A ATIVIDADE ADVOCATÍCIA E A FUNÇÃO DO ASSESSOR JURÍDICO

Como é bastante cediço, o exercício da advocacia não encontra amparo apenas com a obtenção do certificado de conclusão do curso superior de graduação em Direito. Os bacharéis em direito somente poderão iniciar sua carreira na profissão de advogado a partir da sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, conforme estabelece o art. 8º do Estatuto da Advocacia, Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, que doravante, trataremos apenas por ‘Estatuto’ ou simplesmente ‘EAOAB’.

Uma vez que o bacharel recebe a Carteira da Ordem, passa a gozar das prerrogativas inerentes ao exercício da advocacia e atuar naquelas atividades que são privativas do advogado, que, nos termos do art. 1º do Estatuto, são: I – postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos Juizados Especiais; II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

As atividades de assessoria, consultoria e direção jurídicas, eram tratadas no Estatuto anterior (Lei n. 4.215/65 e Provimento n. 66/88 do Conselho Federal da OAB) de forma um pouco menos precisa:

“Art. 1º A advocacia compreende, além da representação, em qualquer juízo, tribunal ou repartição, o procuratório extrajudicial, assim como os trabalhos jurídicos de consultoria e assessoria e as funções de diretoria jurídica.” (grifei).

No atual Estatuto, essas atividades mereceram um tratamento um pouco mais atento, ganhando um inciso específico no art. 1º. Pode parecer discreta a alteração, porém, terminou por formalizar explicitamente tais atividades profissionais e entrega-las para atuação privativa de bacharel em Direito regularmente inscrito na OAB.

Advocacia preventiva: distinção entre consultoria, assessoria e direção

Na consultoria e na assessoria, o causídico busca orientar o seu cliente a tomar decisões sobre atos jurídicos que pretenda empreender. Nas palavras de Gisela Gondin Ramos[1], cuida-se de atividade de “advocacia preventiva”. Há uma sutil diferença entre os trabalhos de consultoria e assessoria. Na consultoria, o cliente (consulente) faz uma indagação sobre o assunto que lhe desperta interesse ou lhe aflige. O advogado, a partir dos dados fáticos emite sua resposta à luz do Direito na forma de um parecer, que, em última medida, se reveste em um aconselhamento. O parecer pode ser escrito ou verbal, mas em ambos os casos deverá ser conclusivo, ou seja, o advogado (consultor) deverá se posicionar objetivamente sobre a questão posta, indicando as razões que o conduziram a adotar aquele posicionamento.

Na assessoria, o advogado auxilia seu cliente na condução de atos da vida civil em que os conhecimentos jurídicos são determinantes para tomada de decisões capazes de gerar efeitos jurídicos, reunindo dados e informações de natureza jurídica. A contratação de uma assessoria jurídica visa evitar prejuízos futuros, com ações judiciais, e anulação de atos por vícios de ordem jurídica. O assessoramento induz várias atividades específicas. Pode ser uma mediação de conflitos, em que o advogado será um condutor para a chegada a um acordo justo entre as partes envolvidas. Pode ser também o acompanhamento em uma reunião em que as partes tratarão de assuntos que envolvam, em alguma medida, conhecimentos legais sobre as matérias constantes das pautas, como ocorre, por exemplo, a respeito da presença de um advogado indicado pela Administradora de Imóveis em uma Assembleia Geral em um condomínio.

Já a atividade de direção, envolve, necessariamente, a coordenação ou chefia de um setor nas organizações, públicas ou privadas, que seja responsável pelas atividades de consultoria, assessoria ou mesmo postulação jurídica (contencioso). Destaque-se que o exercício da atividade de direção em setores ou departamentos jurídicos não seria restrita a questões de organização, planejamento financeiro e de logística, o que poderia ser exercido perfeitamente por um Administrador. À frente de um departamento jurídico, o advogado pode até não exercer diretamente as atividades de postulação ou de assessoramento, mas será o responsável pela estratégia que será adotada na demanda judicial ou administrativa; conduzirá seus auxiliares nas pesquisas; revisará petições e outras peças técnicas; será o principal norte para a corrente doutrinária a ser adotada a cada caso. Para isso, é absolutamente necessário que detenha os conhecimentos que lhe permitirá exercer seu ofício com o grau de qualidade e apuro técnico que se espera de um departamento jurídico.

A Advocacia preventiva no setor público

A palavra advogado é derivada do latim ad-vocatus, que quer significar “o que é chamado em defesa”. Assim, advogado é o profissional que tem por missão defender alguém ou uma causa. A profissão surgiu, na idade antiga, por mero espírito de solidariedade exercido por pessoas de bem, detentoras de maior conhecimento das leis e providas de elevada cultura para, de forma graciosa e filantrópica, ajudar os mais fracos e os necessitados quando haviam de se entender com os Tribunais[2]. Daí a origem do nome.

Dito isto, pode-se afirmar com absoluta segurança que o advogado, quando investido de funções públicas para exercício de seu nobre ofício, está a ser chamado a defender a sociedade, assim fazendo a serviço da verdade, do direito e da justiça, pilares nos quais se vê alicerçada a dignidade da profissão de advogado.

Uma vez investido de função pública, o papel do Advogado Público é realizar a mediação entre a vontade democrática e o direito, compreendendo a política pública que se deseja implementar e buscando estabelecer os mecanismos que viabilizem a realização dessa vontade estatal.

A advocacia pública pode se dar por dois meios: de forma direta ou de forma indireta. Nesta, o Estado contrata serviços de terceiros, que podem ser advogados pessoas físicas ou sociedades de advogados, constituindo-se verdadeira terceirização dos serviços de advocacia pública. Naquela, o Estado contrata diretamente os profissionais (pessoas físicas) para ocuparem cargos no quadro permanente das respectivas instituições. Por quadro permanente, entenda-se o conjunto de cargos de provimento efetivo e os de provimento em comissão. Como é cediço, os cargos de provimento efetivo, por força de princípio constitucional (art. 37, II, da CF) somente podem ser preenchidos por meio de concurso público; já os de provimento em comissão, podem ser ocupados por indivíduos estranhos ao serviço público.

Em interessante caso julgado no Órgão Especial do Tribunal de Justiça/RS[3], analisou-se a constitucionalidade de dispositivos de uma Lei Municipal do Município de Igrejinha que criara cargos de Assistente Jurídico, Assessor Jurídico, Coordenador Jurídico e Assessor Técnico no Setor Jurídico. Na oportunidade, em sua manifestação, i ilustre membro do parquet, apoiado na melhor doutrina pátria, fez excelente distinção entre cargo público efetivo, em comissão e função gratificada, lição a qual, pela clareza e pertinência, a despeito da extensão, peço licença para transcrever:

“(…)Da leitura do artigo 16 da Lei Municipal n.º 3.898/2007, com as alterações inseridas pela Lei Municipal n.º 3.928/2007, vê-se que os cargos de Assistente Jurídico e Assessor Jurídico são cargos em comissão; já o de Coordenador Jurídico e o de Assessor Técnico no Setor Jurídico são definidos como função de confiança.

Para o deslanche da questão posta, importa traçar breves considerações sobre a distinção entre cargo e função, uma vez no presente caso, em relação ao Coordenador Jurídico e ao Assessor Técnico no Setor Jurídico, não há criação de cargo, apenas há outorga de adicional de função para servidores já regularmente admitidos no serviço público e que ocupam cargo efetivo. Nesse ponto, importa trazer à colação, pela propriedade, as considerações trazidas pelo Desembargador Relator Genaro José Baroni Borges, no voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 70033308800 (TJRS/Órgão Especial, j. 06-12-2010).:

‘[…] No dizer de Hely Lopes Meirelles, “cargo público é o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei.”. (Direito Administrativo Brasileiro – pag. 419 – Malheiros – trigésima terceira edição). Não se confunde, pois, com função, “atribuição ou conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional, ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais…” (ob. A. e pag. citados). Também não se confunde com a denominada FUNÇÃO GRATIFICADA ou FUNÇÃO DE CONFIANÇA, vantagem pecuniária “pro labore faciendo”, criada por lei, necessariamente ligada a determinado cargo, que acresce ao vencimento de servidor regularmente investido, ocupante de cargo efetivo, em razão de encargos de direção, chefia, assessoramento, supervisão ou de confiança. Dito isso prossigo. A denominada FUNÇÃO DE CONFIANÇA, destinada às atribuições de direção, chefia e assessoramento, tem assento constitucional – CF- art. 37,V. De outra parte, a lei que cria cargo em comissão há de definir as respectivas atribuições, como impõe o art. 32 da Constituição Estadual; todavia,  não estende a exigência para a instituição de GRATIFICAÇÃO pelo exercício de FUNÇÃO DE CONFIANÇA, de que aqui se está a tratar. […]’

Ainda, faz-se mister salientar que os servidores públicos em sentido amplo podem ser classificados em quatro espécies: agentes políticos, servidores públicos em sentido estrito ou estatutários, empregados públicos e os contratados por tempo determinado. Cada espécie é regida por regramento próprio e atende a necessidades diversas da Administração (MEIRELLES,  Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15 ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, SãoPaulo: Malheiros, 2009, p.417).

Os servidores públicos estatutários são aqueles que ocupam cargos públicos efetivos ou cargos públicos em comissão, criados por lei e providos por meio de concurso público ou convite/indicação, respectivamente.

(…)

Nessa linha, vale assinalar que os cargos em comissão são de natureza permanente, porém de provimento precário e compreendem, consoante assentado na doutrina pátria, quatro ideias principais: excepcionalidade, chefia, confiança e livre nomeação e exoneração.

Excepcionalidade, porque na administração pública a regra é que os servidores ocupem cargos de provimento efetivo, submetendo-se a concurso público para admissão, de modo que somente excepcionalmente, em número e para situações limitadas, podem ser criados e providos cargos em comissão.

Chefia, porque os cargos em comissão devem ser utilizados para funções estratégicas da Administração Pública, de coordenação, direção e assessoramento superior, de modo que o Poder Público possa agir de forma una no cumprimento de suas finalidades, sem desvio das metas e padrões estabelecidos pelos Agentes Políticos incumbidos da escolha dos comissionados.

São verdadeiros representantes dos agentes políticos, que, subordinados às diretrizes e ordens dadas por esses, ficam incumbidos de dirigir a máquina administrativa e os demais funcionários.

Por isso, também é inerente aos cargos em comissão a ideia de confiança do agente político para com o comissionado, bem como a possibilidade de livre nomeação e exoneração, já que, uma vez perdida a confiança, ou não sendo bem conduzida a chefia, podem ser livremente demitidos, sem a necessidade de processo administrativo. Tal possibilidade está contemplada no artigo 37, inciso II, parte final, da Constituição Federal, e repetido pelo artigo 32 da Constituição Estadual, o qual dispõe que a investidura em cargo ou emprego público depende de concurso público, salvo quanto às nomeações para cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

Veja-se que a confiança inerente ao cargo em comissão não é aquela comum, exigida de todo o servidor público, mas a especial, essencial para a consecução das diretrizes traçadas pelos agentes políticos. Essa confiança por último tratada é própria dos altos cargos, em que a fidelidade às diretrizes traçadas pelos agentes políticos, o comprometimento político e a lealdade a esses são essenciais para o próprio desempenho da função.(…)”

Somente para essas hipóteses excepcionais está autorizada a criação de cargos em comissão, pois esses, sendo de livre nomeação e exoneração, afastam a necessidade do concurso público e da estabilidade, garantias contempladas nas Constituições Federal e Estadual em benefício da comunidade, para permitir o amplo acesso dos cargos públicos às pessoas que preencham os requisitos estabelecidos em lei e a atuação impessoal dos servidores, sujeitos apenas à lei, não a pressões políticas.

Feitos esses aportes, pode-se concluir que não basta, para a adequação constitucional, que o nome deste ou daquele cargo remeta a funções que exijam especial confiança: necessário é que as atribuições reflitam essa natureza.”

Consoante o que foi dito acima sobre a atividade de consultoria, assessoria e direção jurídicas, o cargo ou função de assessor jurídico dos órgãos e entidades da Administração Pública é destinado ao exercício da advocacia preventiva. Assim, o profissional sempre será instado a manifestar-se em processos administrativos (consultoria), exarando pareceres sobre atos jurídicos; participar de reuniões gerenciais (assessoria), para auxiliar na tomada de decisões, opinando acerca dos desdobramentos jurídicos das medidas suscitadas, ou ainda, coordenar e orientar os respectivos departamentos jurídicos (direção). A partir das suas ponderações (escritas ou verbais) o Gestor toma a sua decisão de fazer ou deixar de fazer algo, segundo a orientação oferecida.

A questão das incompatibilidades e impedimento entre o exercício de cargo público com a atividade advocatícia

Segundo o art. 3º, § 1º. do Estatuto, os membros das Consultorias Jurídicas dos Estados, Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional, exercem atividade de advocacia. Bem assim dito, sendo as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas privativas de advogado, a regular inscrição do profissional na OAB é, em princípio, indispensável à nomeação.

Se por um lado, as atividades de assessoria e consultoria jurídicas devem ser exercidas privativamente por advogado, mesmo nos órgãos públicos, casos haverá em que o próprio cargo público a ser preenchido é incompatível com o exercício da advocacia.

A incompatibilidade é a proibição total do exercício da advocacia, um conflito absoluto; o impedimento, uma proibição parcial, significando que a outra atividade pode coexistir com a advocacia, porém de forma limitada. No primeiro caso, o advogado perde jus postulandi e em nenhuma hipótese poderá exercer as atividades que lhe são privativas enquanto durar a circunstância que causa a incompatibilidade. No segundo, o jus postulandi é afetado apenas para questões de ordem pontual.

O art. 28, III do Estatuto arrola como incompatível com o exercício da advocacia, os ocupantes de cargos ou funções de direção em órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público. Já o inciso IV, aponta a incompatibilidade com a advocacia os ocupantes de cargos ou funções vinculadas direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro. Também é incompatível com a advocacia os ocupantes de cargos da atividade policial (inciso V) e os militares da ativa (inciso VI), assim como os ocupantes de cargos ou funções que tenham por competência o lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais (inciso VII).

Para Gisela Godin Ramos[4], a norma anterior — Lei 4.215/63, art. 83 — permitia a interpretação subjetiva em razão de considerar incompatível com a advocacia “qualquer atividade, função ou cargo público que reduza a independência profissional ou proporcione captação de clientela”, o que alargava a incidência das hipóteses de incompatibilidade. Segundo a autora, o novel Estatuto teria solucionado essa circunstância ao enumerar as situações passíveis de enquadramento, salientando ainda que tais hipóteses “são diretos e objetivos, sem possibilidade de dar vazão a qualquer interpretação subjetiva por parte do aplicador da norma. Contudo, a interpretação que o Conselho Federal da OAB vem emprestando ao parágrafo 2º do art. 28 do Estatuto inclina-se em outra direção. O dispositivo excepciona os ocupantes de cargo ou direção que não detenham poder de decisão relevante sobre interesse de terceiros. Em interpretação a contrário senso, quer dizer que a incompatibilidade não se dá pela natureza de comando ou coordenação do cargo ou função ocupado; tampouco pela sua nomenclatura (o que seria, aí sim, aplicação objetiva).

A incompatibilidade ocorre quando o múnus do cargo ou função vier a incluir poder decisório sobre interesse de terceiros; e não será qualquer poder decisório, este, deve ser relevante. Não estaria alcançada pela incompatibilidade, e.g., a função de direção cujo comando se restringisse à organização de um setor interno de caráter meramente operacional, como por exemplo seria o Chefe do Setor de Distribuição de Materiais de um Departamento de Patrimônio e Material. A despeito de exercer algum comando, sua atuação, caso limitada à coordenação da distribuição de material estocado para os demais setores administrativos não encerra nenhuma afetação relevante a direito de terceiros. Contudo, se dentre as suas competências estiver incluída a de recebimento de material, a incompatibilidade surgiria, pois este ato envolve decisões relevantes sobre o direito de terceiros, in casu, os fornecedores. Afinal o recebimento (ou não) de material acarreta importantes situações jurídicas no âmbito do contrato. Veja-se o seguinte precedente do CFOAB[5]

“Recadastramento. Cargo de Gerente da Consultoria Jurídica da Agência Catarinense de Fomento S.A – Badesc. Inexistência de incompatibilidade para o exercício da Advocacia, por ser o cargo de natureza burocrática e de assessoramento sem poder de decisão, mas tão somente de coordenar e executar determinações superiores. Ficando tão somente impedido para atuar contra a Fazenda Pública, por interpretação analógica do art. 30, inciso I, da Lei no. 8.906, de 4 de julho de 1994.”

Outro interessante caso que fora debatido também pela Primeira Câmara do CFOAB[6], senão vejamos:

“1. O exercício das funções de inerentes à Presidência da Comissão Permanente de Licitação vinculada a ente público, ainda que cumuladas com a de Procurador Geral, impõe a incompatibilidade prevista no inc. III, art. 28 da Lei, uma vez que não incidente a situação contemplada no § 2º, do mesmo art. 28. 2. Afastada, no entanto, do exercício da Presidência da Comissão de Licitação, passando somente a assessorá-la na condição de Procuradora Geral do Município à recorrente se aplica o art. 29, da Lei no. 8.906/94. 3. Recurso provido em parte.”

Notem que o douto órgão deliberativo considerou a atividade de Presidente de Comissão de Licitação como sendo uma função que possui poder de decisão relevante sobre interesses de terceiros, muito embora, seja um componente de um órgão colegiado que decide por maioria de votos. A despeito de o Presidente de Comissão de Licitação, nos termos do art. 51, da Lei 8.666/93, sequer possuir o voto de minerva, é notório que o mesmo exerce poder de decisão relevante sobre direito de terceiros (licitantes).

A questão da incompatibilidade excepcionada

Mas, como seria possível aos órgãos e entidades do Poder Público disporem de uma estrutura de assessoramento jurídico a permitir, e.g., o controle prévio da juridicidade dos atos licitatórios previsto no art. 38, par. único da Lei 8.666/93? Tratar-se ia de uma norma absolutamente contraditória, na qual, de um lado se opera a reserva de mercado ao advogado para tais atividades, seja no setor privado, ou no público, mas de outro, proibiria justamente a indicação do único profissional legalmente habilitado a prestá-los. Foi exatamente nesse diapasão que o Conselheiro Federal Sérgio Frazão[7] se manifestou ao consignar que, verbis:

“Entendia-se e se entende que, para chefiar, superintender, coordenar, gerenciar, dirigir ou orientar serviços jurídicos de qualquer entidade, pública ou particular, o detentor desse cargo ou função de direção deverá ser, necessariamente, um advogado. Não se compreenderia nem se compreende um leigo dirigir um técnico especialmente, um advogado, cujos conhecimentos científicos específicos são indispensáveis ao bom desempenho desse mister. Destarte, seria contraditório entender que a lei teria querido estabelecer um conflito total com o exercício da advocacia (art. 82) a ocupação de algum cargo ou o exercício de alguma função relacionada com a direção de serviços de qualquer natureza, incluindo os jurídicos, da União, do Distrito Federal, dos Estados, Território e Municípios, bem como de autarquias, entidades paraestatais, sociedades de economia mista e empresas administradas pelo Poder Público, como está no art. 84, inciso Vi, do Estatuto pretérito. Se assim fosse — e assim jamais pode ser — estar-se-ia diante de uma contradição insuperável de se obstaculizar o exercício de uma função a alguém, a cujo credenciamento somente ele pode estar qualificado. Em síntese, proibir a algum advogado de ocupar um cargo que só ele e ninguém mais pode ocupar. Estar-se-ia, dessa forma, se condenando os serviços, departamentos ou diretorias jurídicas de empresas privadas ou públicas, ou de qualquer órgão do serviço público, a serem dirigidos por leigos, ou obrigar a que incompatíveis exerçam a profissão a qual estavam em conflito total, à luz fria da lei.”

A solução para esse conflito vem tratada no art. 29, do Estatuto que prevê que os procuradores gerais, advogados gerais, defensores gerais, e dirigentes de órgãos da Administração Pública direta, indireta e fundacional são exclusivamente legitimados para o exercício da advocacia vinculada à função que exerçam, durante o período da investidura. Trata-se da chamada incompatibilidade excepcionada.

Por assim dizer, nas entidades públicas, a indicação para o exercício de funções que sejam incompatíveis com a advocacia, deve recair no profissional qualificado e habilitado para tanto, ou seja, deve ser exercida por um advogado. Durante o período que estiver vinculado ao cargo ou função, poderá exercer o ofício apenas a favor do órgão ou entidade onde prestará tais serviços jurídicos, restando incompatibilizado para todas as demais atividades jurídicas que forem estranhas ao dito cargo ou função.

Se um advogado privado, que mantém em operação regular seu escritório jurídico, ou que faça parte de uma sociedade de advogados, for nomeado, por exemplo, para assessor jurídico de uma Secretaria Municipal, poderá exercer todas as tarefas pertinentes a esse encargo (exarar parecer jurídico, prestar assessoramento jurídico, postular perante o Poder Judiciário ou a outros órgãos e repartições públicas), isto é, sempre na defesa dos interesses do órgão que o nomeou. Mas ao mesmo tempo, e durante o período quem que se mantiver nomeado, deverá abster-se de atuar em seu escritório, transferindo suas causas a outro profissional devidamente habilitado, afastando-se da sociedade de advogados de que participa:

“Advogado nomeado para exercer cargo em comissão de Diretor do Departamento de Justiça, de Secretaria de Justiça Municipal. Incompatibilidade excepcionada. Advogado nomeado Diretor de órgão jurídico da administração pública direta, indireta ou fundacional, durante o período da investidura, está legitimado para exercer a advocacia, exclusivamente, vinculada a função, e em mais nenhuma atividade.”[8]

Mas também temos que considerar os casos dos servidores do quadro efetivo dos órgãos que, pela sua natureza, os tornam incompatíveis com a Advocacia, como é o caso dos serventuários da justiça, dos órgãos policiais, os militares etc. Destacou-se anteriormente que estes órgãos também necessitam estar providos de núcleo de assessoramento jurídico para diversos fins. Se o servidor se torna bacharel em Direito após tomar posse (o que é muitíssimo comum), o mesmo estará é incompatível com a advocacia e não será admitido nos quadros da OAB:

“RECURSO N. 49.000.2013.009890-3/OEP. Recte: Antonio Marcos Madureira. Interessado: Conselho Seccional da OAB/Mato Grosso do Sul. Relator: Conselheiro Federal José Luis Wagner (AP). EMENTA N. 067/2015/OEP. Recurso ao Órgão Especial. Acórdão não unanime da Primeira Câmara do CFOAB. Agente Penitenciário requer sua inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. 1) A atividade policial de qualquer natureza, onde estão incluídos os agentes penitenciários, é incompatível com o exercício da advocacia, consoantes art. 28, V do Estatuto. 2) Uma vez identificada a incompatibilidade do bacharel, não pode ser deferida sua inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (grifei). 3) Recurso ao qual se conhece e nega provimento. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros do Órgão Especial, observado o quorum exigido no art. 92 do Regulamento Geral, por unanimidade, em acolher o voto do Relator, parte integrante deste, conhecendo e negando provimento ao recurso. Impedido de votar o Representante da OAB/Mato Grosso do Sul. Brasília, 19 de maio de 2015. Cláudio Stábile Ribeiro, Presidente em exercício. José Luis Wagner, Relator. (DOU, S.1, 03.07.2015, p. 225)

Ora, uma interpretação literal conduziria ao absurdo de um Tribunal ou uma corporação militar, mesmo tendo em seus quadros, após aprovados em concurso público de provas e títulos, profissional de nível superior, mesmo sendo altamente qualificado, dele não poder se servir e ter de contratar advogados externos para compor seus quadros de assessores jurídicos. Portanto, penso que a aqui cabe interpretação extensiva do art. 29, do Estatuto, que em princípio prevê a incompatibilidade excepcionada do advogado (bacharel regularmente inscrito na OAB) para o exercício exclusivo da advocacia pública, para entender que, com arrimo no mesmo art. 29 do Estatuto, o bacharel impedido de obter sua regular inscrição poderá exercer as atividades de assessoramento e consultoria jurídica, como se advogado fosse, sem caracterizar exercício ilegal da profissão, ao que poderíamos chamar de compatibilidade excepcionada.

Mas essa solução cabe bem para a atividade de advocacia preventiva. A de advocacia contenciosa, quando exercida por servidor do quadro efetivo, há que se observar os requisitos do cargo efetivo, de acordo com a lei que o criou. Se a mesma não exigiu inscrição na OAB, apenas o bacharelado, não restará caracterizado igualmente o exercício ilegal da profissão.

A terceirização da Advocacia Pública: licitação ou inexigibilidade

Muitos órgãos e entidades sofrem com escassez de mão de obra qualificada, o que leva a Administração a servir de terceiros para execução indireta de tarefas-meio. A terceirização não deixa de ser uma ferramenta para contornar essa dificuldade e manter a máquina pública em perfeito funcionamento. Com a chamada atividade de advocacia preventiva não é diferente. Quando o órgão não possui em seus quadros profissionais do Direito com a devida qualificação, a solução pode ser a adoção da terceirização. No entender de Di Pietro,[9] a terceirização “aparece hoje entre os institutos pelos quais a Administração Pública moderna busca a parceria com o setor privado para realização de suas atividades.”

Os serviços advocatícios, quando executados de forma indireta (terceirizados) admitem ser executados com ou sem mão de obra dedicada exclusivamente a favor do contratante. O contrato poderá abranger tanto a advocacia preventiva como a contenciosa. Em razão do foco deste trabalho, vamos nos dedicar apenas à primeira.

Os serviços de advocacia preventiva poderão ser contratados por meio de dois objetos:

a) serviços terceirizados de apoio ao setor jurídico; ou,
b) contratação de serviços de consultoria jurídica.

Na primeira, o contrato abrangerá toda a sorte de atividades e atribuições técnicas de suporte a departamento jurídico. É mais adequado quando o órgão contratante dispuser de jurista(s) do quadro efetivo (de provimento efetivo ou de provimento em comissão). Alguns poderão pensar que a contratação desse serviço de “apoio ao setor jurídico” esbarraria na vedação do art. 9º, I da IN 02/2008, que consiste na proibição de terceirizar categorias funcionais constantes do plano de cargos do contratante. Não é verdade.

A vedação normativa guarda total consonância com a Súmula 331 do TST, pois ao terceirizar atividade do plano de cargos, em verdade, estaria o tomador dos serviços transferindo a terceiros sua atividade-fim. Porém, o que não se pode terceirizar é a atividade que é exercida pelo ocupante do cargo público, não a categoria funcional, como parece ser em interpretação literal. O fato de haver advogado no quadro não elide a possibilidade de a Administração contratar serviços terceirizados em que seja necessária a presença de advogados, desde que as atribuições do advogado terceirizado não se confundam com a do advogado do quadro.

Nenhum problema haverá se a contratação se revestir de um contrato de apoio ao(s) advogado(s) do quadro, cujo objeto poderá compreender: pesquisa de jurisprudência, entrevista com agentes públicos e autoridades administrativas; análise de material probatório, peças processuais; elaboração de minutas de relatórios, pareceres, editais, contratos, exposições de motivos; seleção e organização de acervo bibliográfico.

Esta solução inevitavelmente exigirá dedicação exclusiva da mão de obra, que poderá ser confiada a advogado(s) júnior(es).[10]Não haveria superposição de atribuições na medida em que os advogados terceirizados não se responsabilizariam pelas opiniões técnicas a serem exaradas, mas apenas em fornecer subsídios e realizar tarefas

A segunda alternativa seria a contratação do serviço de consultoria jurídica. É indicada para as situações em que o órgão não dispõe de cargo no quadro efetivo para ser preenchido por jurista. Neste caso, toda a advocacia preventiva ficaria a cargo do contratado. Mas em ambos os casos, é necessário a Administração tomar alguns cuidados para o fim de não efetivar contratação ilegal.

Em qualquer dos casos, em virtude do comando constitucional que fixa o dever geral de licitar (art. 37, XXI), em princípio, a licitação será obrigatória. Para o caso da contratação de “serviços de apoio”, não tenho qualquer dúvida que é caso de licitar. Para a segunda situação, quer dizer, para contratação de serviços de consultoria jurídica, pode ocorrer a hipótese de a licitação se tornar inexigível. O art. 25, II, c/c art. 13, III, da Lei 8.666/1993 prevê a seguinte situação de inexigibilidade:

Art. 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(…)
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

Art. 13.  Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
(…)
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;

O serviço de consultoria jurídica se acomoda na definição do art. 13, III. Porém, não bastará essa caracterização. Será necessário que o serviço seja considerado singular. É aqui que reside a maior controvérsia. Veja-se o entendimento do Tribunal de Contas da União a respeito:

“Abstenha de contratar serviços advocatícios, por inexigibilidade de licitação, quando não restar efetiva e formalmente demonstrada a inviabilidade de competição a que se refere o artigo 25, caput, da Lei n° 8.666/1993.” (Acórdão 1208/2009 Segunda Câmara)

“Apresente previas justificativas, quando das contratações de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação com base no art. 25, II, da Lei no 8.666/1993, e caracterize, de forma individualizada, a natureza singular dos serviços objeto de cada ação judicial, bem assim justificativa de preço a ser contratado, consoante prescrito no caput e inciso II do art. 26 da citada lei. Realize o devido certame licitatório para fins de contratação de serviços advocatícios de acompanhamento das ações judiciais que não sejam, de forma inequívoca, caracterizados como serviços de natureza singular, permitindo-se a continuidade do mencionado contrato pelo tempo estritamente necessário a realização da referida licitação.” (Acórdão 1299/2008 Plenário)

Portanto, a contratação de serviços advocatícios somente será considerada inexigível se, do escopo do serviço, restar caracterizado um elemento que o torne singular, que na hipótese, seria a necessária presença da relação de confiança advogado/cliente nos serviços.

Para o próximo artigo, trataremos da natureza das manifestações do Assessor Jurídico no controle prévio da legalidade dos processos e atos licitatórios.

*Luiz Claudio Chaves é especialista em Direito Administrativo, professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e da Escola de Administração Judiciária-ESAJ/TJRJ; professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obras Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris e Licitação Pública – Compra e Venda governamental Para Leigos, alta Books. Ministra regularmente, em âmbito nacional o curso Análise de Mercado para Planejamento das Contratações Públicas – pesquisa de preços nas licitações, dispensa e inexigibilidade


[1] Estatuto da Advocacia: Comentários e Jurisprudência Selecionada. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, pág. 10.
[2] LUZ, Valdemar P. Manual do Advogado, 22ª ed., Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 25 e 26.
[3] Arguição de Inconstitucionalidade no. Nº 70042343541, na Ap. Civil no. 70039685086 Rel. Des. Genaro José Baroni Borges)
[4] Op. Cit., p. 345, citando Paulo Luiz Neto Lobo in Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB, Brasília, p. 108.
[5] Rec. 0524/2003/PCA, Rel. Cons. Sebastião Cristovam Fortes Magalhães (AP), DJ 27/05/2004, p. 595, S1
[6] Rec. 5.355/99/PCA, Rel. Cons. Antônio Augusto Genelhu Júnior (ES), DJ 14/10/99, p. 189, S1.
[7] Excerto do voto proferido no Proc. no. 5.584, Recurso no. 5.325/99/PCA, 1ª. Câmara do Conselho Federal, j. em 08/03/99, apud, RAMOS, op. cit. p. 371.
[8] (Proc. 5.361/99/PCA-SP, Rel. Francisco Arquilau de Paula (RO), Ementa 118/99/PCA, julgamento: 04.10.99, por unanimidade, DJ 17.11.99, p. 146, S1)
[9] Parceiras na Administração Pública. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 215.
[10] Segundo Rômulo Martins, as nomenclaturas júnior, pleno e sênior têm a ver com a formação (ou competências), tipo e tempo de experiência profissional. “Quem está no início da carreira assume funções básicas. É enquadrado, portanto, no nível junior”, explica Melissa Campos, da MCampos Consultoria, que classifica o profissional pleno como possuindo nível de maturidade para tomar algumas decisões, desde que endossadas por um superior. Já o sênior tem autonomia suficiente para responder por um projeto ou negócio. Já o coach Homero Reis, presidente da Homero Reis e Consultores, afirma que o nível profissional está atrelado às responsabilidades que o indivíduo tem ao assumir um cargo. “Antes essa definição era feita com base no conhecimento e tempo de experiência. Hoje a habilidade relacional ou comportamental é tão importante quanto os outros requisitos.” Mas acrescenta que “Não há um padrão para esse tipo de classificação no universo corporativo. A nomenclatura vale muito mais para descrever as competências, ou seja, as atitudes e habilidades que o profissional possui. (Disponível em: http://carreiras.empregos.com.br/carreira/administracao/noticias/diferenca-junior-pleno-senior.shtm)

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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