Na esteira do combate à pandemia do COVID-19, outra Medida Provisória (nº. 966/2020) foi recentemente editada, desta feita com o intuito de traçar os parâmetros para a responsabilização dos gestores públicos por ação ou omissão durante o período de calamidade pública.
Entendida por alguns, a exemplo do grande jurista e amigo, Rodrigo Pironti[1], como mera reprodução do que já constava na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e, por outros, como “salvo conduto” para evitar a responsabilização de governantes durante a pandemia, mormente no que diz respeito às práticas voltadas à manutenção da atividade econômica, em nosso sentir, se em grande parte a Medida Provisória reproduziu conteúdo já normatizado em nosso ordenamento jurídico, por outro lado, não se pode olvidar que em alguns aspectos ela traz conteúdo relevante e que merece reflexão.
Vejamos o que dispõe a Medida:
“Art. 1º. Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:
I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e
II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.
§ 1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:
I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou
II – se houver conluio entre os agentes.
§ 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.
Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Art. 3º. Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:
I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;
III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas”.
Conteúdo similar já estava previsto no art. 28, da LINDB:
“Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
Infere-se, de ambas as normas, que o agente público responderá pessoalmente no caso de dolo ou erro grosseiro, sendo este último, na visão do Tribunal de Contas da União, “o que decorreu de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave”, a teor do Acórdão 1689/2019, do Plenário.
Mas, sendo erro grosseiro um conceito jurídico indeterminado, um ponto positivo da Medida Provisória, em nosso sentir, foi estabelecer no art. 3º os parâmetros que devem ser sopesados para apurar a responsabilização do agente, a exemplo dos obstáculos e as dificuldades, a complexidade da matéria, as circunstâncias de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência, eventuais circunstâncias limitadoras, etc.
Essas condicionantes já poderiam ser extraídas da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro. Mas a delimitação objetiva confere maior segurança jurídica ao gestor que, nesse período complexo e desafiador de calamidade pública, muitas vezes se vê compelido a decidir sem dispor de informações suficientes, sendo responsabilizado por erros escusáveis, mormente porque impera em alguns órgãos de controle o Direito Administrativo do Medo.
Outro ponto salutar que se extrai da Medida Provisória 966/2020 é a delimitação da responsabilização civil apenas nos casos de dolo ou erro grosseiro. Ainda que seja crível essa conclusão à luz do disposto no art. 28, da LINDB, fato é que o Tribunal de Contas da União tem entendido que a gradação da culpa, para o fim de aferir se houve ou não erro grosseiro, só se aplica na esfera administrativa, não eximindo o gestor do dever de indenizar, por força do que dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
Sobre o tema, colaciona-se Boletim de Jurisprudência nº. 273/2019:
Acórdão
Acórdão 5547/2019 Primeira Câmara (Embargos de Declaração, Relator Ministro Benjamin Zymler)
Indexação
Responsabilidade. Débito. Culpa. Dolo. Erro Grosseiro. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Enunciado
A regra prevista no art. 28 da LINDB (Decreto-lei 4.657/1942), que estabelece que o agente público só responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro, não se aplica à responsabilidade financeira por dano ao erário. O dever de indenizar prejuízos aos cofres públicos permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, tendo em vista o tratamento constitucional dado à matéria (art. 37, § 6º, da Constituição Federal)”.
Em suma, a Medida Provisória abre espaço para o debate jurídico pertinente à aplicabilidade do erro grosseiro, nos termos do art. 28, da LINDB, à responsabilização civil do gestor.
O que você acha a respeito?