JURISPRUDÊNCIA COMENTADA – ACEITAÇÃO DE MARCA DIVERSA DA ACEITA NA PROPOSTA

O tema dessa semana é uma situação bastante corriqueira na rotina dos setores responsáveis pelo recebimento de material nos órgãos e entidades do Poder Público, que é a entrega do produto ou equipamento por parte do vencedor da licitação, porém de marca diversa daquela descrita na proposta.
 
Não raro, a empresa licitante se apresenta cotando determinado produto, indicando a marca que irá entregar, mas, ao ser convocada para a entrega do objeto, apresenta marca diversa daquela registrada na sua proposta. As justificativas são as mais diversas, tais como: fabricante descontinuou o produto; falta momentânea de estoque; desembaraço na alfândega, entre outros. Todavia, nem sempre tais justificativas são admissíveis o que pode inviabilizar o recebimento do objeto por parte do agente responsável.
 
O Tribunal de Contas da União, analisando caso concreto, consignou o seguinte entendimento:

“A aceitação de equipamento diferente daquele constante da proposta do licitante e com características técnicas inferiores às especificações definidas no termo de referência afronta o princípio da vinculação ao instrumento convocatório (arts. 3º e 41 da Lei 8.666/1993) e o princípio da isonomia, diante da possibilidade de as diferenças técnicas entre os bens influenciar não só no valor das propostas, como também na intenção de potenciais licitantes em participar do certame” (TCU, Acórdão no. 1.033/2019, Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz)[1]

Para melhor compreensão, em primeiro lugar é bom que se estabeleça duas premissas fundamentais.
 
A primeira é que a proposta é uma declaração de vontade que, quando dirigida, cria uma situação jurídica nova e, quando recebida pelo seu destinatário, acarreta um efeito jurídico inafastável que é a vinculação da palavra do proponente perante o destinatário (a quem a proposta foi dirigida). Significa que aquilo que foi prometido, deve ser cumprido integralmente, sob pena de responsabilização. Tal noção serve tanto no direito público, como no privado.
 
A segunda é que a proposta apresentada na licitação somente pode ser aceita se preenchidos os requisitos materiais e formais necessários. Se a proposta foi classificada pelo Pregoeiro ou Comissão de Licitação, conforme o caso, significa que tais condições foram analisadas e legitimou a sua permanência no certame.

Por requisitos materiais, entenda-se os critérios de aceitabilidade da proposta relacionados ao seu objeto. São as especificações técnicas, os certificados de validação ou homologação do produto, quando exigidos, entre outros. São requisitos formais, aqueles elementos relacionados ao modo de como a proposta deve se expressar. Como se trata de uma declaração de vontade que acarreta efeitos jurídicos, tais efeitos somente ingressão no mundo jurídico se não houver nenhum vício que torne a declaração de vontade duvidosa. Em outras palavras, a proposta não pode conter nenhum vício de consentimento.

A apresentação de proposta destoante das condições estipuladas no edital e/ou desprovida de viabilidade formal, enseja, necessariamente, a sua desclassificação. Quer dizer que, em contraponto, a aceitação de proposta que contenha tais vícios, representa flagrante e grave ilegalidade, com violação aos princípios da isonomia e da vinculação ao ato convocatório.

Quanto aos requisitos formais, segundo lição do festejado Celso Antônio Bandeira de Mello[2], a proposta deve ser: a) firme; b) séria; c) concreta; e, d) ajustada aos termos do edital.

Firme é a proposta formulada sem titubeio, sem condicionantes, como por exemplo, a proposta que condiciona o preço ao compromisso de o órgão não atrasar pagamentos. Essa condição suspensiva retiraria a firmeza da proposta na medida em que o proponente não se compromete integralmente com o preço, impondo uma condição que, caso verificada, estaria autorizado a não cumprir.

Séria é a formulada com a intenção e a possibilidade de ser cumprida. Se há risco de a proposta não ser suportada pelo proponente, a mesma não garante os efeitos desejados pelo seu receptor. Daí porque as propostas inexequíveis devem ser desclassificadas nos certames licitatórios.

Concreta é aquela cujos termos encerra integralmente o seu objeto, não deixando margens para variações e identificando precisamente aquilo que representa. A proposta indeterminada, não pode ser aceita justamente porque não garante ao receptor a exatidão daquilo que irá receber no momento da execução. Um bom exemplo, seria a hipótese de o proponente apresentar uma proposta, transcrevendo nela as especificações do edital (ou fazendo referência de que as atende integralmente) e deixar em branco o campo destinado à marca/modelo. Tal circunstância torna indeterminada a proposta justamente porque não identifica com precisão o que será entregue no momento da execução.

Finalmente, por ajustada aos termos do edital entenda-se a proposta que cumpre a totalidade dos critérios de aceitabilidade estipulados no ato convocatório, ou seja, que cumpra todos os requisitos materiais.
Dito isto, já é possível fazer uma análise mais clara da proposição formulada pelo Tribunal de Contas da União no precedente em tela.

A hipótese analisada dizia respeito a um recurso de representação, com pedido de medida cautelar, formulada por uma empresa participante de licitação empreendida pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo como objeto a implantação de solução de videoconferência e multimídia para sala de videoconferência e reunião, no valor de R$ 1.487.655,19. A empresa representante sustentou que, no momento da execução do contrato, por ocasião da entrega do projeto executivo, a empresa contratada apresentou detalhamento com equipamentos que não constavam de sua proposta no processo licitatório. Os equipamentos oferecidos em substituição aos originalmente propostos seriam de qualidade inferior e não atenderiam às especificações técnicas do edital.

Após detido exame, o Plenário da Corte de Contas assim concluiu, verbis:

[…] foi constatada a entrega de equipamentos diferentes dos que constaram na proposta vencedora do processo licitatório e de qualidade inferior.
4. Em resumo, os equipamentos em substituição aos originalmente ofertados no certame apresentavam diferenças relativamente às especificações técnicas do edital e a própria Comissão de Recebimento do Contrato STJ 50/2015, após nova análise técnica (peça 94, p.182-203) , concluiu que sete itens da solução implementada possuíam características técnicas inferiores às especificações presentes no Termo de Referência do Pregão Eletrônico 81/2015, razão pela qual foi entabulada negociação posterior para “celebrar termo aditivo com aceitação dos equipamentos entregues, mediante a concessão de desconto pela empresa, no montante de R$ 122.157,06, pela compensação quanto aos equipamentos alterados, que não atendiam às especificações do edital (peça 86, p. 4-5) ”.
5. Assim, quando da execução do contrato, a solução que foi implementada não atendeu integralmente às condições estabelecidas no Pregão, como detidamente analisado pelas unidades técnicas especializadas do Tribunal (Selog e Sefti) , caracterizando clara afronta ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório.”

 
Sem sombra de dúvida, o que o TCU verificou foi a violação do requisito da concreção da proposta, bem como o da vinculação ao instrumento convocatório.

Quanto ao primeiro, ainda que se diga que, no momento da apresentação, o objeto era perfeitamente determinado e individualizado, ao entregar objeto distinto, faz desaparecer tal requisito. Quanto ao segundo, se verifica que, ao entregar equipamentos de marcas diversas da indicada na proposta e, somado a isso, discrepantes das especificações editalícia, afastou-se o proponente das obrigações as quais aderiu com a sua voluntária participação.

Importante deixar consignado que o proponente não tem autonomia sobre a proposta uma vez que esta é apresentada; não está autorizado a modificar seus termos ou características do objeto a seu próprio nuto, pouco importando o motivo alegado. A proposta deve ser formulada com responsabilidade de maneira que a mesma possa ser cumprida em seus exatos termos.

Com frequência acima da média, nos deparamos com empresas vencendo licitações, contemplando um determinado produto em sua proposta, mas, no momento da entrega, apresentam outro. As justificativas as quais nos referimos anteriormente são classificadas como fortuito interno, que não eximem o fornecedor da sua responsabilidade, por fazer parte do chamado risco do empreendimento.

Somente em casos excepcionalíssimos seria admissível a substituição do produto por outro, de marca diversa daquela descrita na proposta.

A empresa que cota um produto e, após sagrar-se vencedora, tenta entregar outro, viola o direito dos demais licitantes, que perderam a disputa em razão de um produto que não será o objeto da contratação.

No entanto, a despeito dessa conclusão, o Tribunal entendeu que, no caso concreto, não seria adequado adotar qualquer medida tendente a anular a contratação, considerando os custos envolvidos no seu refazimento e eventuais prejuízos ao funcionamento do órgão, bem assim a situação fática de utilização dos equipamentos e da solução entregue, ainda que diferentes da especificação originária.

O caso aponta para um fato bastante interessante. É que uma empresa que participou do certame, mas não venceu, permaneceu no monitoramento da legalidade do contrato em busca da garantia de seus direitos.

Bom para a empresa; bom para o País, que pode contar com empresas que buscam, ao mesmo tempo, vencer as disputas sem prejuízo da legalidade dos processos licitatórios.

Significa que as medidas de proteção à legalidade devem ser tomadas o quanto antes possível, para as mesmas sejam eficazes.


[1] Disponível em: http://bit.ly/2WePvPh
[2] Curso de direito Administrativo, 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, pág. 550.

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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