 

§ 1º – Na hipótese do caput deste artigo, o processo de contratação será regido pela legislação de escolha da autoridade competente até o término da vigência do contrato ou até a entrega definitiva do objeto (GN)

 

Daí porque entende-se que se mostra consentâneo com os princípios da eficiência, razoabilidade, economicidade, bem como o da indisponibilidade do interesse público, dar interpretação ao art. 191 no sentido de considerar que a administração poderá optar por utilizar o regime licitatório instituído pelas Leis nº 8.666/1993 e 10.520/2002 até o dia 31/03/2023, tendo como parâmetro para essa data, aquela em que a autoridade competente do órgão expedir o ato de autorização da deflagração do torneio, que, segundo as rotinas e práticas internas usuais, ocorre no início da fase preparatória.

Tal ato deverá, necessariamente, apontar expressamente por qual regime jurídico transcorrerá a instrução e julgamento da licitação, de modo a deixar estabilizado, no âmbito interno, as regras que irão permear o torneio licitatório ou a contratação direta.

Não obstante, dada a aproximação do fim da convivência normativa instituída pelo art. 193, II, em homenagem aos princípios da transparência e da segurança jurídica, entende-se ser de bom alvitre que se estabeleça um prazo máximo para que seja publicado o edital de licitações, cuja definição dependerá de ato discricionário da autoridade competente e deverá levar em consideração o tempo médio gasto nos procedimentos internos para a conclusão da fase de planejamento da licitação, incluído o ato de aprovação da minuta do edital (art. 38, par. único da Lei nº 8.666/1993)

 

6. A ultratividade e o regime a ser observado nos Contratos e nas Atas de Registro de Preços

O parágrafo único do art. 191 esclarece que diante da opção por licitar no regime da norma primitiva, o contrato decorrente também permanecerá regido pelo mesmo regime, inclusive suas eventuais prorrogações. A regra é coerente com a vedação imposta no caput do referido dispositivo, que impede a combinação de ambos os regimes. Por exemplo, não se pode licitar um contrato de prestação de serviço continuado com fulcro na Lei nº 8.666/1993 e, após celebrar o contrato aplicar a prorrogação decenal prevista no art. 107 da NLLC. Devem, pois, as unidades demandantes terem ciência dessa limitação, caso indiquem a opção pelo regime anterior. O mesmo se dirá em relação às Atas de Registro de Preços.

É sabido que a Ata de Registro de Preços é uma espécie de pré-contrato, que se aperfeiçoa com a convocação do beneficiário. Caso a licitação que tenha dado causa à Ata tenha sido processada e julgada pelo regime anterior, todas as relações jurídicas dela decorrentes também observarão o mesmo regime. Isso vale para as Atas em que este o órgão for o gerenciador, bem como naqueles em que figurar como órgão participante ou não participante (carona). Em relação a este último aspecto, importa destacar que o órgão vier a aderir a uma Ata de Registro de preços deverá observar qual teria sido o regime jurídico que norteou a licitação que deu causa àquela, de modo que os contratos decorrentes da adesão sejam gerenciados de acordo com o mesmo regime adotado na licitação.

 

6. Conclusão

É crucial destacar que a adoção da interpretação que ora é apresentada, não representará nenhuma liberalidade oportunista nociva à sociedade. Bem ao contrário, é nítida a vantagem em se servir da nova lei que ante ao fato de que a mesma traz institutos muito mais sofisticados, inclusive no campo gerencial, tais como limites financeiros de dispensa de licitação muito mais confortáveis do que no regime anterior, prazos de execução contratual mais extensos, pré-qualificação de fornecedores, produtos e marcas dentre outras excelentes novidades.

Ante o exposto, entende-se que os órgãos da Administração Pública devem ser assim orientados:

a) durante o período de convivência normativa entres as leis gerais de licitações e contratos anteriores e a nova lei de licitações, a possibilidade de a Administração poder se utilizar do regime licitatório primitivo, conforme conferido pelo art. 191, da Lei federal nº 14.133/2021, se estende até o ato da autoridade Competente que expressamente fizer tal opção, cuja data fatal é 31 de março de 2023, último dia útil anterior ao fim da vigência da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002;

b) deve ser considerado o ato a que se refere o parágrafo anterior, o ato de autorização de instauração do procedimento licitatório, expedido no início da fase preparatória da licitação, devendo, a referida decisão, mencionar expressamente a legislação a ser aplicada;

c) caso a decisão seja pela adoção do regime anterior, recomenda-se fixar prazo máximo para publicação do respectivo edital de licitação, que deverá ser congruente com o prazo médio que o órgão consome na fase de planejamento da contratação;

d) deflagrada a licitação no regime anterior, o contrato ou a ata de Registros de Preços dela decorrente permanecerá regida pelo mesmo regime, considerando o princípio da ultratividade estabelecido no art. 191, parágrafo único da Lei nº 14.133/2021 e,

Sugere-se, por fim, que o órgão expeça, com a brevidade que o caso requer, aviso circular, de modo a orientar as unidades demandantes sobre como proceder com os processos licitatórios que se encontram em início de tramitação.

 

 

* Luiz Claudio de Azevedo Chaves é Administrador e Jurista, pós-graduado em Direito Administrativo. Autor de várias obras e artigos relacionados às contratações públicas. Atualmente ocupa o cargo de Assessor-Chefe da Assessoria Técnica da Secretaria – Geral de Contratos e Licitações do Tribunal de Justiça/RJ. É articulista nos principais periódicos especializados em Licitações e Contratos, destacando-se, dentre eles a Revista do Tribunal de Contas da União-RTCU; Revista dos Municípios-IBAM; Fórum de Contratações e Gestão Pública-FCGP/FÓRUM.

 

** Andréa Poggio Contardo da Fonseca é Bacharel em Direito, pós-graduada em Direito Empresarial. Servidora de carreira do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Atualmente, ocupa o cargo de Presidente da Comissão Permanente de Licitações e Assistente na Assessoria Técnica da Secretaria – Geral de Contratos e Licitações do mesmo órgão.

 


[2] CRFB, art. 37, XXI – XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.              (Regulamento)

 

[3] FIGUEIREDO, Fábio Vieira. Manual de Direito Civil, 2ª. ed.. Jus Pudivm, 2020, págs 48 e 49

[4] Nesse sentido: TORRES, Ronny Charles L.Art. 191 da NLLCA e o significado de optar por licitar. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/art-191-da-nllca-e-o-significado-de-optar-por-licitar/ . Acessado em 26/02/2023.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 19ª. ed. Malheiros. São Paulo, 1994, p. 154.

[6] No sentido de que o marco fatal é a publicação do edital, vide: Neste sentido, os ilustres Marçal Justen Filho e Rafael Sérgio Oliveira. Vide: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1768; e CAMARÃO, Tatiana; FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 614. Já no sentido de que a opção é na fase preparatória, leia-se: [4] Neste sentido, os também ilustres Joel Niebuhr, Fernanda Marinela e Rogério Cunha. Vide: NIEBUHR, Joel de menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 5ªedição. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 60 e 61. MARINELA, Fernanda. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Licitações e Contratos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. 880. p.40-43; e, TORRES, Ronny Charles L., Art. 191 da NLLCA e o significado de optar por licitar. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/art-191-da-nllca-e-o-significado-de-optar-por-licitar/ Acessado em 27/02/2023.

[7] TCU, Acórdão nº 2.279/2019, Plenário. Rel. Min. Augusto Nardes, julg. em 25/09/2019.

[8] Op. Cit. p. 60.

[9] Disponível em: https://www.licitacoes-e.com.br/aop/index.jsp Acessado em 09/03/2023, as 09:56.

[12] TORRES, Ronny Charles Lopes, PEDRA, Anderson Sant’Ana e OLIVEIRA, Rafael Sérgio, a mística da impossibilidade de pagamento antecipado pela administração pública. apud CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996. p. 14-15. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-mistica-da-impossibilidade-de-pagamento-antecipado-pela-administracao-publica/ Acessado em 09/03/2023.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

Andréa Poggio Contardo da Fonseca

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