Resumo
As entidades do Sistema S, dotadas de regulamentos próprios de licitações e contratos, utilizam procedimentos auxiliares para otimizar suas contratações. Dentre eles, destaca-se a pré-qualificação, majoritariamente prevista no artigo 19 de seus diplomas. O presente artigo tem como objetivo analisar o instituto da pré-qualificação no âmbito do Sistema S, investigando sua estrutura normativa, seus efeitos práticos e, crucialmente, diferenciando-o do credenciamento. A pesquisa, de natureza qualitativa, foi desenvolvida por meio de análise bibliográfica e documental dos Regulamentos de Licitações e Contratos de entidades como SESI, SEST e SESCOOP, além de enunciados de órgãos especializados. Os resultados demonstram que a pré-qualificação é um procedimento de seleção prévia de licitantes ou bens para uma futura licitação, funcionando como um filtro de capacidade técnica e habilitação, mas não autoriza, por si só, a contratação direta. Esclarece-se que tal prerrogativa pertence ao credenciamento, procedimento distinto e adequado para mercados com multiplicidade de agentes e preços flutuantes. Conclui-se que a correta aplicação de cada instituto é vital para a governança e eficiência das contratações, existindo, ainda, uma sinergia positiva entre eles, conforme orientação do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).
Palavras-chave: Pré-qualificação; Sistema S; Licitações e Contratos; Credenciamento; Eficiência Administrativa; Governança Corporativa.
1. Introdução
As entidades componentes do Sistema S (Serviços Sociais Autônomos) desempenham um papel de notória relevância social no Brasil, executando atividades de interesse público em áreas como educação profissional, saúde e lazer. Para a consecução de seus objetivos, realizam um volume expressivo de contratações, o que exige procedimentos de compra eficientes, transparentes e seguros.
Dotadas de natureza jurídica de direito privado e não integrando a Administração Pública, essas entidades não se submetem ao regime estrito da Lei nº 14.133/2021, possuindo autonomia para editar seus próprios Regulamentos de Licitações e Contratos (RLC). Contudo, por gerirem recursos de origem parafiscal, devem obediência aos princípios constitucionais da Administração Pública, insculpidos no art. 37 da Constituição Federal. Nesse contexto, buscam constantemente conciliar a celeridade e a eficiência gerencial com a isonomia e a busca pela proposta mais vantajosa.
Para enfrentar esse desafio, os RLCs preveem procedimentos auxiliares, inspirados na legislação pública, mas adaptados à sua realidade. Entre eles, figura a pré-qualificação, um mecanismo que antecipa a verificação da capacidade de potenciais fornecedores. Todavia, a aplicação prática deste instituto suscita dúvidas, em especial sobre seus limites e sobre a possibilidade de se formalizar contratos diretamente com os participantes pré-qualificados.
O presente artigo, portanto, tem como objetivo geral analisar o instituto da pré-qualificação nos RLCs do Sistema S, investigando sua estrutura normativa e sua aplicação prática. Como objetivos específicos, busca-se: mapear as disposições sobre pré-qualificação em diferentes RLCs; diferenciar conceitual e pragmaticamente a pré-qualificação do credenciamento; e discutir a sinergia entre ambos os procedimentos para a promoção da eficiência. A justificativa do estudo reside na necessidade de conferir segurança jurídica aos gestores e licitantes, otimizando o uso de ferramentas que podem conferir maior governança e celeridade às contratações do Sistema S.
2. Referencial Teórico
2.1. O Sistema S e seu Regime Jurídico de Contratações
O Sistema S é composto por um conjunto de entidades de direito privado, criadas mediante autorização legal para realizar atividades de interesse público. Por não integrarem a Administração Pública direta ou indireta, não se sujeitam à Lei Geral de Licitações. O Tribunal de Contas da União (TCU) pacificou o entendimento de que tais entidades devem seguir regulamentos próprios, desde que estes observem os princípios gerais do art. 37 da Constituição Federal.
2.2. Princípios Aplicáveis às Licitações no Sistema S
A autonomia regulamentar do Sistema S não é absoluta. Suas contratações são guiadas por princípios basilares, como a isonomia, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade, a eficiência, a probidade administrativa, a vinculação ao instrumento convocatório1 e a busca pela proposta mais vantajosa, assegurando um processo justo e competitivo.
2.3. Os Procedimentos Auxiliares de Contratação
A Lei nº 14.133/2021 consolidou a figura dos “procedimentos auxiliares”, que incluem o credenciamento, a pré-qualificação, o procedimento de manifestação de interesse, o registro cadastral e o sistema de registro de preços. Tais mecanismos não são um fim em si mesmos, mas ferramentas de gestão que visam otimizar futuras contratações. A pré-qualificação, em específico, é definida pela doutrina como uma “fase preliminar eventual da licitação”, que funciona como uma etapa de “habilitação que antecede a licitação, com o objetivo de racionalizar o procedimento licitatório de grande complexidade ou para objetos que serão reiteradamente contratados” (NIEBUHR, 2022). Sua finalidade, portanto, é selecionar antecipadamente os interessados que demonstrem possuir a qualificação técnica e econômico-financeira necessária para participar de um certame futuro.
3. Metodologia
A presente pesquisa caracteriza-se como qualitativa, de tipo descritivo-exploratório. Para sua realização, foi empregada a técnica de pesquisa documental, com a análise direta dos Regulamentos de Licitações e Contratos (RLC) de entidades representativas do Sistema S, notadamente o Serviço Social do Transporte (SEST), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SESI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP). Adicionalmente, utilizou-se como fonte o Enunciado nº 31 do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), que versa sobre a matéria. A análise se completa com a revisão bibliográfica de doutrina especializada em licitações e contratos administrativos.
4. Análise e Discussão dos Resultados
4.1. A Estrutura Normativa da Pré-qualificação nos Regulamentos do Sistema S
A análise dos RLCs revela que a pré-qualificação é um instituto consolidado, figurando como um procedimento auxiliar permanente. Na maioria dos regulamentos, como os do SEST e SESCOOP, a matéria é tratada no Artigo 19:
(SEST, SESCOOP)
Art. 19. A pré-qualificação é o procedimento técnico-administrativo para selecionar previamente:
I – licitantes que reúnam condições de habilitação para participar de futura licitação2 […];
II – bens que atendam às exigências técnicas ou de qualidade estabelecidas pela contratante.
[…]§ 2º O procedimento de pré-qualificação ficará permanentemente aberto para a inscrição de interessados.
§ 6º A pré-qualificação poderá ser parcial ou total, com alguns ou todos os requisitos técnicos ou de habilitação necessários à contratação […].
§ 8º Os licitantes e os bens pré-qualificados serão obrigatoriamente divulgados e mantidos à disposição do público.
§ 9º A licitação que se seguir ao procedimento da pré-qualificação poderá ser restrita a licitantes ou bens pré-qualificados.
O regulamento do SESI, embora trate do tema em artigos distintos (26 a 29), mantém a essência, definindo a pré-qualificação como um meio de selecionar fornecedores ou bens para uma futura seleção com disputa.
Dos textos normativos, extraem-se as características centrais do instituto:
- Duplo Objeto: Pode visar tanto a habilitação de licitantes (análise de capacidade jurídica, fiscal, técnica e econômico-financeira) quanto a certificação da qualidade de bens e marcas.
- Permanência e Acesso: O procedimento é permanentemente aberto, permitindo que novos interessados se qualifiquem a qualquer tempo, o que mitiga o risco de restrição à competitividade.
- Flexibilidade: Pode ser parcial, analisando apenas os requisitos mais complexos, ou total.
- Efeito Jurídico: Sua principal consequência é permitir que a licitação futura seja restrita ao universo de pré-qualificados, otimizando o certame ao focar a disputa apenas na proposta comercial.
4.2. A Aferição da Qualidade de Bens: A Exigência de Amostra e Prova de Conceito
Quando a pré-qualificação visa selecionar bens (inciso II do Art. 19), a “comprovação de qualidade” (§ 1º, II) torna-se o cerne do procedimento. Para tal aferição, o edital pode prever a exigência de apresentação de amostra ou prova de conceito, com o intuito de verificar a compatibilidade do objeto com os requisitos do termo de referência.
Os regulamentos do Sistema S, como o do SEBRAE, buscam conceituar tais instrumentos. A “amostra” é o “exemplar a ser fornecido […] com a finalidade de atestar o cumprimento integral das especificações”, enquanto a “prova de conceito” é o “modelo ou protótipo” com o mesmo objetivo. Embora similares, a amostra é mais usual para bens de prateleira, e a prova de conceito aplica-se melhor a soluções customizadas ou adaptadas[1].
A doutrina corrobora essa finalidade, afirmando que a prova de conceito busca “verificar se a solução concebida satisfaz às exigências do edital em termos de características técnicas, qualidade, funcionalidade e desempenho do produto” (PEREIRA Junior; DOTTI, 2017, p. 88-89).
A exigência de ambos, contudo, requer cautelas para não ferir a competitividade. O termo de referência deve justificar a sua necessidade, comprovando não haver meio menos oneroso para aferir a conformidade do objeto. Por essa razão, e para evitar custos desnecessários a quem não possui chance real de vitória, a boa prática administrativa, alinhada à jurisprudência, determina que a amostra ou a prova de conceito sejam exigidas “apenas do licitante provisoriamente classificado em primeiro lugar”. Ademais, a entidade deve prever critérios objetivos de teste e certificar-se de que possui equipe técnica e estrutura adequadas para realizar a análise de forma isonômica e imparcial[2].
4.2. A Distinção Crucial com o Credenciamento e a Impossibilidade de Contratação Direta
Uma questão fundamental para a correta aplicação dos procedimentos auxiliares de licitação é determinar os limites da pré-qualificação em face do credenciamento, especialmente no que tange à possibilidade de contratação direta.
Entende-se que a pré-qualificação não autoriza a contratação direta. Tal conclusão deriva de sua própria natureza jurídica e finalidade: trata-se de uma fase prévia e preparatória de um futuro certame, cujo objetivo é otimizar a etapa de habilitação (para fornecedores) ou de análise técnica (para bens). A inclusão de uma empresa ou produto em uma lista de pré-qualificados gera apenas a aptidão para participar de uma futura licitação de participação restrita, não conferindo direito à contratação imediata. A efetiva seleção do contratado dependerá, invariavelmente, de um processo licitatório subsequente.
Em contrapartida, o credenciamento é o instrumento concebido especificamente para viabilizar contratações diretas e não excludentes. Previsto, em geral, no artigo 20 dos RLCs, seu propósito é formar um rol de fornecedores aptos a atender às demandas da entidade, sendo especialmente útil em mercados com alta volatilidade de preços. A operacionalização do credenciamento difere substancialmente, pois a contratação se dá por demanda.
4.3. Sinergia e Eficiência: A Conexão entre Pré-qualificação e Credenciamento
Embora sejam institutos distintos com finalidades diversas, a pré-qualificação e o credenciamento podem operar de forma sinérgica para maximizar a eficiência. É perfeitamente possível que uma entidade, ao conduzir um processo de credenciamento, aproveite um processo de pré-qualificação já existente.
Nesse sentido, o Enunciado nº 31 do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) – 2024 oferece uma diretriz clara e inteligente:
ENUNCIADO 31
“A certificação de pré-qualificação de bens, mediante justificativa, poderá ser usada no credenciamento para substituir a prova de qualidade, sendo dispensada a exigência de amostra ou prova de conceito”.
Essa orientação permite que, se um determinado bem já teve sua qualidade atestada em um rigoroso processo de pré-qualificação, a entidade pode dispensar nova etapa de teste de amostras no credenciamento. Evita-se, assim, a duplicidade de esforços e custos para a administração e para os fornecedores, promovendo a eficiência sem sacrificar a segurança da contratação.
5. Conclusão
A pré-qualificação, tal como estruturada nos Regulamentos de Licitações e Contratos do Sistema S, revela-se uma poderosa ferramenta de gestão e governança. Ao antecipar a análise de habilitação de licitantes e a conformidade de bens, o procedimento confere celeridade, segurança e qualidade às futuras licitações, especialmente aquelas de maior complexidade ou recorrência.
Contudo, este estudo demonstrou ser fundamental a correta compreensão de seus limites. A pré-qualificação é uma fase preparatória, um filtro de aptidão, e não autoriza a contratação direta. A confusão deste instituto com o credenciamento representa um risco jurídico e administrativo, podendo levar a contratações indevidas. O credenciamento é o mecanismo apropriado para a formação de um rol de fornecedores aptos a serem contratados diretamente, de forma não exclusiva.
Recomenda-se, portanto, que as entidades do Sistema S utilizem cada procedimento para sua finalidade específica, garantindo a segurança jurídica de seus atos. Ademais, sugere-se a adoção de práticas que explorem a sinergia entre os institutos, como a aceitação da pré-qualificação de bens como prova de qualidade em processos de credenciamento, conforme preconiza o Enunciado 31 do IBDA.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 15 jun. 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO ADMINISTRATIVO (IBDA). Enunciados Aprovados. Disponível em: https://ibda.com.br/wp-content/uploads/2025/03/ENUNCIADOS-_-DIGITAL.pdf#page=21.52. Acesso em: 15 jun. 2025.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitações e Contratos Administrativo. 11. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
LOPES, Julieta Mendes. Comentários aos Regulamentos de Licitações e Contratos dos Serviços Sociais Autônomos. 2. ed. rev., atual e ampl. Pinhais: JML, 2024.
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Mil perguntas e respostas necessárias sobre licitação e contrato administrativo na ordem jurídica brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
REGULAMENTOS DE CONTRATAÇÕES DO SISTEMA S. Pinhais: JML, 2024.
[1] LOPES, Julieta Mendes. Comentários aos Regulamentos de Licitações e Contratos dos Serviços Sociais Autônomos.2. ed. rev., atual e ampl. Pinhais: JML, 2024. P. 88
[2] Idem p. 89.