NA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS DE HABILITAÇÃO, HAVENDO PROCURAÇÃO COM PRAZO DE VALIDADE VENCIDO, A ADMINISTRAÇÃO DEVE AFASTAR O LICITANTE DA COMPETIÇÃO?

Por JML Consultoria[1]

Os particulares, ao aceitarem participar de um determinado certame público, como regra, se responsabilizam pela correta apresentação da proposta e documentação exigida na licitação em consonância ao estipulado no instrumento convocatório, respondendo cada licitante por eventuais falhas e erros detectados que afetem o conteúdo dos documentos apresentados.

Todavia, como se sabe, no âmbito dos processos licitatórios, atualmente, tem prevalecido a teoria do formalismo moderado, como forma de prestigiar os princípios da competitividade, economicidade e eficiência, em detrimento ao apego exacerbado e aplicação irrestrita do princípio da vinculação ao instrumento convocatório.[2]

A tese do formalismo moderado tem por objetivo evitar o afastamento de licitantes da disputa em razão de defeitos sanáveis identificados na documentação de habilitação (a exemplo de certidões vencidas, mas disponíveis eletronicamente ou mesmo ausência de documento cuja informação consta em outro apresentado) ou nas propostas (a exemplo de meros erros de cálculo), já que a licitação não é um fim em si mesmo, mas apenas um instrumento para a consecução de determinados fins, dentre eles a seleção da proposta mais vantajosa à Administração Pública.

Com efeito, falhas que não afetam de modo substancial a avaliação da habilitação dos particulares ou o conteúdo de suas propostas e que possam ser supridas com os dados nelas constantes ou através de diligências, sem configurar a inovação de seus termos, não devem ensejar a inabilitação ou desclassificação dos licitantes, posto que tais medidas não violam a isonomia que deve revestir o certame, não prejudicam o direito público envolvido na contratação nem os direitos de terceiros, privilegiando, na verdade, a competitividade da licitação e a obtenção de proposta mais vantajosa, em benefício do ente licitante.

Nesse sentido, aponta Adilson Abreu Dallari:

“(…) existem várias manifestações doutrinárias e já existe jurisprudência no sentido de que, na fase de habilitação, não deve haver rigidez excessiva; deve-se procurar a finalidade da fase de habilitação, deve-se verificar se o proponente tem concretamente idoneidade. Se houver um defeito mínimo, irrelevante para essa comprovação, isto não pode ser colocado como excludente do licitante. Deve haver uma certa elasticidade em função do objetivo, da razão de ser da fase de habilitação; interessa, consulta ao interesse público, que haja o maior número possível de participantes.” [3]

Da mesma forma e de longa data, segue a jurisprudência dos tribunais pátrios e do Tribunal de Contas da União:

“4. É indevida a desclassificação de licitantes em razão da ausência de informações na proposta que possam ser supridas pela diligência prevista no art. 43, § 3º, da Lei de Licitações.”[4]

“3. A inabilitação de licitante em virtude da ausência de informações que possam ser supridas por meio de diligência, de que não resulte inserção de documento novo ou afronta à isonomia entre os participantes, caracteriza inobservância à jurisprudência do TCU.”[5]

“2. É irregular a inabilitação de licitante em razão de ausência de informação exigida pelo edital, quando a documentação entregue contiver de maneira implícita o elemento supostamente faltante e a Administração não realizar a diligência prevista no art. 43, § 3º, da Lei 8.666/93, por representar formalismo exagerado, com prejuízo à competitividade do certame.”[6]

“[RELATÓRIO]

De fato, a administração não poderia prescindir do menor preço, apresentado pela empresa vencedora, por mera questão formal, considerando que a exigência editalícia foi cumprida, embora que de forma oblíqua, sem prejuízo à competitividade do certame. Sendo assim, aplica-se o princípio do formalismo moderado, que prescreve a adoção de formas simples e suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados, promovendo, assim, a prevalência do conteúdo sobre o formalismo extremo, respeitadas ainda as formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados, tudo de acordo com o art. 2º, § único, incisos VIII e IX, da Lei nº 9.784/1999”.[7]

“MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. PROPOSTA TÉCNICA. INABILITAÇÃO. ARGÜIÇÃO DE FALTA DE ASSINATURA NO LOCAL PREDETERMINADO. ATO ILEGAL. EXCESSO DE FORMALISMO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.

1. A interpretação dos termos do Edital não pode conduzir a atos que acabem por malferir a própria finalidade do procedimento licitatório, restringindo o número de concorrentes e prejudicando a escolha da melhor proposta.

2. O ato coator foi desproporcional e desarrazoado, mormente tendo em conta que não houve falta de assinatura, pura e simples, mas assinaturas e rubricas fora do local preestabelecido, o que não é suficiente para invalidar a proposta, evidenciando claro excesso de formalismo. Precedentes.

3. Segurança concedida”[8].

“EMENTA: LICITAÇÃO: IRREGULARIDADE FORMAL NA PROPOSTA VENCEDORA QUE, POR SUA IRRELEVÂNCIA, NÃO GERA NULIDADE.[…] Distante de qualquer juízo discricionário, pertencente à fase anterior a qual é possível a liberdade de escolha do objeto, especificação, condições de pagamento, entre outros pertinentes ao momento preparatório e inicial da licitação, procede-se agora o exame objetivo, vinculando-se a Comissão Julgadora a que foi traçado no edital, passa-se à adjudicação e à celebração do contrato entre a Administração e o administrado (concorrente bem-sucedido). (…) Assim, o agente da Administração, ao dar efeito aos critérios estabelecidos na fase da licitação, deve propiciar, com praticidade, a resolução de problemas de cunho condizente com sua competência, sem “engessar” o procedimento, de modo a que o licitante não fique vulnerável à exclusão por qualquer tipo de desconexão com a regra estabelecida, ainda que de caráter formal, salvo quando de todo justificável. (…) Vale também ressaltar a prevalência do bom senso do condutor da licitação e da Comissão especialmente designada para tal fim, que deverão também se basear no princípio da competitividade, relevando formalismos que se sobreponham à finalidade do certame, sem, contudo, deixarem de considerar a legalidade e a impessoalidade dos atos praticados”[9].

Vê-se, portanto, que prepondera o entendimento de que o exame do cumprimento de exigências consignadas em instrumento convocatório deve ser feito sob o prisma da finalidade, de modo que propostas e/ou documentação de habilitação que não contenham todos os elementos formais exigidos no edital não sejam afastadas se o conjunto das informações permitir a sua compreensão e aptidão, mesmo que implicitamente, devendo a autoridade competente ainda, sempre que necessário, promover de ofício diligências para elucidar dúvidas acerca de documentos/dados apresentados, confirmar fatos, etc., dado que a decisão só poderá ser tomada após o esclarecimento desses.

A realização de diligências, com o fito de esclarecer ou complementar a instrução do processo é um dever a ser exercitado pela Administração, independe de previsão no edital[10][11] e pode ser realizada em qualquer fase da licitação, com respaldo no que prevê o art. 43, §3º da Lei nº 8.666:

“Art. 43. (…) § 3º É facultada à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, a promoção de diligência destinada a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta”.

A Lei nº 14.133/2021 também trata do tema nos seguintes termos:

“Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:

I – complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;

II – atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.

§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.

§ 2º Quando a fase de habilitação anteceder a de julgamento e já tiver sido encerrada, não caberá exclusão de licitante por motivo relacionado à habilitação, salvo em razão de fatos supervenientes ou só conhecidos após o julgamento.” (grifou-se)

Oportunas sobre o tema, as considerações de André Guskow Cardoso:

“2.4 A impossibilidade de violação da isonomia entre os licitantes

Ressalte-se, ainda, que há outro limite à realização de diligências. Trata-se da impossibilidade de a Administração, por meio do uso da diligência, violar a isonomia de tratamento com relação aos demais licitantes. Não se trata de impedir a realização de toda e qualquer diligência sob a alegação de que os demais licitantes teriam apresentado documentação regular e que afastaria qualquer dúvida com relação ao atendimento do ato convocatório. O que impede a produção de diligência é a atuação da Administração que permite que o licitante que tenha deixado de demonstrar inicialmente (quando da abertura do certame) o atendimento ao edital o faça posteriormente. Ou seja, não se trata das situações em que a diligência apenas irá confirmar dados e informações que já constavam da documentação de habilitação do licitante ou de sua proposta, mas daquelas em que a própria informação (exigida pelo edital) venha a ser apresentada posteriormente. É a situação de licitante que deixa de apresentar determinado atestado para comprovação da qualificação técnica mínima exigida pelo edital e que pretende, no curso das diligências, demonstrar essa qualificação. No entanto, não se pode confundir essa situação com aquela em que o licitante apresenta o atestado e, por qualquer motivo, surge dúvida a respeito da descrição de determinado serviço nele contido ou sobre as técnicas utilizadas na referida obra ou serviço. Nessa hipótese, há inequívoca possibilidade de realização de diligências para sanar essas dúvidas. Contudo, no primeiro caso, há nítido descumprimento da exigência de tratamento isonômico entre os licitantes, o que não é admitido pela Lei 8.666/93 (art. 3º). Em termos gerais, situações dessa espécie impedem a realização de diligências por parte da Administração.”[12] (grifou-se)

E o TCU, em decisões mais recentes, sinalizou o que segue:

“[SUMÁRIO]

1. Admitir a juntada de documentos que apenas venham a atestar condição pré-existente à abertura da sessão pública do certame não fere os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes e o oposto, ou seja, a desclassificação do licitante, sem que lhe seja conferida oportunidade para sanear os seus documentos de habilitação e/ou proposta, resulta em objetivo dissociado do interesse público, com a prevalência do processo (meio) sobre o resultado almejado (fim).

2. O pregoeiro, durante as fases de julgamento das propostas e/ou habilitação, deve sanear eventuais erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade jurídica, mediante decisão fundamentada, registrada em ata e acessível aos licitantes, nos termos dos arts. 8º, inciso XII, alínea h; 17, inciso VI; e 47 do Decreto 10.024/2019; sendo que a vedação à inclusão de novo documento, prevista no art. 43, §3º, da Lei 8.666/1993 e no art. 64 da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) , não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta, que não foi juntado com os demais comprovantes de habilitação e/ou da proposta, por equívoco ou falha, o qual deverá ser solicitado e avaliado pelo pregoeiro.”[13]

“[ACÓRDÃO]

9.3. determinar ao Grupamento de Apoio do Rio de Janeiro, com fundamento no art. 4º, inciso I da Resolução – TCU 315/2020, que, no prazo de quinze dias, adote providências quanto ao item abaixo, e informe ao TCU os encaminhamentos realizados:

9.3.1. promova a anulação da decisão da autoridade competente que reformou a decisão do pregoeiro quanto à habilitação da [licitante 1] no Pregão 45/2020, que ofertou o menor preço, com a consequente habilitação da citada Empresa, tendo em vista que a apresentação, em sede de diligência, do CAT 24097/2021 pela [licitante 1], emitido em 9/3/2021, destinado a atestar condição preexistente à abertura da sessão pública, não se configura motivo plausível para a inabilitação do licitante, conforme entendimento firmado no Acórdão 1211/2021-TCU-Plenário, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues”.[14]

Destarte, diante da apresentação de procuração com data de validade vencida, antes de afastar o licitante da competição, cabe à Administração realizar as devidas diligências para se certificar da legitimidade dos atos praticados em nome da empresa. E caso reste comprovado que quem atuou em nome da empresa tinha poderes para tanto, não há que se cogitar da exclusão do licitante, em prol dos princípios aplicáveis.

 

 


[1] Texto elaborado pelos consultores da JML.

[2] Sobre o tema, pertinente o post “Princípio do procedimento formal x formalismo”, veiculado no Blog JML: <http://www.blogjml.com.br>.

[3] DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos Jurídicos da Licitação. 33ª ed. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 88.

[4] TCU. Informativo de Licitações e Contratos n°151/2013.

[5] TCU. Informativo de Licitações e Contratos nº 192/2014.

[6] TCU. Informativo de Licitações e Contratos n° 252/2015.

[7] TCU. Acórdão 7.334/2009 Primeira Câmara

[8] STJ. MS nº 5.869/DF, rel. Ministra LAURITA VAZ.

[9] STF, ROMS nº 23.714-1/DF, 1ª T., Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 13.10.2000.

[10] Como bem esclarece Marçal Justen Filho: “A realização da diligência não é uma simples faculdade da Administração, a ser exercitada segundo juízo de conveniência e oportunidade. A relevância dos interesses envolvidos conduz à configuração da diligência como um poder-dever da autoridade julgadora. Se houver dúvida ou controvérsia sobre fatos relevantes para a decisão, reputando-se insuficiente a documentação apresentada, e dever da autoridade julgadora adotar as providências apropriadas para esclarecer os fatos. Se a dúvida for sanável por meio da diligência, será obrigatória a sua realização. Daí seguem duas decorrências inafastáveis. A primeira justamente reside em que a realização de diligência não depende de prévia autorização no edital nem de pleito do particular. Deve ser realizada de ofício pela autoridade julgadora. É evidente, no entanto, que a omissão da autoridade autoriza que o interessado provoque a sua realização. A segunda consiste em que a efetivação da diligência é obrigatória. A ausência de sua realização depende de uma decisão motivada satisfatoriamente.JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 949.

[11] No entanto, por medida de transparência, entende-se salutar que a Administração discipline em edital o procedimento que será adotado no curso do certame para a realização das diligências necessárias para suprir eventuais falhas na documentação apresentada, de modo a permitir a sua análise e julgamento.

[12] CARDOSO, André Guskow. As diligências produzidas nos processos licitatórios e a necessidade de respeito ao contraditório e à ampla defesa. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 15, mai. 2008.

[13] TCU. Acórdão 1211/2021. Plenário.

[14] TCU. Acórdão 2443/2021. Plenário.

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