Dia 08 de março é o Dia Internacional das Mulheres. Essa data, marcada por um histórico de lutas e conquistas, também nos convida para um olhar mais acurado sobre as mulheres nas contratações públicas e seus progressos. A Lei de Licitações contém disposições que de alguma forma possibilitam tanto o protagonismo quanto a proteção da mulher sob alguns aspectos. Apresentaremos no texto o histórico, o contexto, os objetivos e como se dará a efetividade das diretrizes legais e das regulamentações sobre o tema.
A história da humanidade, por muito tempo, foi contada a partir do relato dos homens, pois, durante muitos séculos, a palavra só era concedida a eles.
A verdade é que a discussão acerca da igualdade de gêneros já existia antes mesmo de Cristo e pode ser expressamente encontrada em Platão, para quem as mulheres até poderiam ser consideradas iguais aos homens e desempenhar as mesmas funções que eles dentro da cidade, porém sempre seriam mais fracas (PLATÃO, 2000. p. 156).
Esta tradição, de considerar mulheres inferiores, acessórias ou subordinadas que perdurou entre os séculos, foi consignada até mesmo na história bíblica de criação do mundo, afinal, Eva veio depois, originada da costela de Adão, e foi Eva – a mais fraca – quem caiu em tentação no paraíso.
Na Idade Média, o pensamento teológico predominava e ligava a figura e o corpo da mulher ao pecado. A Santa Inquisição perseguiu as “bruxas” e condenou milhares de mulheres à morte.
E mesmo mais de 1.000 anos depois, Jean Jacques Rousseau (1995, p. 424), símbolo do iluminismo, continuou a repetir o mesmo tipo de discurso sobre a inferioridade das mulheres, chegando até mesmo a sugerir que já que “feita para agradar e ser subjugada”, cabe-lhes ser agradável ao homem ao invés de provocá-lo, pois a violência (força) da mulher está exatamente nos seus encantos e “é por eles que ela deve constrangê-los”.
A história das mulheres, portanto, foi contada por homens ou a partir deles, pois lhes cabia viver encarceradas no espaço privado das relações domésticas, procriando e cuidando do lar.
A ruptura com estes conceitos começou a se desenvolver, pouco a pouco, a partir do século XVII, momento histórico no qual passou-se a defender ideais sobre os direitos naturais do homem.
Sob inspiração de John Locke e do próprio Rousseau, entre outros pensadores, tiveram início as chamadas “revoluções”, que buscavam a emancipação dos indivíduos contra uma sociedade monárquica e absolutista. Contudo, mesmo diante de inegáveis progressos, os movimentos ainda não cuidavam de “derrubar a barreira da desigualdade entre os sexos” (Comparato: 2010, p, 148-149), pois os direitos conquistados com as revoluções contemplavam apenas os homens brancos que tivessem posses.
Por outro lado, a defesa da igualdade de direitos que incendiou os séculos XVIII e XIX e os transformou nos séculos das revoluções, acabou por estimular as mulheres a exigirem os mesmos direitos.
Em decorrência deste contexto, digno de nota é o ano 1909, na cidade de Nova York, onde houve uma importante passeata das mulheres que trabalhavam na indústria têxtil, cujas lutas e reivindicações por condições mais justas inspiraram sucessivas manifestações que eclodiram nos anos seguintes. Estas mulheres, que recebiam salários irrisórios – ainda menores que os salários percebidos pelos homens – cumpriam jornadas de trabalho extenuantes e não recebiam quaisquer cuidados com relação a sua saúde.
Enquanto isso, também crescia na Europa o movimento nas fábricas. Em 1913, as mulheres já protestavam pelo direito a voto no Estados Unidos.
Mas o primeiro 08 de março ocorreu, de fato, em 1917, no qual milhares de mulheres se reuniram em um protesto na Rússia, que ficou conhecido como “Pão e Paz”. As reivindicações desse movimento eram por melhores condições de trabalho e de vida, contra fome e para a retirada da Rússia da Primeira Guerra Mundial, que assolava o país.
No Brasil, a luta feminina ganhou força com o movimento das sufragistas, nas décadas de 1920 e 30, que conquistaram o direito ao voto em 1932, com a Constituição Federal promulgada por Getúlio Vargas.
A criação de uma data oficial dedicada a luta das mulheres, muitas marcadas por verdadeiras tragédias, passou a ser idealizada, sendo definitivamente instituída pela ONU no ano de 1975.
O dia 8 de março torna-se, portanto, um símbolo de conquistas, e eleva a importância da mulher na história, na medida em que reconhece, sobretudo, que desde muito se há lutado por uma sociedade mais igualitária.
E dito tudo isso, podemos inferir que a história das mulheres foi marcada tanto pela submissão quanto pela violência e, com isto, podemos também dar um salto na história para destacar os avanços trazidos por duas leis nacionais, a Lei Maria da Penha e a Nova Lei de Licitações.
A primeira delas, a Lei n° 11.340, do ano de 2006, homenageou a biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu duas tentativas de homicídio por seu marido. O normativo implementou importantes ações e diretrizes para proteção da mulher ao definir que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social” (art. 2°). A lei também impôs ao poder público o dever de desenvolver políticas que visem garantir os direitos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares, no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 3°, §1°).
Para o presente texto, no entanto, daremos maior destaque à Lei de Licitações (Lei 14.133/21), que, seguindo o movimento histórico de busca por uma sociedade mais igualitária e à plena luz da Lei Maria da Penha, representa a demonstração de que as contratações públicas podem ser importantes instrumentos de efetividade de políticas públicas sociais aptas a moldar e inspirar o mercado privado e a sociedade, permitindo a ampliação e o protagonismo do trabalho das mulheres em prol de sua independência e de melhores condições de vida e trabalho.
Cabe sinalizar que a Lei de Licitações, inovando em relação ao arcabouço normativo de contratações públicas, apresentou um somatório de temas que preconizam aspectos sociais, ambientais e de governança, induzindo o mercado a se moldar diante das diretrizes impostas na Lei, tangenciado e em busca da efetividade de políticas públicas.
Para FERREIRA (2012) a licitação comporta uma função social e o atendimento aos reais anseios da coletividade. Para o autor:
“Descumprir a função social da licitação (…), em tempos atuais, importa em simultaneamente desatender a seleção da proposta mais vantajosa, porque não mais pode haver “benefício neutro”, aquele que apenas considera como juridicamente relevantes os benefícios econômicos para a Administração e a utilidade obtida diretamente pelos destinatários da obra pública, por exemplo. É que o interesse (público) geral exige mais, muito mais” (FERREIRA, 2012, p. 39).
No que se refere às mulheres, a Lei de Licitações estabelece tanto algumas ações afirmativas para a colocação de mulheres vítimas de violência doméstica no mercado de trabalho quanto para a igualdade de gênero. Na primeira categoria, a Lei dispõe no art. 25, §9°, I, que um percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto poderá ser constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.
Na segunda categoria de ações afirmativas, a Lei 14.133/21 prescreve no Art. 60, III, que no caso de empate entre duas ou mais propostas apresentadas, será utilizado como terceiro critério de desempate o desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
As ações de equidade, vale destacar, compõem o 5° Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), qual seja, “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Os ODS foram oficializados em 2015 para a Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), na qual 193 países, incluindo o Brasil, se comprometeram em enfrentar os maiores desafios do mundo contemporâneo, que se relacionam dentre outros, com questões de efetivação de direitos humanos, governança na gestão pública e a promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões social, econômica, ambiental e institucional, dentre outros.
A lei de licitações deixou expresso que a aplicação dos dispositivos protetivos às mulheres depende de regulamentação. Seguindo essa diretriz muitos estados, municípios e até mesmo a União já publicaram regulamentos próprios prevendo tais ações nas contratações públicas, a fim de conferir-lhes efetividade.
A União, no Decreto n° 11.430, de 08 de março de 2023, estabeleceu o percentual de 8% para o emprego de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica na contratação de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, de modo facultativo, para contratos com mais de 25 colaboradores.
Importante citar que o normativo federal acima fez menção à Lei Maria da Penha para incluir nessa regra do percentual as mulheres trans, travestis ou outras possibilidades do gênero feminino.
Quanto às ações de equidade, no Decreto são consideradas, de forma ordenada, medidas de inserção, de participação, e de ascensão profissional igualitária entre mulheres e homens, incluída a proporção de mulheres em cargos de direção do licitante; ações de promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento entre mulheres e homens em matéria de emprego e ocupação; igualdade de remuneração e paridade salarial entre mulheres e homens; práticas de prevenção e de enfrentamento do assédio moral e sexual; programas destinados à equidade de gênero e de raça; e, ações em saúde e segurança do trabalho que considerem as diferenças entre os gêneros.
Os regulamentos estaduais e municipais, de modo geral, seguem o disposto no Decreto Federal. Alguns, a exemplo do paranaense, Decreto n° 10.086/2022, apresentam outros dispositivos. O normativo estadual acrescenta como ações de equidade práticas na cultura organizacional, como: programas de disseminação de direitos das mulheres; práticas de prevenção e repressão ao assédio moral ou sexual; práticas de combate à violência doméstica e familiar; programas de educação voltada à equidade de gênero; além de, estrutura física adequada para trabalhadoras gestantes e lactantes; medidas de medicina e segurança do trabalho que considerem as diferenças entre os gêneros; reserva de 2% das vagas de trabalho na empresa licitante para mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.
Regulamentados os temas, conforme sinaliza a Lei de Licitações, os entes começam a incluir as disposições em suas contratações. Como exemplo, citamos o Edital de Pregão Eletrônico n° 169/2023, da Câmara dos Deputados, no qual consta no contrato a obrigação de a contratada manter 2% dos postos de trabalho ocupados por mulheres em situação de vulnerabilidade econômica decorrente de violência doméstica e familiar.
Exposta a legislação cabe, por fim, tecer alguns comentários sobre seu real alcance.
As ações de equidade estudadas acima poderiam representar uma maior dimensão, beneficiar mais mulheres, ante a variedade de situações, institutos protetivos e de inclusão que podem estar contempladas nas ações e dada a importância de seu tema, transformado em Objetivo de Desenvolvimento Social, como visto. No entanto, ao estabelecer como 3° critério de desempate de propostas, a Lei de Licitações acabou por prejudicar a efetividade das ações, pois antes será utilizada a disputa final e a avaliação de desempenho contratual prévio entre os licitantes. O próprio desempate de propostas já é uma situação ocasional e alcançar uma terceira hipótese de desempate para analisar ações de equidade adotadas pelos licitantes beira o impossível.
Quanto à definição de percentual mínimo de mão de obra constituído por mulheres vítimas de violência doméstica, os regulamentos devem definir quantidades que sejam compatíveis com a realidade local e a estruturação das unidades responsáveis pela política de atenção a mulheres vítimas de violência doméstica para possibilitar a contratação e garantir eficácia à medida protetiva.
De tudo o que foi exposto no presente texto, pode-se avaliar que a legislação brasileira tem apresentado disposições que convergem com o histórico das conquistas obtidas pelas mulheres ao longo dos anos em sede de direitos, pois como grande parte dos direitos conquistados pela humanidade, o reconhecimento dos direitos das mulheres é fruto de um longo processo histórico.
Em outras palavras, podemos dizer que a conquista da igualdade de direitos exigiu e segue exigindo reivindicação, portanto, ainda que embrionário e – para as ações de equidade nas hipóteses de desempate – provavelmente pouco efetivas, já podemos considerar que as disposições definidas na Lei de Licitações e nos regulamentos que se seguem dão passos relevantes rumo à equidade de gênero e à luta contra a violência doméstica.
O tema é vasto, desperta muitas discussões, críticas, apresenta diversas possibilidades e se destina, inclusive, a servir de inspiração para o surgimento de outros mecanismos que confiram efetividade às ações de equidade e de protagonismo das mulheres em vista de melhorias em suas condições de trabalho e de vida.
Assim – e para citar Angela Davis – para quem o “o otimismo é uma necessidade absoluta”, podemos concluir que ainda há muito por avançar, mas a nossa comemoração, sim, é legítima!
Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota.
Madre Teresa de Calcutá
REFERÊNCIAS:
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FERREIRA, Daniel. A Licitação Pública no Brasil e sua nova Finalidade Legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
LOCKE, Jonh. Ensaio Acerca do Entendimento Humano: segundo tratado sobre o governo. 5.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou da educação. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.