A IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO E REAJUSTE NA ATA DE REGISTRO DE PREÇOS: UM MANTRA A SER SUPERADO

1. Introdução

Levando em consideração o papel do Estado como guardião do interesse público primário e garantidor dos direitos fundamentais, os quais podem ser realizados através de políticas públicas o caminho a ser buscado no âmbito das contratações públicas deve ser no sentido de realização dos direitos fundamentais.

Nessa toada, importante se torna considerar todo o caminho percorrido seja processual, ou procedimental, até que se alcance como resultado a ata de registro de preços para que considerando o custo envolvido, que não é apenas econômico, ponderar sobre a melhor decisão a ser tomada.

Dessa forma, em um primeiro momento este trabalho tem a intenção de mostrar para o leitor que o Estado deve sempre ser levar em consideração na aplicação das interpretações a serem processadas no âmbito das contratações públicas o fato de ser o agente garantidor da prestação dos direitos fundamentais envolvidos, que são realizados, em certa medida, pela efetivação de políticas públicas.

No segundo momento o estudo procura definir a natureza jurídica da ata de registro de preços, o que é fundamental para a conclusão sobre a possibilidade de aplicação dos institutos do reajuste em sentido estrito e da revisão.

Já na terceira parte deste trabalho a intenção foi de por meio da definição dos institutos precitados demonstrar sua possibilidade de incidência na ata de registro de preços.

Por fim, alcançada a maturidade suficiente em torno da temática o presente arrazoado buscou por meio da interpretação dos artigos 17 e 19 do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, validar o entendimento de que o mantra existente em torno da impossibilidade de emprego do reajuste em sentido estrito e da revisão na ata de registro de preços deve ser superado.

1.1 Da materialização dos direitos fundamentais por meio da realização de políticas públicas
Preliminarmente, é relevante que sejam feitas algumas considerações sobre os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, a qual dispôs o seguinte:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida , à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…] § 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[…] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  (grifei e sublinhei)

 Nesse contexto, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a realização das políticas públicas tem como fim a materialização dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.

Para além disso, tem o Estado papel fundamental na concretização dos direitos fundamentais sendo atribuído a ele a tarefa de efetivação desses direitos por meio de ações positivas voltadas para a viabilização de importantes políticas públicas.

 Maria Paula Dallari Bucci[1] dispondo sobre o conceito de política pública conceituou-a da seguinte maneira:

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. (grifei e sublinhei)

Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.

Do conceito acima se pode extrair que a política pública requer um planejamento estatal prévio direcionado à escolha do que irá melhor atender ao interesse coletivo.

 Nota-se, ainda, que não há como não considerar que o planejamento da ação estatal também tem relevância à medida que leva à necessidade de um estudo relacionado ao que é considerado socialmente relevante para aquele momento vivido pelo Estado e quais decisões políticas devem ser buscadas, então, é compreensível que o Estado tendo planejado a política pública, inclusive com a reserva de recursos para tanto queira implementá-la para que o direito fundamental seja atendido e o interesse público assegurado, já que houve um custo para tudo isso, inclusive econômico.

 Não é demais, por fim, lembrar o que o art. 22 da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro prega “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” e, ainda,  “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.” 

Diante disso, a grande questão que se coloca é se há razoabilidade em ser descartada ata de registro de preços apenas e tão somente por entender que não é possível realizar revisão, ou mesmo, reajuste em sentido estrito dos preços nela registrado? Devendo ser ressaltado que o contrato dela decorrente poderá contemplar os mencionados institutos assim considerados como cláusulas econômicas do contrato.

2. Da natureza jurídica da ata de registro de preços

 Pois bem, antes de aprofundar o debate central proposto importante se torna definir qual é a natureza jurídica da ata de registro de preços.

  Dessarte, o Sistema de Registro de preços pode ser considerado como “… um procedimento auxiliar utilizado como instrumento para facilitar a atuação da Administração Pública. Não gera compromisso efetivo de aquisição. Inaugurado o certame licitatório e declarado o ganhador ele terá seus preços registrados, desse modo, as necessidades posteriores de contratação deverão, em regra, ser formalizadas com o vencedor, de acordo com o preço que houver sido registrado.”[2] 

 Outrossim, a “A ata de registro de preços pode ser considerada como sendo um documento vinculativo, de natureza obrigacional, isso porque serão nela estabelecidos, de acordo com o estipulado no instrumento convocatório e nas propostas apresentadas, os compromissos relacionados à futura contratação, tais como: as condições a serem praticadas, os preços, os fornecedores e os órgãos participantes.”[3] 

 Em vista disso, levando em consideração, também, as disposições constantes do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, pode-se concluir em relação à está primeira intervenção, que a cronologia aplicada à sistemática de utilização do sistema de registro de preços como sendo, em poucas palavras, a seguinte: o órgão licitante faz uso do sistema de registro preços como procedimento auxiliar ao licitatório principal, registra os preços através da ata de registro de preços e, por fim, formaliza o contrato de acordo com as regras relacionadas aos fornecedores que tiveram seus preços registrados.

 Desse modo, atentando para a definição atribuída para a ata de registro de preços e entendendo o papel por ela desempenhado no procedimento licitatório no qual se faz uso desse instituto, pode-se concluir que a natureza jurídica da ata de registro de preços é de um pré-contrato administrativo, tanto é assim que o art. 14 do Decreto nº 7.892/2013 dispôs expressamente que “A ata de registro de preços implicará compromisso de fornecimento nas condições estabelecidas, após cumpridos os requisitos de publicidade.”

Nesse diapasão, no âmbito do direito privado o art. 462 do Código Civil determina que “O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.”[4]

Nesses termos, sobre a possibilidade de incidência do direito privado nas contratações processadas no âmbito público o art. 54 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, deixa claro que “Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.”

Dessa forma, não é desarrazoado considerar que a Administração Pública pode utilizar de institutos tipicamente existentes no direito privado, incluídos os negociais, sem que a atividade pública por ela exercida seja descaracterizada, visto que a finalidade de ser preservado o interesse público envolvido será mantida, até mesmo porque é a Administração Pública a guardiã desse tipo de interesse.

 Sobre o assunto importantes lições foram trazidas pelo professor Paulo Otero[5] colacionadas abaixo nas partes que importam ao presente estudo:

1.4.10. Sabendo-se que a Administração Pública não encontra no Direito Administrativo o seu único complexo normativo regulador, podendo essa regulação fazer-se ao abrigo de normas provenientes de outros setores do ordenamento jurídico, uma inevitável dúvida se coloca: dever-se-á falar em Direito Administrativo ou em Direito da Administração Pública? 
1.4.11. Sem que se saiba, neste momento, se o Direito Administrativo é exclusivo da Administração Pública ou, pelo contrário, se também poderá regular relações a que a Administração Pública é alheia, pode afirmar-se o seguinte:
(i) O Direito Administrativo é um ordenamento regulador da Administração Pública;
(ii) A Administração Pública não esgota a sua regulação jurídica no Direito Administrativo;
(iii) O Direito Administrativo é o ordenamento jurídico típico, comum e matriz de regulação da Administração Pública ou do exercício da função administrativa.
1.4.12. Uma vez que o Direito Administrativo não tem (nem nunca teve) o exclusivo ou o monopólio de regulação da Administração Pública, torna-se impossível a sua configuração como sendo o único ordenamento regulador da Administração Pública, nem se poderá definir como direito institucional exclusivo da Administração Pública: o Direito Administrativo é o Direito comum da função administrativa, sendo aplicável na ausência de norma habilitando a aplicação de qualquer outro ramo do sistema jurídico. (grifei e sublinhei) 

 Nada obstante, como ressalvado no parágrafo 16 deste artigo, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado devem ser aplicados supletivamente aos contratos administrativos, no sentido de aperfeiçoamento da lei para que seja alcançada a efetividade do instituto, sendo assim, os contornos básicos fundamentais que devem ser observados na ata de registro de preços quando considerada como pré-contrato administrativo devem ser aqueles dispostos no Decreto nº 7.892/2013, inclusive, no que se refere à forma devendo, então, sofrer derrogação nos pontos regulamentados a norma privada utilizada.

 Relativamente à necessidade de se observar a forma nos contratos administrativos, desse modo, também no pré-contrato, assim considerado como sendo documento vinculativo negocial prévio, deve, então, a publicidade exigida no art. 14 do Decreto nº 7.892/2013, ser observada, Celso Antônio Bandeira de Melo[6], leciona sobre a temática em pauta que:

37. Os contratos administrativos e, também, no que couber, os predominantemente regidos pelo Direito Privado (art. 62, § 3º) obedecem, necessariamente, a formalidades para seu travamento (arts. 60 e ss.). Desde logo, têm que ser precedidos de licitação, salvo nos casos de inexigibilidade e dispensa, já referidos no capítulo anterior. Além disto, deles terão de constar obrigatoriamente determinadas cláusulas, como, por exemplo, as concernentes ao seu regime de execução, a reajustamentos, às condições de pagamento e sua atualização, aos prazos de início, execução, conclusão, entrega e recebimento definitivo do objeto, as relativas a seu valor e recursos para atendimento das despesas, às responsabilidades, penalidades, valor das multas, casos de rescisão etc. O art. 55 da lei indica quais serão elas. 

Ademais, não há que se falar em equiparação do pré-contrato com o contrato definitivo no sentido de estabelecer direitos, obrigações entre a Administração Pública e o particular envolvido, nem tampouco, com o procedimento de negociação, que antecede os dois instrumentos referidos. Nesses termos, tem-se que as negociações anteriores à formalização da contratação propriamente dita podem resultar no contrato perfeito e acabado quando for possível contratar definitivamente, ou, então, em um pré-contrato, com o encargo de tornar eventualmente obrigatória no futuro a contratação.

Nessa toada, a inteligência da definição constante no art. 2º, inciso II, do Decreto nº 7.892/20213, quando expressamente ressaltou que a ata de registro de preços é um “… documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação…” reforça o entendimento de que sua natureza jurídica é de pré-contrato, o qual apesar de não estabelecer direitos, obrigações entre a Administração Pública e o particular envolvido, não retira a possibilidade de revisão dos preços registrados na ata, muito pelo contrário, acaba por reforçar, visto que o fornecedor irá formalizar o contrato definitivo com a certeza de que os preços serão os condizentes com o mercado.

Em conclusão neste tópico específico, pode-se considerar que a ata de registro de preços, aplicando supletivamente as disposições de direito privado, tem como natureza jurídica o pré-contrato administrativo, observadas as regras estabelecidas no Decreto nº 7.892/2013, dentre elas, a do artigo 16 para o qual “A existência de preços registrados não obriga a administração a contratar, facultando-se a realização de licitação específica para a aquisição pretendida, assegurada preferência ao fornecedor registrado em igualdade de condições.”, o que leva a crer que no caso da utilização da ata de registro de preços como pré-contrato administrativo o artigo 16 do Decreto referido deve ser considerado como “cláusula de arrependimento” devendo figurar obrigatoriamente nos instrumentos que serão formalizados.

3. Da possibilidade de revisão e do reajuste dos preços registrados 

  Importante ressalvar, preliminarmente, neste ponto em início de análise, que o entendimento vigente da antiga Câmara Permanente de Licitação e Contratos, hoje Câmara Nacional de Licitação e Contratos (Portaria nº 3, de 14 de junho de 2019, da Consultoria-Geral da União), ambas unidades do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos – DECOR (art. 14, inciso III, do Decreto nº 10.608, de 25 de janeiro de 2021), a quem compete o assessoramento jurídico da Administração Pública Direta, é pela impossibilidade de revisão dos preços registrados em ata de registro de preços (Parecer n. 00001/2016/CPLC/CGU/AGU).

 No que concerne ao parecer suprarreferido segue abaixo sua ementa com a síntese do entendimento adotado:

 I – Administrativo. Licitação. Ata de registro de preços. Reajustabilidade. Incidência dos institutos de manutenção do equilíbrio econômico. Impossibilidade.
II –  Distinção entre a manutenção do equilíbrio econômico e o procedimento negocial previsto pelos os artigos 17 a 19 do Decreto federal nº 7.892/2013. Distinção de natureza jurídica. Distinção de efeitos. Distinção de competências.
III – O procedimento de negociação dos valores registrados na Ata, previsto nos artigos 17 a 19 do Decreto federal nº 7.892/2013, não se confunde com o reconhecimento do direito da parte contratante à alteração do valor contratual, para manutenção do equilíbrio econômico do contrato.
IV – O procedimento de negociação dos valores registrados na Ata, previsto nos artigos 17 a 19 do Decreto federal nº 7.892/2013, afeta o preço registrado na Ata e deve ser conduzido, a priori, pelo órgão gerenciador.
V – Não cabe reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico (revisão econômica) em relação à Ata de registro de preços, uma vez que esses institutos estão relacionados à contratação (contrato administrativo em sentido amplo).
VI – O fato gerador de manutenção do equilíbrio econômico (reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico) deve ser reconhecido no âmbito da relação contratual firmada, pela autoridade competente, sem necessária interferência na Ata de registro de preços. (grifei e sublinhei)

Similarmente, a sobredita convicção também a Câmara Permanente de Licitações e Contratos Administrativos da Procuradoria-Geral Federal, a quem é atribuído o assessoramento jurídico da Administração Pública Indireta, por meio do PARECER n. 00003/2019/CPLC/PGF/AGU abaixo colacionado concluiu que:

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS. NATUREZA JURÍDICA DA ATA. DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA DE VONTADE. PROPOSTA. ATUALIZAÇÃO DO VALOR REGISTRADO EM ATA. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DO REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO.

I – O Sistema de Registro de Preços consiste em procedimento previsto no inc. II do Art. 15 da Lei nº 8.666/93 e que tem como intuito permitir diversas contratações pela administração pública com uma única licitação.

II – Findo o certame, formaliza-se a ata de registro de preços, documento que, a teor do Decreto nº 7.892/2013, é “vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas (art. 2º, inc. II)”.

III – Consequência da natureza jurídica do preço registrado em ata como declaração receptícia de vontade e, portanto, ato anterior à formalização do ajuste, é a inaplicabilidade direta dos institutos vocacionados a garantir o equilíbrio econômico-financeiro da contratação (art. 37, XXI, da CF/88).

IV – A lei nº 8.666/93 prevê “sistema de controle e atualização dos preços registrados” (Art. 15, §3º, inc. II). Coube, então, ao Decreto prever as hipóteses de atualização do valor.

V – Manutenção das conclusões do Parecer nº 14/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU

O princípio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato se encontra insculpido no art. 37, inciso XXI, da Constituição da República[7], garantindo aos particulares o direito à manutenção das “condições efetivas da proposta”. Posto isso, conclui-se que o direito ao equilíbrio econômico-financeiro do que foi ajustado não pode ser retirado nem por força de regulamento ou de lei[8].

 Segue-se a isso, que o momento de formação da equação econômico-financeira do contrato a ser considerado é o da data da publicação do edital, onde serão estabelecidos os encargos a serem suportados pelo contratado e a data que a proposta é apresentada, com as vantagens previstas e a remuneração a ser paga. Veja, que todos esse momentos antecedem à formalização da ata registro de preços e, de novo, a Constituição Federal garante o direito de ser mantida as “condições efetivas da proposta”, a qual não se encontra apenas e tão somente no contrato.

 Por conseguinte, estabeleceu-se a lógica de se considerarcomo instrumentos de recomposição da equação econômico-financeira do contrato as cláusulas de reajuste, assim consideradas por antever as circunstâncias normais que resultariam na necessidade reajuste dos preços do contrato e a revisão como decorrência da aplicação da teoria da imprevisão.

 Dessa maneira, na álea ordinária aplica-se o reajuste em sentido lato (art. 40, XI e 55, inciso III, da Lei nº 8.666/1993) estando nele compreendido o reajuste por índice (estrito sensu), aplicado para a reposição da perda do poder aquisitivo da moeda (remediar efeitos da inflação), com índices prefixados no contrato administrativo e a repactuação (Anexo I da IN SEGES nº 5/2017, inciso XX). 

 Em contrapartida, a álea extraordinária pode resultar na necessidade de revisão do contrato (art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei nº 8.666/1993) tendo como fundamento o desequilíbrio advindo de fato imprevisível ou, se previsível, com consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, que não se confundem, portanto, com os critérios de reajuste ordinários previstos contratualmente. 

 No que tange à teoria da imprevisão, que irá ocorrer quando um fato externo à vontade das partes, imprevisível quando da celebração do contrato, venha a causar abalo significativo à execução do contrato ocasionando a onerosidade da prestação, o que por certo, irá afetar a execução do contrato e provocar a necessidade de sua revisão, essa não depende de previsão no instrumento convocatório ou no contrato, pois o que conta é a sua imprevisibilidade e para que ela ocorra deve ser comprovada a repercussão sobre o objeto do contrato.

 Por conseguinte, para os fatos supervenientes, que venham a ser considerados imprevistos (álea extraordinária) aplica-se a teoria da imprevisão, então, os acontecimentos de consequências incalculáveis, como, por exemplo, a desvalorização monetária/inflação, desde que ultrapasse os limites das previsões gerais, também, estariam aí incluídos.

 Dessa maneira, pode-se considerar como requisitos para a revisão: a) demonstração dos fatos que ensejam a revisão; b) necessidade de termo aditivo; c) existência de recursos orçamentários (art. 16, parágrafo quarto, inciso I, da Lei Complementar número 101/2000; d) necessidade de análise pela assessoria jurídica (art. 38, Parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993); e, e) publicação (art. 61, Parágrafo único, da Lei nº 8.666/1993).  

 Em face do exposto, tendo em vista a natureza jurídica de pré-contrato administrativo atribuída a ata de registro de preços é razoável considerar que sobre ela possam incidir os efeitos da álea extraordinária resultantes da aplicação da teoria da imprevisão podendo vir a ser revisada caso os requisitos, para tanto, sejam observados.

No contexto da Lei nº 14.133/2021 o artigo 84 permitiu a possibilidade de vigência da ata de registro de preços por até 2 anos, confira-se abaixo o texto:

Art. 84. O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso.

Parágrafo único. O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas. (grifei e sublinhei)

Dessa maneira, o reajuste por índice, estrito sensu, utilizado para recompor a perda do poder aquisitivo da moeda (remediar efeitos da inflação) por meio de índices prefixados no contrato administrativo também passa a ser possível na ata de registro de preços, assim considerada como pré-contrato. Essa lógica também está em consonância com o que determina o artigo segundo e seu parágrafo primeiro da Lei nº 10.192, de 2001[9].

Destaca-se que o parágrafo único do dispositivo suprarreferido dispôs expressamente que “O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas.” possibilitando, assim, que eventuais reajustes ou revisões aplicados na ata de registro de preços sejam transferidos para o contrato definitivo. 
                                        
4. Dos artigos 17 e 19 do Decreto nº 7.892/2013 – interpretação a ser empregada

  A respeito dos dispositivos do Decreto nº 7.892/2013, motivo de debates relacionados à matéria em apreço, suas disposições prescrevem que:

 Art. 17. Os preços registrados poderão ser revistos em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado ou de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, cabendo ao órgão gerenciador promover as negociações junto aos fornecedores, observadas as disposições contidas na alínea “d” do inciso II do caput do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.

Art. 19. Quando o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, o órgão gerenciador poderá:

I – liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso a comunicação ocorra antes do pedido de fornecimento, e sem aplicação da penalidade se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados; e

II – convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação.
Parágrafo único. Não havendo êxito nas negociações, o órgão gerenciador deverá proceder à revogação da ata de registro de preços, adotando as medidas cabíveis para obtenção da contratação mais vantajosa. (grifei e sublinhei)

 Nessa perspectiva, o comando do art. 17 é para que seja aplicada a teoria da imprevisão para os preços registrados, logo, não há contrato formalizado ainda com o fornecedor e os preços registrados podem ser revisados em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado OU de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, já que é considerado um direito constitucionalmente garantido pelo art. 37, XXI, da CF, o que o artigo impõe é que seja realizada pelo órgão gerenciador negociação junto ao fornecedor para que se alcance o preço vantajoso para as duas partes, daí podendo resultar a necessidade ou não em ser aditivado o pré-contrato administrativo (ata de registro de preços), se for vantajoso tanto para a Administração contratante, quanto para o fornecedor sua manutenção.

 Nessa lógica, o art. 19 quando dispôs que se o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e (adtivo) o fornecedor não puder cumprir o compromisso assumido a leitura que deve ser feita é em conjunto com o que disposto, também, em seu parágrafo único no sentido de se buscar a contratação mais vantajosa para as duas partes do pré-contrato podendo, desse modo, ter como resultado para a Administração contratante a manutenção dos preços registrados mesmo que seja necessário ser feita a revisão ou o reajuste em sentido estrito dos preços registrados na ata para maior, mas, para o fornecedor não, por considerar não ser possível honrar com o compromisso assumido tendo em conta o fato de não ser vantajoso para ele ter que suportar a variação do custo com a entrega do bem.

Nesse prumo, o órgão gerenciador antes de concluir pela necessidade de revisão dos preços então registrados e formalizar o aditivo ou irá liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso ele não possa mais cumprir com a obrigação, que se tornou para ele demasiadamente onerosa e, nesse caso, terá a opção de convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação, caso em que, não havendo êxito nas negociações anteriores, pode resultar na revisão dos preços registrados, se o órgão gerenciador concluir que essa é a medida mais adequada para a obtenção da contratação mais vantajosa.

 Com isso, a coerência do macrossistema jurídico que deve ser aplicado ao instituto do sistema de registro de preços será mantida.

5. Conclusão

 O objetivo deste artigo foi apresentar toda a discussão ainda existente no que se refere à possibilidade de aplicação ou não dos institutos do reajuste em sentido estrito e da revisão na ata de registro de preços ao final foi possível concluir pela plausibilidade da aplicação dos institutos referidos, devendo, ainda, serem levados em consideração os princípios da eficiência e da economicidade, visto que inevitavelmente a revisão processada na ata de registro de preços será transferida para o contrato.

 Conforme exposto, pode ser empregado na ata de registro de preços supletivamente as disposições de direito privado (art. 54 da Lei nº 8.666/1993), podendo ser considerada como pré-contrato administrativo, sendo essa sua natureza jurídica, o que não retira a necessidade de serem observadas as regras estabelecidas no Decreto nº 7.892/2013, as quais irão derrogar algumas normas do direito privado, dentre elas, a do art. 16, que atrai a obrigatoriedade de constar nos instrumentos que serão formalizados como “cláusula de arrependimento”.

Tendo em vista a natureza jurídica de pré-contrato administrativo atribuída a ata de registro de preços é razoável considerar que sobre ela possam incidir os efeitos da álea extraordinária resultantes da aplicação da teoria da imprevisão podendo vir a ser revisada caso os requisitos, para tanto, sejam observados.

A Lei nº 14.133/2021 admitindo que a vigência da ata de registro de preços possa ser estendida por até dois anos e prevendo expressamente em seu artigo 84 que “Ocontrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas.” também propiciou que o reajuste em sentido estrito possa incidir.

O comando do art. 17 do Decreto nº 7.892/2013 é para que seja aplicada a teoria da imprevisão para os preços registrados (art. 37, XXI, da CF) impondo que seja realizado pelo órgão gerenciador negociação junto ao fornecedor daí podendo resultar a necessidade ou não em ser aditivado o pré-contrato administrativo (ata de registro de preços), se for vantajoso tanto para a Administração contratante, quanto para o fornecedor sua manutenção.

Já o art. 19 do Decreto nº 7.892/2013 quando dispôs que se o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e (adtivo) o fornecedor não puder cumprir o compromisso assumido a leitura que deve ser feita é em conjunto com o que disposto, também, em seu parágrafo único no sentido de se buscar a contratação mais vantajosa (para as duas partes do pré-contrato) podendo, desse modo, ter como resultado para a Administração contratante a manutenção dos preços registrados mesmo que seja necessário ser feita a revisão dos preços registrados na ata para maior, mas, para o fornecedor não, por considerar não ser possível honrar com o compromisso assumido tendo em conta o fato de não ser vantajoso para ele ter que suportar a variação do custo com a entrega do bem.


[1]BUCCI, Maria Paula Dallari. Organizadora. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39.
[2]Da Silva, Michelle Marry Marques. Comentários ao artigo 82. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Página 545.
[3]Da Silva, Michelle Marry Marques. Comentários ao artigo 84. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Página 551.
[4]SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, 10ª ed. , Rio, 1996,v. 3, p. 81, para quem “contrato preliminar é “aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será o principal”.
[5]OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo. Volume I. Editora Almedina. Coimbra. 2013. páginas 32-33.
 
[6]Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo. 2021. Malheiros Editores. Página 587.
[7]XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.  
[8]ORIENTAÇÃO NORMATIVA DA AGU Nº 22, DE 1º DE ABRIL DE 2009: O REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO PODE SER CONCEDIDO A QUALQUER TEMPO, INDEPENDENTEMENTE DE PREVISÃO CONTRATUAL, DESDE QUE VERIFICADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS ELENCADAS NA LETRA “D” DO INC. II DO ART. 65, DA LEI Nº 8.666, DE 1993.
[9]Art. 2º É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.
§1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.

Michelle Marry Marques da Silva

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3 de outubro de 2024

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