por Luiz Claudio de Azevedo Chaves[1]
Linhas Introdutórias
Tornou-se corriqueiro no âmbito das contratações públicas um hábito, equivocado, diga-se, desde já, de se promover, na fase interna da licitação, uma espécie de licitação prévia. Decorrente de excesso de zelo ou de um simples mal-entendido interpretativo, o fato é que muitos órgãos começaram a adotar procedimentos muito mais rigorosos para essa fase do que a própria norma exige. Esse agir se revela de forma bastante contundente quando examinamos os procedimentos de pesquisa de preços, notadamente, quando a mesma é baseada em consultas formuladas às empresas do segmento comercial a que pertence o objeto da futura contratação. Exigências de que a resposta à consulta deve ser veiculada em papel timbrado, assinada e com firma reconhecida eram muito frequentes e, mesmo tendo diminuído, ainda se encontra, aqui e ali, órgãos que insistem nessa prática. Outra exigência também muito comum era de que as empresas consultadas deveriam apresentar certidões fiscais negativas (ou positivas com efeito de negativa), sob o argumento de que seus preços somente seriam válidos se a empresa tivesse condições de participação na licitação. Sequer considero necessário discorrer sobre a impropriedade dessa exigência, de tão óbvia que é. Passemos, pois, imediatamente ao ponto focal deste trabalho.
Com muito maior frequência, ainda se vê órgãos (inclusive dos grandes centros urbanos e boa estrutura administrativa e profissionais qualificados em seus quadros) que entendem que a empresa que participou da cotação, durante a fase interna da licitação tem a obrigação de manter o preço ofertado na licitação, caso venha a dela participar, admitindo alteração apenas se for para menos. Há uma corrente que defende que a cotação vincula a empresa, o que a impediria de ser contratada caso viesse a ser consagrada vencedora do certame, porém com preço superior àquele anteriormente apresentado. Não há como concordar com essa tese, em primeiro lugar, por absoluta ausência de fundamento legal; em segundo, por impropriedade dos métodos interpretativos que conduzem a essa teratológica conclusão.
O estudo em tela, antes de se aprofundar no tema central, exige seja esclarecida a natureza jurídica da proposta, segundo as teorias do Direito Privado, seus desdobramentos em termos de obrigações para, posteriormente, entendermos seus efeitos, tendo em mira a finalidade e o papel desempenhado pela pesquisa de preços na fase preparatória da licitação. Senão vejamos.
O poder vinculante da proposta
A proposta é instituto do Direito Privado e representa uma declaração de vontade na qual, segundo a clássica lição de Orlando Gomes[2], “é a firme declaração receptícia de vontade dirigida à pessoa com a qual pretende alguém celebrar um contrato, ou ato público”.
Consiste a proposta no primeiro passo, dentre o conjunto de atos tendentes a realização do contrato propriamente dito. Denominada também de policitação, objetiva a declaração da vontade da outra parte, que é a aceitação. O art. 427 do Código Civil estabelece que:
Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.
Conforme se observa da redação do texto normativo acima, a proposta obriga o proponente, desde que de seus termos ou da sua natureza ou ainda das circunstâncias do caso concreto não restar desconfigurada tal vinculação. O art. 428 do mesmo Códex discorre outras situações que podem provocar a desvinculação da palavra empenhada na proposta, a saber:
Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta:
I – se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante;
II – se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente;
III – se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado;
IV – se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente.
Como se nota, em que pese ser regra geral a vinculação do proponente, é fato que essa vinculação dependerá de a proposta ser formulada em termos objetivos que denotem com higidez a intenção da parte proponente. Tem como fundamento o princípio da autonomia da vontade, que, segundo Maria Helena Diniz[3], representa “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.”
Como é cediço, a proposta somente vincula o proponente se presentes seus requisitos essenciais, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello[4]: a) seriedade; b) concreção; e, c) firmeza. Séria é a proposta formulada com a intenção e a possibilidade de ser executada. Firme é aquela formulada sem titubeio, sem condicionantes. E, finalmente, concreta, é a proposta cujo objeto se acha integralmente definido em seus termos. Presentes tais requisitos, apenas ficará faltando a aceitação para nascer o contrato.
Destaque-se que a proposta deve ser inequívoca, precisa e completa, isto é, formulada de tal modo que, em virtude da aceitação, se possa obter o acordo sobre a totalidade do contrato. Bem anota Sérgio Ruy B. de Mello[5] no sentido de que a ausência de tais requisitos importa em considerar que a proposta, quando muito, se constituiria em mero “convite a fazer oferta, não sendo pré-negocial e não tendo relevância jurídica, como o simples pedido de informações.”(GN)
Configura-se aceitação a anuência, tácita ou expressa com os termos exatos da proposta. Deste modo, a aceitação é a manifestação da vontade que une os contraentes, vinculando-os juridicamente. Expressada a aceitação o contrato estará formado.
Nesse compasso, a norma privada, preceitua, que a aceitação, não pode sofrer alterações, pois implicará em nova proposta, nos termos do art. 431 do Código Civil:
Art. 431 – A aceitação fora do prazo, com adições, restrições, ou modificações, importará nova proposta.
Portanto, é indene de dúvidas que a proposta somente vincula o proponente, diante da presença de seus requisitos formadores, bem como, se de seus termos, natureza ou circunstâncias, não se conclua o contrário. E, por fim e não menos importante, que haja a aceitação da outra parte, sem modificações.
Natureza e finalidade da cotação em sede de pesquisa de preços
A pesquisa de preços ou também chamada de análise de mercado[6] é atividade vinculada desenvolvida na fase preparatória da licitação e tem por finalidade identificar o preço médio de mercado do objeto que a Administração pretende contratar. De posse dessa informação, o órgão ou entidade poderá verificar a existência de disponibilidade orçamentária e dará ao Gestor ferramentas gerenciais para que possa exercer seu juízo de conveniência e oportunidade em contratar o objeto. Por meio dessa atividade, a Administração poderá perceber o “comportamento” do mercado em relação ao objeto que pretende contratar. Trata-se, pois, de uma resposta de cunho estatístico, cujo resultado depende da coleta de dados de precificação obtidos em fontes idôneas. E, justamente por ser um resultado estatístico, quanto maior o volume de dados coletados, maior será a precisão do resultado.
Para o fim de se obter o resultado mais preciso possível, a Instrução Normativa nº 65/2021/SEGES/ME, prevê que o agente responsável por essa atividade deverá buscar informações nas mais variadas fontes de consulta, nos termos do art. 5º da referida norma:
Art. 5º A pesquisa de preços para fins de determinação do preço estimado em processo licitatório para a aquisição e contratação de serviços em geral será realizada mediante a utilização dos seguintes parâmetros, empregados de forma combinada ou não:
I – Painel de Preços, disponível no endereço eletrônico gov.br/paineldeprecos, desde que as cotações refiram-se a aquisições ou contratações firmadas no período de até 1 (um) ano anterior à data de divulgação do instrumento convocatório;
II – aquisições e contratações similares de outros entes públicos, firmadas no período de até 1 (um) ano anterior à data de divulgação do instrumento convocatório;
III – dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, desde que atualizados no momento da pesquisa e compreendidos no intervalo de até 6 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do instrumento convocatório, contendo a data e hora de acesso; ou
IV – pesquisa direta com fornecedores, mediante solicitação formal de cotação, desde que os orçamentos considerados estejam compreendidos no intervalo de até 6 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do instrumento convocatório.(GN)
§1º Deverão ser priorizados os parâmetros estabelecidos nos incisos I e II. .(GN)
Note-se que a consulta direta com fornecedores (leia-se, também, prestadores de serviços, quando for o caso), é apenas uma das fontes de consulta que poderá subsidiar a Administração a estabelecer o preço médio de mercado. Mas, segundo o § 1º, acima transcrito, não é fonte prioritária; tampouco, obrigatória. Nada obstante, é cristalina a utilidade da consulta formulada às empresas do ramo pertinente que é a de obter dados que possam ser somados a outros, oriundos de outras fontes.
Por óbvio, que a obtenção de dados de precificação dessa específica fonte de consulta somente poderá vir por meio de consulta direta, endereçada às empresas do ramo pertinente ao objeto. E essa é justamente a orientação constante do referido normativo:
§ 2º Quando a pesquisa de preços for realizada com os fornecedores, nos termos do inciso IV, deverá ser observado:
I – prazo de resposta conferido ao fornecedor compatível com a complexidade do objeto a ser licitado;
II – obtenção de propostas formais, contendo, no mínimo:
a) descrição do objeto, valor unitário e total;
b) número do Cadastro de Pessoa Física – CPF ou do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ do proponente;
c) endereço e telefone de contato; e
d) data de emissão.
III – registro, nos autos da contratação correspondente, da relação de fornecedores que foram consultados e não enviaram propostas como resposta à solicitação de que trata o inciso IV do caput.
Ao ser consultada, a empresa responde ao pedido por meio da apresentação de uma proposta comercial que é chamada coloquialmente de cotação. Consigne-se, desde já, que a resposta do empresário à consulta formulada pela Administração tem natureza eminentemente informativa.
No entanto, nem sempre a resposta é dirigida. Não são raros os casos de empresas que se recusam a ofertar cotação e as razões são as mais variadas, desde a necessidade de evitar que o mercado conheça antecipadamente sua estratégia de venda até mesmo por falta de mão de obra disponível para tal atendimento. Também não são raros os casos em que, para responder ao pedido de cotação, a empresa tenha que dispor de várias horas/homem de seus empregados, muitas vezes altamente qualificados, para poder interpretar as exigências técnicas do Termo de Referência para, após, produzir um documento de resposta adequado.
Em razão disso, é bastante conhecido no âmbito dos setores responsáveis pelas contratações dos órgãos e entidades da Administração Pública a dificuldade de se obter preços dos fornecedores e prestadores de serviço. Acrescente-se outro amargo ingrediente que é o quase total desrespeito ao fornecedor consultado. Pouquíssimos órgãos públicos tomam o cuidado de dar satisfação ao fornecedor sobre o resultado da cotação. Simplesmente encaminham um e-mail com um pedido seco, frio, em tom de quase imposição e muitas vezes com uma lista enorme de itens para serem cotados. O fornecedor, eivado de enorme boa vontade, interrompe toda sua atividade e se dedica a responder. Depois de encaminhar a resposta sequer recebe um retorno de agradecimento. E ocorre coisa pior! Por vezes, a cotação oferecida fica “engavetada” no setor de pesquisa de preços sem andamento e, quando o processo finalmente segue adiante, a cotação já perdeu a validade ou tem mais de 180 dias de emitida, fazendo perecer o requisito temporal fixado no inciso IV, do art. 5º, da IN 065/2021/SEGES/ME. E, nesse caso, com a maior naturalidade, como se não fosse um infortúnio, o órgão/entidade, encaminha novamente o e-mail, solicitando a renovação da cotação. Outra ocorrência bastante frequente é o órgão alterar a especificação a todo momento e, com isso, pedir ao fornecedor nova cotação. Em minha trajetória profissional já tive de lidar com respostas bastante ácidas de fornecedores que não aguentavam mais fornecer cotação à toa.
Natureza não vinculante da cotação apresentada pelas empresas na fase preparatória da licitação
A resposta oferecida pelas empresas, em que pese normalmente intituladas como Proposta Comercial, tem, em verdade, características de simples informação. Isto porque as empresas têm total consciência de que a cotação encaminhada não se transformará em contrato, pois a Administração Pública, dada a obrigação constitucional inserta no art. 37, XXI da CRFB, não poderá dar seu “aceite” a esta proposta, posto que obrigada a promover o competente torneio licitatório. À exceção fica por conta das consultas formuladas para o fim de instruir processos de dispensa ou inexigibilidade de licitação, que, caso atendam aos requisitos formulados pela Administração, poderá se transformar em contrato.
Ademais disso, ao publicar o edital de licitação, a Administração abre nova oportunização para oferecimento de propostas, o que coloca uma pá de cal sobre o suposto aspecto vinculante da cotação apresentada na fase interna deste processo licitatório.
Sendo assim, é aplicável a parte final do art. 427 do Código Civil, incorrendo ao caso duas das exceções nele previstas, ou seja, a natureza do negócio, que é de mera obtenção de informação; e, as circunstâncias do caso, em que houve nova oportunidade para a empresa apresentar nova proposta. Tais elementos esvaziam o conteúdo da proposta primitiva ofertada a título de simples informação na fase preparatória da licitação, não podendo, agora, ser a mesma resgatada.
A respeito da não vinculação do fornecedor à proposta encaminhada em sede de cotação de preços, Alexandre Sampaio[7] afirma que:
[…] os fornecedores não têm qualquer obrigação de fornecer essa informação [orçamento antes da licitação] e, ainda que o façam, não se vinculam aos preços orçados por ocasião de uma futura licitação.O próprio Tribunal de Contas da União também já se manifestou na mesma linha de entendimento da doutrina aqui citada. Veja-se o excerto obtido do Acórdão nº 2.149/2014, Primeira Câmara:[8]
Os preços obtidos pela Administração na fase interna da licitação, em coletas destinadas apenas a formar o preço de referência dos serviços a serem licitados, precisam ser vistos com reserva, porque o mercado fornecedor está ciente de que os valores informados naquela ocasião não vinculam as propostas que eventualmente venham a apresentar no certame licitatório. (GN)
Naquela assentada, se discutia a possível prática de superfaturamento em contrato firmado para prestação de serviços de vigilância. O Ministro Relator enfatizou que como os fornecedores de bens e serviços não apresentam cotações com o preço que efetivamente pretendem praticar, para não adiantarem sua estratégia de negócios aos seus concorrentes, “esses preços não se mostram hábeis a compor o referencial usado na quantificação de aparente superfaturamento de preços”.
Da possibilidade/necessidade de promoção de nova rodada de negociação.
Firmado e robustamente fundamentado o entendimento segundo o qual a cotação apresentada pelo particular na fase interna da licitação não vincula o fornecedor consultado, não resta dúvida que, tratando-se de informação idônea, a circunstância de o mesmo fornecedor, agora na qualidade de licitante, vir a praticar preço superior àquele, ainda que vencedor do certame, exige certo cuidado da Administração, com escólio no dever de eficiência, que, com o advento da EC nº 19, passou a integrar o elenco de princípios jurídicos, constante do art. 37, caput da CRFB, a serem observados pela Administração Pública.
O dever de eficiência, segundo lição lapidar de Cintra do Amaral[9], “contido no caput do art. 37 da Constituição, refere-se à noção de obrigações de meio.” Em outro dizer, trata-se de um dever de conduta, uma vez que a regra jurídica não pode prescrever resultado. Paulo Modesto[10], examinando com acuidade este princípio jurídico, aduz ainda que:
O princípio constitucional da eficiência é um princípio instrumental,
como todos os princípios da administração pública. Nenhum princípio de direito administrativo tem valor substancial auto-suficiente. Integra-se com os demais princípios, não podendo sobrepor-se a eles ou infirmar-lhes a validade. Não há nisso maior novidade. Os princípios são normas que exigem ponderação, concordância prática, aplicação tópica, complementação, como há anos nos ensinou Canaris. Por isso, o princípio da eficiência, como todo princípio, não possui caráter absoluto, mas irradia efeitos em quatro dimensões: cumpre uma função ordenadora, uma função hermenêutica, uma função limitativa e função diretiva.
Significa, pois, que deve o agente público adotar todos os meios e recursos que lhes estão disponíveis para o fim de ver alcançado o interesse público. O dever de eficiência é um dever de agir (dever de meio); não se trata de uma obrigação de alcançar-se o resultado, que muitas vezes foge ao domínio ou possibilidades do agente público.
Vertendo para a matéria em apreço, é de se reconhecer a relevância da informação consistente no fato de a empresa vencedora do certame ter apresentado cotação inferior ao apresentado em sede de licitação. Afinal de contas, ainda que se admita que as empresas, nessa fase, “escondem” suas reais possibilidades e limites comerciais, certo também é que jamais apresentariam cotação inexequível, isto é, abaixo de suas capacidades.
De posse de tal informação e em homenagem ao dever de eficiência, entende-se que é dever da Administração abrir nova rodada de negociações, com o fito de viabilizar redução de preços, fulcrado no disposto no artigo 61, da Lei nº 14.133/2021 c/c art. 38, do Decreto nº 10.024/2019:
Lei nº 14.133/2021
Art. 61. Definido o resultado do julgamento, a Administração poderá negociar condições mais vantajosas com o primeiro colocado.
Decreto nº 10.024/2019:
Art. 38. Encerrada a etapa de envio de lances da sessão pública, o pregoeiro deverá encaminhar, pelo sistema eletrônico, contraproposta ao licitante que tenha apresentado o melhor preço, para que seja obtida melhor proposta, vedada a negociação em condições diferentes das previstas no edital.
Ainda ao tempo da vigência do Decreto Federal nº 5.450/2005, em cujo art. 24, § 8º empregava a expressão, poderá encaminhar […] contraproposta ao licitante que tenha apresentado lance mais vantajoso, para que seja obtida melhor proposta, o Tribunal de Contas da União passou a reconhecer tratar-se não de um ato discricionário, mas de um dever da Administração negociar melhores condições com o autor da melhor proposta, conforme se observa no Acórdão nº 694/2014, Plenário:
[…] uma vez concedida a prerrogativa legal para adoção de determinado ato, deve a administração adotá-lo, tendo em vista a maximização do interesse público em obter-se a proposta mais vantajosa, até porque tal medida em nada prejudica o procedimento licitatório, apenas ensejando a possibilidade de uma contratação por valor ainda mais interessante para o Poder Público.[11]Em julgado posterior, ainda no mesmo ano, a Corte Federal de Contas estendeu tal dever a todas as modalidades licitatórias:
22. Não obstante concluir, tal qual a unidade técnica, que cabe sim negociação – na busca da proposta mais vantajosa para a Administração Pública – no âmbito de todas as modalidades licitatórias, aí se inserindo, por óbvio as previstas na Lei nº 8.666/93, não se me afigura desarrazoado que os integrantes da comissão de licitação tenham concluído pela impossibilidade de se negociar condições mais vantajosas com licitantes no âmbito de uma concorrência.(GN)[12]
Mais recentemente, o TCU reafirmou tal dever, ainda que o preço do autor da melhor proposta esteja abaixo do valor orçado pela Administração, afastando o que se poderia chamar vantajosidade econômica presumida:
ENUNCIADO
Na modalidade pregão, a negociação com o licitante vencedor visando obter melhor proposta para a Administração deve ser realizada mesmo se o valor ofertado for inferior àquele orçado pelo órgão ou pela entidade promotora do certame (art. 38, caput, do Decreto 10.024/2019)[13]
Nessa toada, a conclusão a que se chega é que o fato de o licitante vencedor ter participado da fase de cotação de preços apresentando, naquela oportunidade, valores mais reduzidos do que o que lhe rendeu a vitória no certame, exige do Agente da Contratação/Pregoeiro, seja aberta etapa de negociação tendo por parâmetro justamente aquele preço anteriormente ofertado.
A providência a ser tomada deve ser no sentido de se encaminhar, via sistema, contraproposta ou até mesmo agendar reunião, que poderá ser presencial ou tele presencial, conforme for mais conveniente para as partes envolvidas, com a finalidade de se promover nova rodada de negociações, da qual, ao final, seja lavrada Ata que retrate os pontos abordados, as justificativas apresentadas e os compromissos eventualmente assumidos.
Da teratológica hipótese de desclassificar a proposta caso não readequada
Em primeiro plano, é mister deixar consignado que uma negociação profissional não é (ou, não deveria ser) um joguinho intuitivo em que uma parte desgasta a outra, regateando preço e condições até que a outra parte, finalmente esgotada, ceda. A ciência da Administração cuida desse assunto há várias décadas, tendo sido a Harvard School Bussines uma das principais precursoras nesse estudo, a partir do best seller Getting to yes: negotiating agreement without giving in.
Um processo de negociação é, antes de tudo, um processo de comunicação[14] com forte viés subjetivo. Trata-se, na visão de Mills,[15] de um processo que visa alcançar a satisfação de uma necessidade para todas as partes envolvidas. A negociação comporta passos para identificar quatro questões básicas, a saber: metas tangíveis, metas emocionais e simbólicas, resultados desejados e impactos esperados nos relacionamentos.[16] No entendimento de Fisher e Ury[17], a negociação é um processo de comunicação bilateral, com o objetivo de se chegar a uma decisão conjunta. Logo, a conclusão a que se chega é que uma negociação não comporta imposição. Consequentemente, o licitante vencedor não poderá ser compelido a reduzir seus preços. O Pregoeiro ou Agente da Contratação, poderá, no máximo, buscar persuadir o licitante a fazê-lo, tendo por parâmetro o preço que ofertou na fase de cotação. Mas, reprise-se, não será obrigado a flexibilizar seu preço.
Ultimadas as tratativas, sendo legítimo ao licitante não ceder, diante de tal ocorrência, pergunta-se: o Pregoeiro estaria autorizado a desclassificar a proposta do licitante, consubstanciado no fato de que o mesmo teria apresentado preço menor na fase de cotação e não o manteve na licitação? Por todos os ângulos em que se observa, a resposta será negativa.
Para início de conversa a respeito do processo de negociação, o § 1º do art. 61, da Lei nº 14.133/2021, traz a seguinte redação:
§ 1º A negociação poderá ser feita com os demais licitantes, segundo a ordem de classificação inicialmente estabelecida, quando o primeiro colocado, mesmo após a negociação, for desclassificado em razão de sua proposta permanecer acima do preço máximo definido pela Administração. (GN)
O que se nota claramente é que a recusa do fornecedor em ceder na negociação não foi considerado elemento motivador de seguir com a negociação aos demais licitantes na ordem de classificação. O Agente da Contratação/Pregoeiro somente o fará diante da hipótese de o preço final permanecer acima do preço máximo fixado pela Administração. E não é disso que estamos tratando, pois aqui, a hipótese é o preço estar abaixo do valor máximo admitido no edital, porém, acima da cotação.
A nova lei de licitações prevê objetivamente as hipóteses em que o licitante terá sua proposta desclassificada, a saber:
Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:
I – contiverem vícios insanáveis;
II – não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;
IV – não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;
V – apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanável.
Ora, se o licitante não descumpriu o critério limitador das propostas e não incorreu em nenhuma das hipóteses previstas no dispositivo legal acima transcrito, não sobra fundamento jurídico para sua desclassificação.
Não só isso, muito embora, suficiente para tal conclusão.
Imaginar que a consequência de a empresa recusar a readequação da sua proposta seria a sua desclassificação do certame, caso adotada, atrairia o absurdo resultado de não contratar com a proposta mais vantajosa para a Administração, abrindo espaço para contratação mais onerosa, se seguindo a ordem de classificação ou, sequer contratar, revogando-se o certame, impedindo a Administração de atender à demanda de interesse público retratado na contratação, adiando, frise-se, desnecessariamente, a providência. A solução última seria realizar nova licitação, o que atrairia o risco de prática de preços mais elevados do que os aferidos no torneio. Nenhuma dessas soluções teria guarida no princípio da legalidade, considerando o dever do agente de agir na conformidade do Direito. Não seria razoável interpretar a norma licitatória, que visa a garantir a melhor contratação possível para a Administração, de maneira que sua consequência jurídica seja justamente o oposto disso, ou seja, a pior solução. Relembre-se a clássica lição de Carlos Maximiliano[18], in verbis:
Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo.
Ademais disso, tal solução, estaria em total desalinho com o preceito insculpido no art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas do direito Brasileiro, verbis:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.(GN)
A adoção dessa equivocada prática, ao contrário de trazer benefícios para a Administração, tende a acarretar danos insuportáveis, tendo em vista de que as empresas passariam a recusar o oferecimento de cotações. Sobre a Administração forçar o empresário a manter os preços da fase interna na licitação, com seu conhecido senso arguto, Ivan Barbosa Rigolin[19] observa que:
Desse modo, para o fornecedor, a cotação seria uma espécie de ‘maldição’. Se acaso aquele fornecedor que orçou vem a participar da licitação, vê-se subitamente em uma sinuca de bico: se repete o preço que adiantou é pouco inteligente, pois que já abrira e anunciara seu preço; se propõe mais alto está pretendendo superfaturar, e se cota mais baixo então mentiu à Administração anteriormente, quando cotou mais alto.
Esse prejuízo pode ser insuportável na medida em que, em muitos casos, dada a especificidade do objeto, a consulta aos fornecedores acaba sendo a única fonte de consulta apta a subsidiar a estimativa de preços; ou pior, incentivaria as empresas a superdimensionarem seus preços, o que atrairia graves prejuízos para o planejamento orçamentário do órgão.
Conclusão
Diante de tudo o que foi acima exposto, conclui-se que, em razão do princípio da autonomia da vontade, a empresa que oferta cotação a pedida da Administração, durante a fase preparatória da licitação, não fica vinculada ao preço informado, por tratar-se de ato cuja natureza jurídica é de simples informação.
Caso essa mesma empresa venha a participar da licitação e seja autora da proposta mais vantajosa, com preço acima daquele primitivamente informado, deve o Agente da Contratação/Pregoeiro abrir rodada de negociações, na tentativa de persuadir o licitante a reduzir seus preços, tendo por parâmetro, o preço informado na fase interna do certame.
Sendo infrutíferas as tratativas, não é possível desclassificar a proposta do fornecedor, salvo se o preço vencedor permanecer acima do preço máximo fixado pelo órgão.
Por fim, poderá a autoridade competente revogar a licitação se, das suas circunstâncias, o ato licitatório se revelar inconveniente, nos termos do art. 71, II da Lei nº 14.133/2021, respeitado o contraditório previsto no § 3º do mesmo dispositivo legal.
[1] Administrador Público e Jurista, pós-graduado em Direito Administrativo. Assessor Especial para Contratação de STIC do Tribunal de Justiça/RJ, de onde é servidor de carreira, com mais de 30 anos de serviço. É Professor Convidado da Fundação Getúlio Vargas-FGV/PROJETOS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-RIO, além de diversas instituições de ensino e Escolas de Governo do País. Autor, dentre outras, das seguintes obras: Curso Prático de Licitações, os segredos da Lei 8.666/93, Lumen Juris; Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratações de Serviços da Administração Pública, ed. JML; A Atividade de Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, 2ª. ed. Fórum; e, Como fixar os requisitos de qualificação técnica nas licitações da administração pública, ed. Fórum, 2022. Membro do Conselho Editorial da Revista SÍNTESI – Direito Administrativo, ed. IOB.
[2] GOMES, Orlando. Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 65
[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18.ed., v.3, São Paulo: Editora Saraiva, 2003.
[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 17ª ed., Malheiros. São Paulo, 2004.
[5] MELLO, Sérgio Ruy Barroso de. Relevância Jurídica da Proposta na Formação do Contrato de Resseguro. Revista Opinião.Seg nº 11 – outubro de 2015. Ed. Roncarati, pags. 56 a 62.
[6] Expressão utilizada pelo Conselho Nacional de Justiça para a Meta 17, P17.10. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/12/meta_17_de_2013.pdf Acessado em 12/06/2023.
[7] SAMPAIO, Alexandre. Pesquisa de preços com base em apenas três orçamentos de fornecedores não funciona!. Blog da Zênite, 09/01/2012. Disponível em: https://zenite.blog.br/pesquisa-de-precos-com-base-em-apenas-tres-orcamentos-de-fornecedores-nao-funciona/ Acessado em 28/06/2023.
[8] TCU, Acórdão nº 2.149/2014, Primeira Câmara. Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, julg. em 20/05/2014.
[9] AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O Princípio da Eficiência no Direito Administrativo.. ReDAE, Salvador, º 5. Março/abril/maio, 2006. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/ Acessado em 13/06/2023.
[10] MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Revista do Serviço Público, Ano 51, nº 2, abril-junho/2000.
[11] TCU, Acórdão nº 694/2014, Plenário. Rel. Min. Walmir Campelo, julg. em 26/03/2014.
[12] TCU, Acórdão nº 1.401/2014, Segunda Câmara. Rel. Min. José Jorge, julg. em 08/04/2014.
[13] TCU, Acórdão nº 2.622/2021, Plenário. Rel. Min. Augusto Sherman, julg. em 03/11/2021.
[14] Nesse sentido, vide MARTINELLI, Dante P.; ALMEIDA, Ana P. de. Negociação: como transformar confronto em cooperação. São Paulo: Atlas, 1997.
[15] MILLS, Harry A. Negociação: a arte de vencer. São Paulo: Makron Books, 1993.
[16] Vide LEWICKI, Roy J.; HIAM, Alexander; OLANDER, Karen W. (1996).Think before you speak: a complete guide to strategic negotiation. New York: John Wiley.
[17] FISHER, Roger; URY, William. C., PATTON, Bruce. Como chegar ao sim: a negociação de acordos sem concessões. Rio de Janeiro: Imago, 1985.
[18] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13ª ed. Forense. Rio de Janeiro: 1993, p.180
[19] RIGOLIN, Ivan Barbosa. Por que a dupla licitação? Temor ou mal-entendido. Disponível em: https://rigolinadvocacia.com.br/artigos/detalhes/76 Acessado em 28/06/2023.