A recente aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei (PL) nº 1246/2021, que aguarda sanção presidencial, estabelece um marco regulatório fundamental para a governança das empresas estatais brasileiras. Essa proposição legislativa institui a obrigatoriedade de uma reserva mínima de 30% das vagas de membros titulares para mulheres em conselhos de administração das sociedades empresárias que especifica, incluindo empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas, bem como outras companhias em que a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto. Tal medida não apenas alinha o Brasil às melhores práticas internacionais de diversidade, mas também reforça o papel estratégico das estatais na promoção da equidade de gênero e na incorporação efetiva dos princípios de Governança Ambiental, Social e Corporativa (ESG).
O Mandato da Equidade nos Conselhos de Administração das Estatais
A natureza jurídica e a finalidade pública das empresas estatais impõem-lhes uma responsabilidade dual: a geração de valor econômico e a consecução de objetivos de interesse público. Nesse contexto, a composição de seus conselhos de administração adquire relevância ímpar. A diversidade de perspectivas, em especial a de gênero, é amplamente reconhecida como um fator de aprimoramento da qualidade das decisões, da eficácia da governança corporativa e da capacidade de compreensão e atendimento às demandas da sociedade.
A nova legislação vai além da mera representatividade numérica, ao determinar que, do quantitativo de vagas reservadas para mulheres, pelo menos 30% deverão ser preenchidos por mulheres negras ou com deficiência. Esse dispositivo reflete um compromisso com a interseccionalidade das discriminações, buscando desconstruir estruturas tradicionais e promover um ambiente corporativo que espelhe a pluralidade da população brasileira. A autodeclaração será o mecanismo primário para o reconhecimento da pessoa como mulher negra, com previsão de comissão de heteroidentificação para apuração de eventuais irregularidades, assegurando o devido processo legal e a ampla defesa.
A implementação das cotas será progressiva, iniciando com 10% a partir da primeira eleição para os cargos do conselho de administração após a entrada em vigor da lei, elevando para 20% na segunda eleição e atingindo 30% na terceira eleição. Essa gradualidade permite que as empresas estatais se adaptem de forma planejada, com tempo hábil para a identificação e qualificação de profissionais do sexo feminino aptas a integrar seus conselhos. A fiscalização do cumprimento da lei, especialmente para as empresas públicas e sociedades de economia mista, será incumbência dos órgãos de controle externo e interno, nos termos do art. 85 da Lei nº 13.303/2016 (Lei de Responsabilidade das Estatais). O descumprimento do disposto na lei poderá resultar no impedimento de deliberação do conselho de administração da sociedade empresária.
ESG e a Ética na Gestão das Estatais: Uma Indissociável Relação
A integração de critérios ESG, cujo conceito foi cunhado em 2004 na publicação “Who Cares Wins” pelo Pacto Global da ONU e o Banco Mundial, tornou-se um imperativo para as empresas estatais. A inclusão de mulheres em posições de liderança nos conselhos de administração das estatais está em consonância com o pilar Social (S) do ESG, que abrange a diversidade, equidade de gênero e o combate à discriminação. Concomitantemente, fortalece o pilar de Governança (G), ao aprimorar a supervisão, a qualidade da tomada de decisões e a responsabilidade corporativa.
As empresas estatais devem atuar como exemplos na implementação de práticas ESG. A Controladoria-Geral do Município de Belo Horizonte (MG), por exemplo, vem fomentando a prática de ESG em outros órgãos por meio de seu estabelecimento como um dos eixos temáticos dos Planos de Integridade.
Além disso, a nova legislação promove alterações substanciais na Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas) e na Lei nº 13.303/2016 (Lei de Responsabilidade das Estatais). O relatório previsto no art. 133 da Lei das Sociedades Anônimas deverá incluir a política de equidade adotada pela companhia, com informações detalhadas sobre a quantidade e proporção de mulheres contratadas por níveis hierárquicos, mulheres em cargos de administração, demonstrativo da remuneração segregada por sexo e a evolução comparativa desses indicadores. De maneira análoga, a Lei de Responsabilidade das Estatais passa a exigir a divulgação anual da política de igualdade entre homens e mulheres, com informações similares. Essa ampliação da transparência e da prestação de contas é um vetor fundamental para o aprimoramento da ética empresarial, permitindo que a sociedade e os órgãos de controle monitorem o progresso das estatais nessas questões.
Sinergias entre Legislações: Estatais e Administração Pública
A análise da legislação referente às cotas nos conselhos de estatais revela sinergias com outras normas aplicáveis à administração pública federal. O Decreto nº 11.443, de 21 de março de 2023, por exemplo, estabelece o preenchimento por pessoas negras de um percentual mínimo de cargos em comissão e funções de confiança no âmbito da administração pública federal. Para tanto, considera-se pessoa negra aquela que se autodeclara preta ou parda, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE, e que possua traços fenotípicos que a caracterizem como tal. A meta é que, até 31 de dezembro de 2025, 30% dos Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE) nos níveis de 1 a 12 e de 13 a 17 sejam preenchidos por pessoas negras. Adicionalmente, o decreto prevê que o preenchimento desse percentual observe um mínimo de mulheres, a ser definido por ato conjunto dos Ministérios da Igualdade Racial e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
Ambas as iniciativas legislativas convergem para o objetivo de promover a diversidade e a inclusão em diferentes esferas do poder público, complementando-se na busca por representatividade em todos os níveis. A autodeclaração, presente em ambas as normas, é um reconhecimento da autonomia individual, concomitantemente à previsão de comissões de heteroidentificação em caso de denúncias ou suspeitas de irregularidades para mitigar riscos de fraudes e garantir a efetividade da política.
Um estudo recente do Conselho Nacional de Controle Interno (Conaci) e do Banco Mundial sobre Integridade de Gênero e ESG revelou que a maioria das controladorias ainda se encontra em estágios iniciais na implementação de políticas e programas estruturados de equidade, inclusão e diversidade20. Especificamente, 79% dos órgãos participantes do estudo ainda não incluíam a temática em seus planejamentos estratégicos, e 71% não possuíam diretrizes formais de combate à discriminação. Surpreendentemente, 100% dos órgãos de controle ainda não possuíam previsão de recursos financeiros para a implementação de políticas de diversidade. Essa constatação ressalta a urgência de que as empresas estatais, como integrantes do setor público, intensifiquem seus esforços para institucionalizar e consolidar políticas robustas de diversidade e inclusão, acompanhadas de suporte financeiro e mecanismos de governança eficazes.
Apesar dos desafios diagnosticados, o estudo também identificou boas práticas relevantes. O Estado do Acre, por exemplo, instituiu o Orçamento Sensível ao Gênero (Lei nº 4.168/2023). O Rio Grande do Norte demonstra avanço com a Lei nº 9.968/2015, que prevê reserva mínima de 5% de vagas para mulheres na construção civil em obras públicas, e a Lei nº 11.015/2021, que reserva no mínimo 20% das vagas em concursos públicos para pessoas negras. No âmbito municipal, a Controladoria-Geral do Município de Belo Horizonte se destaca com a Cartilha “Olhares Plurais”, voltada para a promoção da ética, igualdade racial e de gênero, e o Plano Municipal de Equidade de Gênero, alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Perspectivas e Desafios para as Estatais Brasileiras
A iminente sanção do PL nº 1246/2021 representa um divisor de águas para a governança das empresas estatais brasileiras. Ao incorporar formalmente a diversidade de gênero em suas estruturas de liderança, essas empresas não apenas reforçam sua capacidade decisória e inovação, mas também consolidam seu papel como catalisadores de transformação social. A efetiva integração dos princípios ESG e a adesão a uma ética empresarial inegociável são, mais do que nunca, pressupostos inafastáveis para a legitimidade e o sucesso das estatais no cenário contemporâneo. A manutenção de um diálogo institucional contínuo e a cooperação entre as diversas esferas do poder público serão cruciais para identificar novas oportunidades e consolidar um ambiente de justiça social e desenvolvimento sustentável no país.
Referências
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de Lei nº 1246, de 2021. Estabelece a obrigatoriedade de reserva mínima de participação de mulheres em conselhos de administração das sociedades empresárias que especifica; e altera a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas), e a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016 (Lei de Responsabilidade das Estatais). Brasília, DF: Senado Federal, 25 jun. 2025. Em tramitação no Congresso Nacional. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-1246-2021. Acesso em: 14 jul. 2025.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Global; BANCO MUNDIAL. Who Cares Wins. 2004. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/444801491483640669/pdf/113850-BRI-IFC-Breif-whocares-PUBLIC.pdf . Acesso em: 14 jul. 2025.
BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 11.443, de 21 de março de 2023. Dispõe sobre o preenchimento por pessoas negras de percentual mínimo de cargos em comissão e funções de confiança no âmbito da administração pública federal. Brasília, DF: Presidência da República, 21 mar. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11443.htm. Acesso em: 14 jul. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE CONTROLE INTERNO (CONACI); WORLD BANK GROUP. Integridade de Gênero e ESG: estudo de boas práticas. Brasília, DF: Conaci; World Bank Group, 2024. Disponível em: https://conaci.org.br/wp-content/uploads/2025/01/Estudo-Boas-Praticas-Integridade-de-Genero-e-ESG.pdf. Acesso em: 14 jul. 2025.