COMPLIANCE EFETIVO E COMPLIANCE DE FACHADA

O instrumento da colaboração premiada criou enorme instabilidade no crime organizado, desde seu fortalecimento, com a Lei 12.850/2013. Isso, porque as pessoas que praticavam ilícitos não contavam com a hipótese de um dos protagonistas guardar os rastros e depois entrega-los às autoridades. E o relato tem um efeito retroativo imprevisível, só barrado pelos prazos prescricionais dos ilícitos praticados. A legislação anticorrupção (Lei 12.846/13), por seu turno, no Brasil, tende a se fixar e espalhar uma cultura mais hostil em território nacional, minando o campo dos gestores inábeis ou desonestos, e fomentando uma nova mentalidade empresarial de competição. Empresas que participam de licitações, no lugar de formarem carteis, tenderão a denunciar seus concorrentes às autoridades. O uso de investigações privadas, e a interação com autoridades públicas, deve ser uma perspectiva concreta nos próximos anos, para fiscalizar a concorrência, tal como já ocorre no exterior. O arcabouço normativo deve endurecer cada vez mais, seguindo tendências internacionais. A interpretação da Lei 8429/92, lei de improbidade administrativa, pela jurisprudência dos tribunais, já integrada com outras leis, também vem delineando cenários cada vez mais arriscados aos gestores públicos e privados, na medida em que coíbe atos de má gestão pública, não apenas de corrupção.

Percebe-se, pois, um novo contexto, no qual se exige preparo técnico e conhecimento acurado dessa realidade.

Veja-se que cabe aos estados e municípios a regulamentação e aplicação adequada de novas leis nessa área da probidade administrativa e empresarial, até porque esta será a grande bandeira política de 2018.A autoridade máxima de cada órgão ou entidade tem sua  própria competência, o que remete aos Poderes de Estado, na medida em que também licitam e praticam atos administrativos. Ou seja, aumentará o ciclo punitivo anticorrupção e de probidade. A prevenção será o grande tema a ser objeto de atenção das entidades que integram o setor público, ou setores que manejam direta ou indiretamente recursos públicos, inclusive o Sistema “S”.

As instituições fiscalizadoras, por sua vez, tendem a buscar espaços de legitimação nos meios de comunicação, divulgando seus trabalhos e resultados, não raro com impactos irreversíveis na imagem de administrados e jurisdicionados. Emergem, assim, processos e investigações para apurar atos supostamente ilícitos em abundância, até porque a legislação que tipifica crimes contra a administração pública, atos de improbidade ou corrupção costuma valer-se de cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados.  Existem muitas zonas cinzentas sobre o que é ou não proibido e os gestores vivem tempos de enorme insegurança jurídica.

Desde o surgimento da Lei Anticorrupção (12.846/13), mas especialmente após a ascensão da “Lava Jato”, as empresas brasileiras, ou estrangeiras que atuam em território nacional, são obrigadas a adotar programas de prevenção a atos de “corrupção” ou “improbidade”.  A Lei indica que tais programas, denominados de compliance efetivo,  mitigam sanções, mas, em realidade, podem até mesmo eliminar a própria infração, afetando sua tipicidade. Isso, porque, se a empresa se comportar corretamente, haverá exclusão da relação de causalidade entre a conduta e o resultado. Essa tem sido a tendência nos Estados Unidos e na União Europeia: fomentar a cultura da cooperação do setor privado com o setor público na melhoria do ambiente ético.

O programa de compliance é um conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e requer a aplicação de códigos de ética e conduta, diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Não se pode confundir a mera existência desses códigos no “papel” com a efetividade dos programas.

Um autêntico programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada empresa, a qual, por sua vez, deve garantir aprimoramento e adaptação do referido programa, para assegurar sua efetividade. Contudo, poucos atentam ao conceito de “efetividade” e imaginam tratar-se de uma expressão sem consequências jurídicas. 

Empresas dotadas de uma espécie de organização defeituosa podem ser responsabilizadas por atos de terceiros, essa é a essência da chamada responsabilidade objetiva consagrada na Lei Anticorrupção. O legislador outorgou ao setor privado e mesmo às empresas ligadas ao setor público deveres de vigilância sobre seus dirigentes, funcionários, contratantes e fornecedores. Criou-se um espaço público não estatal, aumentando consideravelmente o espectro de atores ligados ao combate à corrupção e  à improbidade.

A partir deste contexto, impressiona a chamada “indústria do compliance”, que emergiu após a vigência da “Lei Anticorrupção”. Diversas pessoas jurídicas passaram a oferecer esse serviço anticorrupção, ignorando normas fundamentais de conflitos de interesses, boa técnica e até especialização na matéria. Repentinamente, qualquer um tornou-se “especialista” em leis anticorrupção ou no trato da improbidade.

Empresas adotaram códigos de ética, iludindo-se com o que o “Guia de Compliance” do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) nomeou como “compliance de fachada”. Não por outra razão, muitas empresas punidas na “lava jato” mantinham “robustos” programas de compliance. Algumas foram inclusive punidas por conta disso.

Em breve, será necessário auditar muitos desses programas de compliance atualmente em vigor para testar sua utilidade. E quem o fará? São muitas as instituições fiscalizadoras e esse universo tende a se expandir. Não há dúvida de que o próprio Ministério Público, para além das competências das autoridades administrativas, possui atribuições para postular aplicação de sanções previstas na “Lei Anticorrupção”, inclusive contra empresas, que se agravarão quando constatada a aplicação de “compliance de fachada” e suas consequências.

Uma evidência de que o modelo de compliance é eficaz pode ser vista na independência do “compliance officer”, autoridade interna da empresa responsável por prevenir, diagnosticar e impor as normas internas, como já afirmamos desde o surgimento da Lei. E quantas serão as empresas que adotam esse modelo? Obviamente, há outros indicativos que devem ser observados e diagnosticados em cada caso concreto. Dessa forma, o novo modelo que surgirá na “Era Pós Lava Jato” é bastante complexo, estimulando competição, denúncias e fiscalização entre as próprias empresas.  

Dadas as dificuldades inerentes ao modelo brasileiro e aos problemas oriundos do emaranhado jurídico, as empresas necessitam de segurança jurídica, formulando um modelo que inspire confiança. Essa “indústria” que atualmente fomenta um “compliance” fictício, certamente é apenas um castelo de areia, prestes a desmoronar logo ali na frente, como o noticiário já vem revelando.

Fábio Medina Osório

Jurista, Ex Ministro da Advocacia-Geral da União, advogado titular do escritório Medina Osório Advogados. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri. Autor das obras “Teoria da Improbidade Administrativa” e “Direito Administrativo Sancionador”, ambas pela Editora Revista dos Tribunais. Foi Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.
 

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