Carmen Iêda Carneiro Boaventura[1]
Ronny Charles L. de Torres[2]
1. INTRODUÇÃO. 2. O ADVENTO DO DECRETO FEDERAL N º 11.462/2023. 3. PONTOS RELEVANTES RELACIONADOS AO SRP E SUA REGULAMENTAÇÃO FEDERAL 3.1 Rol exemplificativo das hipóteses de adoção do SRP. 3.2 Possibilidade do registro de preços diferentes. 3.3 Possibilidade de o licitante oferecer ou não proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital. 3.4 O prazo de vigência da ata de registro de preços. 3.5 Possibilidade de adesão pelo órgão participante. 3.6 Possibilidade de SRP através da dispensa e da inexigibilidade de licitação. 3.7 O remanejamento das quantidades registradas na ARP. 3.8 A utilização da ARP após a revogação das leis n º 8.666/93 e 10.520/2002. 4. CONCLUSÃO
A Lei nº 14.133 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA) – está vigente desde o dia 01 de abril de 2021 e representa uma consolidação de diversos diplomas normativos, entendimentos do Tribunal de Contas da União, texto de instruções normativas federais e também conteúdo de decretos federais. Em relação à sua aplicação ela trouxe interessante disposição em seu artigo 191, definindo, em sua redação original, a revogação postergada da legislação “substituída” (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e parte da Lei nº 12.462/2011), a qual ocorreria apenas 2 (dois) anos após sua publicação e vigência (da NLLCA) permitindo uma um período de convivência normativa entre a Lei nº 14.133/2021 e a legislação que ela irá revogar.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Medida Provisória 1.167, publicada em 31 de março de 2023, o art. 191 foi alterado, de maneira que sua atual redação define que a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com a Lei nº 14.133/2021 ou de acordo com a Lei nº 8.666/93, a Lei nº 10.520/2002 e os art. 1º a art. 47-A da Lei nº 12.462/2011, desde que: a) a publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta ocorra até 29 de dezembro de 2023; e b) a opção escolhida seja expressamente indicada no edital ou no ato autorizativo da contratação direta.
A Medida Provisória 1.167/23 estabeleceu o prazo de até 30 de dezembro de 2023 para a convivência entre a Lei nº 14.133/21 e os demais diplomas normativos acima citados, revogando na referida data, a Lei nº 8.666/93, a Lei nº 10.520/2002 e os art. 1º a art. 47-A da Lei nº 12.462/2011. Com isso, ampliou-se o prazo de convivência normativa entre a legislação nova e a legislação “antiga”[3], esticando o prazo para aplicação desta.
Também no dia 31 de março de 2023 foi publicado o Decreto Federal nº 11.462/2023, que regulamentou, no âmbito federal, o Sistema de Registro de Preços. Este regulamento era esperado com certa ansiedade, já que um enorme percentual das compras públicas federais adota esse instrumento (procedimento) auxiliar.
Sua publicação trouxe uma base mais segura para a aplicação do sistema de registro de preços em nível federal, mas ainda não responde a todas as dúvidas práticas existentes sobre o uso deste importante instrumento auxiliar.
2. O ADVENTO DO DECRETO FEDERAL N º 11.462/2023
Conforme mencionado alhures, houve a publicação do Decreto Federal nº 11.462/2023, regulamentando os art. 82 a 86 da Lei nº 14.133/21, para dispor sobre o sistema de registro de preços para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
A priori, interessante destacar que a referida norma estabelece conceitos, logo em seu art. 2º, deixando claro, tanto para a Administração como também às empresas licitantes, o que se deve entender a respeito dos institutos, instrumentos e sujeitos ali listados, notadamente, quando se refere à gestão de atas e ao SRP digital. Ambos constituem ferramentas informatizadas integrantes do Compras.gov.br, criadas pelo Governo Federal, visando dar maior transparência aos procedimentos vinculados à sistemática e gestão do Sistema de Registro de Preços.
Há a indicação das hipóteses de adoção do SRP (art. 3º), definição das competências do órgão gerenciador e do órgão participante (artigos 7º e 8º), do procedimento de intenção de registro de preços – IRP (artigos 9º e 10º), a definição sobre os critérios de julgamento de menor preço ou maior desconto (art. 11), a utilização do SRP nas modalidades de concorrência ou pregão (art. 14), regras necessárias ao Edital (art. 15), a possibilidade de SRP através de contratação direta (art. 16), regras sobre a formalização da ARP e formação do cadastro de reserva (art. 18), a vigência da ata de registro de preços (art. 22), regras sobre a alteração ou atualização dos preços registrados (art. 25), o remanejamento das quantidades registradas na ARP (art. 30), regras atinentes ao procedimento de adesão à ata de registro de preços (artigos 31 a 33), dentre outros.
Pois bem, neste breve artigo, sem a pretensão de esgotar o assunto, trataremos sobre alguns dos pontos relevantes relacionados ao regulamento federal sobre o sistema de registro de preços, que merecem destaque.
3. PONTOS RELEVANTES RELACIONADOS AO SRP E SUA REGULAMENTAÇÃO FEDERAL
A Lei nº 8.666-93 possui um reduzido disciplinamento sobre o sistema de registro de preços, tratando sobre o tema nos poucos dispositivos do artigo 15. Esta opção do legislador gerou a necessidade de uma regulamentação que definisse, com maior detalhamento, a plataforma normativa deste instrumento auxiliar, que passou a ser desenvolvida por sucessivos decretos federais.
Vale destacar o Decreto federal nº 3.931/2001 e o Decreto federal nº 7.892/2013, que definiram a plataforma do sistema de registro de preços de maneira muito similar ao modelo adotado pela NLLCA, com previsão da adesão, órgãos participantes, compras nacionais, entre peculiaridades outras que não constavam no texto da Lei nº 8.666/93 e passaram a ser definidas por normativos infralegais.
Já a Lei nº 14.133/2021 trouxe uma definição legal mais analítica do sistema de registro de preços, adotando uma modelagem similar à outrora definida pela regulamentação federal; com isso, o legislador reduziu a possibilidade de mudanças mais arrojadas no formato deste importante instrumento auxiliar.
Diante disso, a regulamentação federal teve seu escopo de atuação reduzido e sua redação tornou-se de certa forma desafiadora, pelo menor espaço de “criação normativa” conferido por uma legislação mais analítica, bem como pela ausência de experimentação prática do sistema de registro de preços previsto pela Lei nº 14.133/2021. A tarefa de regulamentar torna-se difícil uma vez que gera, ao regulamentador, a necessidade de imaginar pontos problemáticos carentes de regulamentação, sem que muitas vezes eles ainda tenham se manifestado na prática das contratações públicas.
Feita essa observação preliminar, passa-se então a elencar alguns temas relevantes, previstos na regulamentação federal sobre o sistema de registro de preços.
3.1 Rol exemplificativo das hipóteses de adoção do SRP
O artigo 3º do regulamento federal define que o SRP poderá ser adotado quando a Administração julgar pertinente, em especial:
- quando, pelas características do objeto, houver necessidade de contratações permanentes ou frequentes;
- quando for conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida, como quantidade de horas de serviço, postos de trabalho ou em regime de tarefa;
- quando for conveniente para atendimento a mais de um órgão ou a mais de uma entidade, inclusive nas compras centralizadas;
- quando for atender a execução descentralizada de programa ou projeto federal, por meio de compra nacional ou da adesão de que trata o § 2º do art. 32; ou
- quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.
Houve uma sutil diferença em relação à regulamentação anterior, pois o texto do decreto, desta vez, deixa clara a opção por indicar um rol exemplificativo de hipóteses para a aplicação do SRP, ampliando a possibilidade de utilização desse importante instrumento auxiliar. Sob a égide da regulamentação anterior (Decreto federal nº 7.892/2013), embora houvesse defesa doutrinária em sentido divergente[4], o entendimento da Advocacia-Geral da União havia sido firmado no sentido de que o rol previsto pelo então regulamento era exaustivo[5].
Na prática, isso prejudicava o uso do SRP para situações não previstas pelo decreto federal, mesmo que esta utilização fosse vantajosa ou se apresentasse como mais eficiente. Com a redação do atual regulamento federal, não há mais dúvida acerca do caráter exemplificativo do rol de hipóteses que admitem a aplicação do SRP.
3.2 Possibilidade do registro de preços diferentes
Repetindo o regramento definido pelo legislador, o regulamento federal manteve a possibilidade de registrar preços diferentes.
Nessa linha, o inciso III do art. 15 estabelece que o Edital pode dispor sobre a possibilidade de previsão de preços diferentes em 4 situações: a) quando o objeto for realizado ou entregue em locais diferentes; b) em razão da forma e do local de acondicionamento; c) quando admitida cotação variável em razão do tamanho do lote; ou d) por outros motivos justificados no processo.
Esse dispositivo é interessante na medida em que leva em consideração, entre outros aspectos, o custo do fornecimento, diante das variáveis existentes na realidade mercadológica, como acondicionamento do bem e entrega em locais diferenciados.
A título de exemplo, se uma licitação sob o sistema de registro de preços ocorre no Estado do Acre e os bens devem ser entregues em Macapá/AP, Belém/PA e João Pessoa/PB, este licitante deverá atentar-se aos custos envolvidos para entrega deste produto em estados distintos, uma vez que, obviamente, as distâncias são também diferentes, e por consequência, o Edital tem a possibilidade de dispor sobre preços distintos em virtude dessa circunstância. Na prática, este procedimento já era adotado pelos órgãos que planejavam devidamente suas licitações, pela divisão de itens em lotes (já admitida na regulamentação anterior), considerando os deslocamentos necessários e a distância em cada entrega.
Portanto, a Administração precisará estar atenta à fase preparatória devido ao custo neste tipo de licitação, nas palavras de Cristiana Fortini e Tatiana Camarão[6]:
(…) é evidente que o preço ofertado será maior ou menor a depender da distância. A licitação não será realizada em lote único, mas, ao contrário, se impõe sua divisão em lotes tantos quantos forem os locais, cumprindo à Administração realizar com cuidado a fase interna, porque ela deverá antever os reflexos das distintas localidades no custo estimado da licitação.
De forma similar, questões relativas ao acondicionamento dos produtos, distância percorrida em razão de locais distintos também permitirão o registro de preços diferentes, o que será natural pela própria divisão da pretensão contratual em diversos lotes ou itens, de acordo com peculiaridades como distância, quantidade, condições de acondicionamento do objeto, entre outros motivos.
Para além disso, o regulamento admite o registro de preços diferentes quando admitida cotação variável em razão do tamanho do lote e por outros motivos justificados no processo. Nesta última hipótese, embora não traga acréscimo em relação ao já definido pelo legislador, o regulamento permite que a Ata contenha o registro não apenas do licitante vencedor, mas também de outros fornecedores participantes da licitação, o que pode servir para gerar um compromisso de fornecimento nas condições definidas, caso esses demais licitantes registrados sejam convocados.
Esta possibilidade parece ter sido reafirmada pelo Decreto com a ampliação do conceito de cadastro de reserva.
Se sob a égide do Decreto federal nº 7892/2013 o cadastro de reserva permitia, na respectiva ata na forma de anexo, o registro (inclusão) dos licitantes que aceitassem cotar os bens ou serviços com preços iguais aos do licitante vencedor na sequência da classificação do certame – o novo Decreto federal ampliou este conceito.
Para o Decreto federal nº 11.462/2023, o cadastro de reserva engloba tanto os licitantes que aceitarem cotar com preços iguais aos do adjudicatário, como os demais licitantes que mantiverem sua proposta original.
Embora a solução adotada pelo novo regulamento federal produza certa atecnia, ao classificar de uma mesma maneira situações diferentes (aqueles que equipararam seu preço ao do adjudicatário com aqueles que mantiveram seu próprio preço), deve-se elogiar o fato de que ela sacramenta a possibilidade de registro dos demais fornecedores com seus próprios preços, o que pode ser utilizado como instrumento para evitar a perda de utilidade da ata durante a sua vigência.
3.3 Possibilidade de o licitante oferecer ou não proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital
O decreto admite a possibilidade de o licitante oferecer ou não proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital e obrigar-se nos limites dela. Entendemos que esta oferta de quantitativo inferior precisará ser autorizada pelo edital, que pode, se for conveniente para a Administração, admitir cotações em quantitativos inferiores ao que efetivamente necessita.
Como é cediço, quando o licitante oferta a sua proposta em uma licitação e assina a ata de registro de preços, ele está obrigado a fornecer de acordo com as condições e preços ali determinadas. Ao admitir a participação da empresa na licitação ofertando quantidades inferiores às estipuladas no instrumento convocatório, o edital pode oferecer relevante estímulo aos fornecedores que têm interesse em participar do certame, mas não possuem capacidade/disponibilidade de ofertar os produtos pretendidos em sua totalidade. Assim, tal regra pode ampliar a competitividade e prestigiar pequenas empresas a disputarem a licitação.
3.4 O prazo de vigência da ata de registro de preços.
Outro aspecto está relacionado ao prazo de vigência da ata de registro de preços. Tanto o art. 84 da Lei nº 14.133/21, como também o inciso IX do art. 15 e art. 22 do Decreto nº 11.462/23, estabelecem que o prazo de vigência da ata de registro de preços, será de um ano e poderá ser prorrogado por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso. Percebe-se que há uma possibilidade, uma faculdade de prorrogação, por igual período, pela Administração, que estará condicionada à comprovação da vantajosidade desta renovação.
Relevante esclarecer que esta previsão se trata da possibilidade de prorrogação do prazo de vigência da Ata, e não do contrato decorrente dela. O contrato terá sua vigência de acordo com as disposições nele contidas. Isso porque a vigência da ata não se confunde com a vigência do contrato oriundo do certame estabelecido. A vigência limitada da ata não vincula a vigência da contratação realizada através dela, pois, para os contratos, a Lei estabeleceu regras próprias de vigência[7]. Nessa linha, é possível o registro de preços para contratações caracterizáveis como fornecimentos contínuos, para as quais a lei permite uma vigência diferenciada, superior ao limite de vigência da ata de registro de preços.
Cabe registrar, contudo, que o regulamento descuidou de tratar de maneira expressa sobre importante questão relacionada à possibilidade de prorrogação da ata de registro de preços, que envolve justamente a repercussão desta prorrogação em relação ao quantitativo previsto para fornecimento. Em outras palavras: a possibilidade de prorrogação da ata permite a renovação dos quantitativos inicialmente definidos no edital da licitação?
Aparentemente, ao definir que prorrogação (renovação) da ata de registro de preços se dará pelo mesmo período original[8], o legislador parece ter indicado uma modelagem de renovação, similar à outrora admitida para os serviços continuados, nas prorrogações admitidas pelo inciso II do artigo 57 da Lei nº 8.666/93, o que repercute na possibilidade de renovação dos quantitativos inicialmente previstos para o ciclo anual original[9].
A omissão regulamentar, no âmbito federal, exigirá que a questão seja solucionada através de outros instrumentos legítimos, como orientações normativas ou a própria jurisprudência dos órgãos de controle.
3.5 Possibilidade de adesão pelo órgão participante
Ponto muito interessante abordado pelo regulamento federal envolve a possibilidade de adesão pelo órgão participante.
Em princípio, esta possibilidade pode causar estranhamento, já que a adesão é uma ferramenta adotada pelos órgãos não participantes, uma vez que os participantes podem usar a ata diretamente, sem a necessidade deste procedimento (Adesão) similar a uma contratação direta.
Contudo, na prática, muitas vezes o órgão participante não atua nessa condição para todos os itens da ata de registro de preços. Imaginemos, por exemplo, uma ata lançada no IRP, que pretenda a contratação de diversos objetos, com adjudicação em itens diferentes (50 itens autônomos). Lançada a IRP, um órgão participante identifica a necessidade, naquele momento, da contratação de 20 daqueles itens, solicitando a inclusão de sua demanda para tais itens na licitação, na condição de participante. É possível, contudo, que durante a vigência da ata de registro de preços, surja para este mesmo órgão a necessidade de contratação de outros objetos, constantes entre os demais itens, para os quais ele não participou na ata. Poderia este órgão solicitar a adesão a um desses itens?
Seria esdrúxulo tolher ao órgão participante a possibilidade de adesão. Ora, se o órgão não participante, que não contribuiu para a construção do processo licitatório e formação da ata de registro de preços pode realizar a adesão, porque o órgão participante, para os itens nos quais não teve quantitativo registrado (portanto, não seria propriamente participante), não poderia aderir?
O regulamento federal expressamente admite essa hipótese, ao definir no § 4º do artigo 31 que “o órgão ou a entidade poderá aderir a item da ata de registro de preços da qual seja integrante, na qualidade de não participante, para aqueles itens para os quais não tenha quantitativo registrado”, obviamente, observados os requisitos e limites que admitem a adesão.
Trata-se de interessante regra do regulamento federal, que ajuda a superar um dilema prático muitas vezes vivenciado pelos órgãos participantes, dando segurança para que a adesão possa ocorrer nessas situações.
3.6 Possibilidade de SRP através da dispensa e da inexigibilidade de licitação
Ainda, oportuno comentar no presente artigo sobre a possibilidade de SRP através da dispensa e da inexigibilidade[10] nas aquisições de bens ou contratação de serviços por mais de um órgão ou entidade. Trata-se de disposição contida no parágrafo 6º do art. 82 da Lei nº 14.133/21, regulamentada no art. 16 do Decreto Federal nº 11.462/2023. Percebe-se um importante estímulo às compras compartilhadas, reduzindo o esforço burocrático de realizar diversas licitações para um mesmo tipo de contratação.
O referido Decreto estabelece que nos procedimentos de contratação de SRP através de contratação direta deverão ser observados: a) os requisitos da instrução processual previstos no art. 72 da Lei nº 14.133, de 2021; b) os pressupostos para enquadramento da contratação direta, por inexigibilidade ou por dispensa de licitação, conforme previsto nos art. 74 e art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021; e c) a designação da comissão de contratação como responsável pelo exame e julgamento dos documentos da proposta e dos documentos de habilitação, nos termos do disposto no inciso L do caput do art. 6º da Lei nº 14.133, de 2021.
A exigência dos pressupostos para o enquadramento da contratação direta se apresenta como um dos pontos mais relevantes para a aplicação escorreita do SRP em hipóteses de contratação direta. Realmente, para que se justifique a formação e utilização legítima da ata de registro de preços (ARP), é necessária a identificação dos pressupostos que autorizam a hipótese de contratação direta. Isso gera certos desafios práticos para a aplicação da adesão em uma ARP gerada para contratação direta, já que em algumas hipóteses esses pressupostos são identificados a partir de nuances objetivas e subjetivas especificas do órgão contratante.
Ademais, há previsão no sentido de que o registro de preços poderá ser utilizado na hipótese de contratação direta, por inexigibilidade de licitação, para a aquisição, por força de decisão judicial, de medicamentos e insumos para tratamentos médicos. Ao final, em seu art. 40, o Decreto 1.167/23 prevê a revogação do Decreto nº 7.892/2013, do Decreto nº 8.250/2014 e do art. 1º do Decreto nº 9.488, de 30 de agosto de 2018 em 30 de dezembro de 2023.
3.7 O remanejamento das quantidades registradas na ARP
Um outro aspecto trazido pelo regulamento federal, diz respeito à possibilidade de remanejamento das quantidades registradas na ata de registro de preços. O art. 30 do Decreto nº 11.462/2023 destaca que as quantidades previstas para os itens com preços registrados nas atas de registro de preços poderão ser remanejadas pelo órgão ou pela entidade gerenciadora entre os órgãos ou as entidades participantes e não participantes do registro de preços.
Ademais, o regulamento deixa claro que o remanejamento de quantidades só pode ocorrer: a) de órgão ou entidade participante para órgão ou entidade participante; ou b) de órgão ou entidade participante para órgão ou entidade não participante. Para esta última hipótese, há previsão no sentido de que deverão ser observados os limites relativos ao procedimento de adesão.
O §4º do mesmo artigo dispõe que competirá ao órgão ou entidade gerenciadora a autorização do remanejamento, com a redução do quantitativo inicialmente informado pelo órgão ou pela entidade participante, desde que haja prévia anuência do órgão ou da entidade que sofrer redução dos quantitativos informados. Depreende-se da leitura deste dispositivo que, mesmo que haja autorização do órgão gerenciador, a concordância prévia do órgão que for alvo da redução de quantitativos é condição sine qua non para a ocorrência do remanejamento.
Outra disposição interessante refere-se ao remanejamento entre órgãos ou entidades de Estados, do Distrito Federal ou de Municípios distintos. Nessa hipótese, caberá ao fornecedor beneficiário da ata de registro de preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento decorrente do remanejamento dos itens, mesmo quando o remanejamento ocorra entre órgãos ou entidades participantes. Trata-se aqui de opção de fornecimento e não de uma obrigação estipulada pelo regulamento.
E, por fim, o § 6º estabelece que na hipótese de compra centralizada, caso não haja indicação, pelo órgão ou pela entidade gerenciadora, dos quantitativos dos participantes da compra centralizada, a distribuição das quantidades para a execução descentralizada ocorrerá por meio de remanejamento.
3.8 A utilização da ARP após a revogação das leis n º 8.666/93 e 10.520/2002
Uma questão que reserva certa polêmica envolve a adoção de atas de registro de preços firmadas sob a égide da Lei nº 8.666-93 e da Lei nº 10.520-2002, após a revogação dessas leis.
Durante o período de convivência entre a Lei nº 14.133-2021 e as leis que ela revogará, é possível que a Administração opte pela utilização de uma ou outra legislação, mesmo que alternadamente, sendo vedada a aplicação simultânea ou combinada dos diversos regimes. Este disciplinamento foi feito, originalmente, pelo caput do artigo 191 da Lei nº 14.133/2021[11], porém após a publicação da Medida provisória nº 1.167/2023, muito embora permaneça a mesma regra de vedação da aplicação combinada, a sua disciplina consta na redação do § 2º do art. 191.
De acordo com a Lei nº 14.133/21, alterada pela referida Medida provisória, caso a Administração opte por licitar ou contratar de acordo com os “antigos” regimes licitatórios, o contrato respectivo será regido pelas regras neles previstas durante toda a sua vigência, mesmo após a revogação da legislação anterior, conforme previsão do § 1º do art. 191. Dessa forma, o legislador define uma interessante regra de ultratividade da legislação anterior, ao impor a aplicação dos “antigos” regimes licitatórios, mesmo após a sua revogação.
Essa ultratividade permite que aquelas situações iniciadas sob a égide da legislação anterior se perpetuam na sua existência jurídica sob o período de vigência temporal da lei nova, implicando na exclusão dos efeitos imediatos e futuros da lei em vigor, no que tange particularmente a situações ou relações em curso no momento da alteração legislativa[12].
Sendo o processo licitatório formado por um encadeamento de atos praticados em sequência, iniciados na fase preparatória e seguindo adiante, por exemplo[13], pela publicação do edital, apresentação de propostas, documentos de habilitação, recursos, adjudicação e homologação, entre outros, até que o contrato seja efetivamente firmado, parece evidente que ao garantir a ultratividade da legislação anterior o legislador está protegendo a conclusão deste processo e a sua pertinente contratação.
Compreender esta regra é extremamente necessário para as licitações que adotem o instrumento (procedimento) auxiliar denominado Sistema de Registro de Preços, ou simplesmente SRP. Como ressabido, no Sistema de Registro de Preços, a licitação não tem como finalidade imediata uma contratação, mas sim a pactuação de um instrumento auxiliar denominado ata de registro de preços, que durante sua vigência pode gerar futuras contratações.
A continuidade da aplicação da ata de registro de preços, pela aplicação da regra de ultratividade, já havia sido defendida pela Advocacia-Geral da União, através do Parecer 00006/2022/CNLCA/CGU/AGU e por parte da doutrina[14], mas havia fortes dúvidas sobre a possibilidade de adesão a essas atas, após o período de convivência normativa.
Convém colacionar o art. 2º da Portaria SEGES/MGI nº 1.769 que trata o regime de transição, no âmbito federal. Ele define que os processos licitatórios e contratações autuados e instruídos com a opção expressa de ter como fundamento a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, ou a Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, além do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2023, serão por eles regidos, desde que: a) a publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta ocorra até 29 de dezembro de 2023; e b) a opção escolhida seja expressamente indicada no edital ou do ato autorizativo da contratação direta. Percebe-se que no rol das legislações “antigas”, há menção ao Decreto Federal que regulamenta o Sistema de Registro de Preços previsto no art. 15 da Lei nº 8.666/93 – o Decreto 7.892/2013.
Mais assertivo foi o Decreto federal nº 11.462-2023, que, ao regulamentar o Sistema de Registro de Preços, expressamente admitiu a adesão a tais instrumentos auxiliares regidos pelo Decreto federal 7.892/2013, durante suas vigências.
Nesta senda, o § 2º de seu artigo 38 estabelece que as atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892, de 2013, durante suas vigências, poderão ser utilizadas por qualquer órgão ou entidade da Administração Pública federal, municipal, distrital ou estadual que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador, observados os limites previstos no referido Decreto.
Contudo, por amor ao debate, se por um lado é defensável a tese de que a continuidade da validade da ata traria necessariamente como consequência a possibilidade de adesão, por outro lado importante ponderar que a adesão se equipara a uma forma anômala de contratação direta, cujo processo pode se iniciar meses depois a publicação da ata de registro de preços
Sendo a decisão de realizar a contratação de acordo com regime das leis antigas, ainda no prazo de convivência normativa, uma condição definida pelo legislador para preservar a ultratividade, seria legítimo admitir que um processo de adesão a uma ata de registro de preços formada com base na Lei nº 8.666-93 fosse iniciado após a revogação desta, ou seja, de maneira extemporânea ao período de convivência?
Em princípio, novas demandas que surjam após a revogação da legislação antiga deveriam se submeter à legislação nova, inclusive em relação ao planejamento da contratação e em relação à regra que veda hibridismo entre o regime novo e as legislações antigas. Assim, embora sejam claramente legítimas as adesões cujo procedimento tenha se iniciado ainda no período de convivência normativa, é questionável a defesa da ultratividade normativa para novas demandas surgidas após a revogação da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 10.520/2002 e da Lei do RDC.
Nada obstante, a priori, ao menos enquanto inexistente posicionamento contrário pelos órgãos competentes, parece-nos que a disposição regulamentar constante no § 2º do artigo 38 do Decreto federal nº 11.462/2023 legitima a adesão a atas de registro de preços regidas pelo Decreto nº 7.892, de 2013, durante suas vigências, mesmo que o procedimento para a contratação se inicie após a revogação da legislação que fundamentou aquele instrumento auxiliar.
4. CONCLUSÃO
Neste sucinto artigo buscou-se delinear aspectos relevantes do Decreto nº 11.462/2023, que regulamentou o sistema de registro de preços no âmbito federal, colacionando interpretações sobre os seus dispositivos e a repercussão deste novo diploma normativo no cenário de contratações públicas no país.
Tratou-se sobre o rol exemplificativo das hipóteses de adoção do SRP, a possibilidade do registro de preços diferentes e de o licitante oferecer ou não proposta em quantitativo inferior ao máximo previsto no edital. Foi abordada também a questão relativa ao prazo de vigência da ata de registro de preços, à possibilidade de adesão pelo órgão participante, a possibilidade de SRP através da dispensa e da inexigibilidade de licitação e sobre o remanejamento das quantidades registradas na ARP.
Buscou-se discutir também sobre a ultratividade da norma e a possibilidade de uso de atas de registro de preços assinadas durante o período de transição estipulado pela Lei nº 14.133/21, notadamente após a publicação da Medida Provisória nº 1.167/2023, para contratações que ultrapassem a data de 30 de dezembro de 2023, data limite para revogação das Leis nº 8.666/93, nº 10.520/2002 e de grande parte da Lei nº 12.462/2011.
A ideia central foi no sentido de suscitar novos debates e criar novas perspectivas em um panorama flexível trazido pela nova lei de licitações e contratos. É imprescindível que essas questões sejam refletidas, tanto pela doutrina como também pela jurisprudência pátria, para criar novos entendimentos capazes de solucionar, principalmente, as demandas e os dilemas vivenciados, diariamente, pelos agentes públicos, nesse desafio de aplicação e implementação da Lei nº 14.133/21.
REFERÊNCIAS:
CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
FORTINI, Cristiana; CAMARÃO. Tatiana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021. IN. FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO. Tatiana (Coord). Belo Horizonte: Fórum, 2022
MARINELA, Fernanda. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Licitações e Contratos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021.
TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 11ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2020.
TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 13ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2022.
TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 14ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2023.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Prorrogação da ata e renovação dos quantitativos fixados na licitação. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/prorrogacao-da-ata-e-renovacao-dos-quantitativos-fixados-na-licitacao/ Acesso em 02.06.2023.
[1] Advogada no Boselli & Loss Advogados Associados. Especialista em Direito Administrativo e Especialista em Licitações e Contratos. Coautora do livro “Licitações e Contratos Administrativos na Lei n º 14.133/21 Aspectos Gerais” – Editora Negócios Públicos, 2022. Palestrante em diversos eventos voltados para a temática de licitações e contratos. Autora de diversos artigos jurídicos, notadamente sobre Contratações públicas em tempos de pandemia da COVID-19 e Nova lei de licitações e contratos, disponíveis em: www.direitosdolicitante.com/artigos.php. Membro da Comissão de Estudos em Licitações e Contratos da OAB/BA. Professora na Pós Graduação em Licitações e Contratos do CERS. Instrutora de treinamentos in company. Perfil @carmen_boaventura no Instagram, onde publica conteúdo voltado para a temática de Licitações e Contratos Administrativos.
[2] Advogado da União. Doutorando em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Membro da Câmara Nacional de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União. Autor de diversas obras jurídicas, destacando: Leis de Licitações Públicas comentadas (14ª ed.); Direito Administrativo (coautor. 12ª ed.); Licitações e Contratos nas Empresas Estatais (coautor. 3ª ed.) e Improbidade Administrativa (coautor. 4ª ed.), todos pela editora JusPodivm.
[3] Os autores mencionam “antiga” entre aspas pois na data da publicação deste artigo, as normas (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e parte da Lei nº 12.462/2011) ainda estão atuais e vigentes.
[4] Neste sentido: TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 11ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2020.
[5] Parecer nº 109/2013/DECOR/CGU/AGU.
[6]FORTINI, Cristiana; CAMARÃO. Tatiana. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021. IN. FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CAMARÃO. Tatiana (Coord). Belo Horizonte: Fórum, 2022. P.210.
[7] TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 13ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2022. P.526.
[8] Art. 84. O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso.
[9] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Prorrogação da ata e renovação dos quantitativos fixados na licitação. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/prorrogacao-da-ata-e-renovacao-dos-quantitativos-fixados-na-licitacao/ Acesso em 02.06.2023.
[10] Os autores destacam que na época da Pandemia da COVID-19 este tema foi abordado pela Medida Provisória n° 951/2020, que perdeu sua eficácia, sem conversão em lei, e posteriormente, resgatado pela Lei n° 14.065/2020. Nestes normativos havia a possibilidade de utilização do SRP através da dispensa ou da inexigibilidade para aquisições de bens e serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia do coronavírus. Sobre este assunto, recomendamos a leitura do artigo: A Lei n° 14.065/2020 e o novo cenário das contratações públicas, disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-lei-n-14-065-2020-e-o-novo-cenario-das-contratacoes-publicas/
[11] Art.191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.
[12] CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 297.
[13] Os autores mencionam a título exemplificativo o encadeamento de atos nesta ordem, haja vista a previsão da Lei nº 14.133/21 sobre a possibilidade de inversão de fases no § 1º do art. 17.
[14] Neste sentido: TORRES. Ronny Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 14ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2023. Também nessa linha: MARINELA, Fernanda. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Licitações e Contratos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021.