Resumo
A contratação por inexigibilidade de licitação, tem se mostrado um desafio recorrente para as entidades do Sistema S, em razão da necessidade de observância a diversos critérios legais, como a notória especialização do contratado – cuja demonstração requer critérios objetivos e robustos –, a complexidade da demanda e a singularidade do objeto. Questionamentos quanto ao correto enquadramento da inexigibilidade são frequentes, sobretudo no que se refere à caracterização da complexidade e da singularidade do objeto. A antiga Lei nº 8.666/1993, em seu artigo 25, inciso II, exigia que os serviços técnicos especializados tivessem natureza singular. Com o advento da Lei nº 14.133/2021, o artigo 74 manteve a possibilidade da contratação direta, embora sem exigir expressamente a singularidade do objeto, o que, por sua vez, ampliou os debates sobre a interpretação e a aplicação do instituto, reafirmando a jurisprudência do TCU a necessidade de o objeto apresentar características que efetivamente inviabilizem a competição. No âmbito do Sistema S, seus regulamentos de contratações preveem no artigo 13, II redação semelhante ao do artigo 74 da Lei 14.133/21, também não mencionando expressamente a necessidade de demonstração da singularidade do objeto. Persistem dúvidas e dificuldades, especialmente quanto à adequada justificativa da escolha do fornecedor, que deve ser fundamentada em critérios técnicos e na confiança objetivamente demonstrada, e à comprovação da compatibilidade dos preços contratados com os valores de mercado, mediante pesquisa abrangente. A contratação de serviços jurídicos por inexigibilidade, em especial, demanda atenção redobrada, dada sua complexidade e frequência. Este artigo tem por objetivo discutir criticamente essa temática, no âmbito do Sistema S, com base na análise do Acórdão nº 1.231/2024 – Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU).
1. Introdução
A inexigibilidade de licitação é um instituto jurídico que, embora amplamente previsto na legislação brasileira, continua gerando controvérsias quanto à sua aplicação prática, especialmente no âmbito das entidades do Sistema S. Essas entidades, embora privadas, gerem recursos públicos de natureza parafiscal, o que atrai a fiscalização dos tribunais de contas e impõe um dever qualificado de observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A contratação direta por inexigibilidade exige que a entidade comprove, de forma robusta, a inviabilidade de competição em razão das características do objeto a ser contratado e da notória especialização do prestador do serviço, cuja aferição demanda uma análise criteriosa de elementos objetivos que a sustentem. No entanto, a interpretação desses requisitos – especialmente da “notória especialização” e da “singularidade do objeto” – tem sido objeto de debate doutrinário e jurisprudencial, agravado pelas alterações promovidas com a revogação da Lei nº 8.666/1993 e a entrada em vigor da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021). Embora as entidades do Sistema S possuam a prerrogativa de seguir regulamentos próprios de contratação, é notório o entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) quanto à necessidade de tais regulamentos estarem aderentes às normas gerais de licitações.
Apesar de a nova legislação ter suprimido a exigência expressa da natureza singular do objeto, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta para a necessidade de justificar com rigor técnico tanto a escolha do contratado quanto o objeto da contratação. A contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade ilustra bem esse cenário: trata-se de uma hipótese legalmente prevista, mas que impõe ao gestor o dever de justificar a escolha com base em critérios objetivos e documentação adequada, especialmente quando já existe corpo jurídico interno capacitado para atender à demanda.
Neste contexto, o presente artigo propõe-se a analisar criticamente a contratação de serviços jurídicos por inexigibilidade no âmbito do Sistema S, à luz da jurisprudência recente do TCU, com destaque para o Acórdão nº 1.231/2024 – Plenário. A partir da leitura desse julgado, será possível compreender os fundamentos exigidos para a regularidade dessas contratações, identificar as falhas mais recorrentes e sugerir boas práticas que possam orientar gestores e assessores jurídicos na adoção de critérios técnicos e jurídicos mais seguros.
2. A Inexigibilidade de Licitação: Fundamentos Jurídicos
A contratação direta configura-se como instrumento excepcional, pois se afasta da regra geral segundo a qual as contratações públicas devem, obrigatoriamente, ser precedidas de licitação. Como leciona José dos Santos Carvalho Filho, “a contratação direta se configura como instrumento de exceção, porquanto foge à regra geral das contratações, para as quais se faz necessário realizar o procedimento prévio da licitação, com a finalidade de selecionar aquele que apresentar a melhor proposta para a Administração”[1].
Dentro do gênero “contratação direta”, destacam-se duas espécies: a dispensa e a inexigibilidade de licitação. A dispensa é cabível em hipóteses legalmente taxativas, elencadas no artigo 72 da Lei nº 14.133/2021 e no artigo 12 do Regulamento de Contratações das Entidades do Sistema S. Já a inexigibilidade, por envolver situações nas quais a competição é inviável, tem previsão em rol exemplificativo – o que confere maior flexibilidade interpretativa – conforme o artigo 74 da nova Lei de Licitações e o artigo 13 do mesmo regulamento das entidades do Sistema S.
A inexigibilidade de licitação se caracteriza, portanto, pela inviabilidade de competição. Segundo Julieta Mendes Lopes[2], essa inviabilidade decorre, essencialmente, da inexistência de pluralidade de sujeitos aptos à contratação ou da impossibilidade de comparação objetiva entre propostas, quando os bens ou serviços apresentam características tão singulares que inviabilizam critérios isonômicos de julgamento.
O artigo 13 do Regulamento de Contratações das entidades do Sistema S[3] exemplifica as hipóteses em que é possível a contratação por inexigibilidade, sendo uma delas a contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização. Entre os exemplos estão estudos técnicos, auditorias, consultorias, treinamentos e outras atividades elencadas no regulamento específico da entidade.
Entre as contratações que mais suscitam debate está a de serviços advocatícios, especialmente no contexto das entidades do Sistema S.
A transição do regime jurídico da revogada Lei nº 8.666/1993 para a atual Lei nº 14.133/2021 promoveu alterações significativas na disciplina da contratação direta, em especial no tocante à inexigibilidade de licitação. Embora ambas as normas reconheçam a impossibilidade de competição como fundamento para a contratação direta, há mudanças relevantes tanto na estrutura normativa quanto na terminologia e nos requisitos exigidos.
Pela sistemática da antiga Lei de Licitações, a inexigibilidade estava disciplinada no artigo 25, inciso II, que condicionava sua aplicação à contratação de “serviços técnicos profissionais especializados”, desde que de natureza singular e com profissionais ou empresas de notória especialização. A natureza singular do objeto era, portanto, requisito expresso e cumulativo à notória especialização, o que gerava intenso debate interpretativo, especialmente sobre o grau de subjetividade envolvido nessa qualificação.
Neste sentido, é o entendimento do TCU:
Licitação. lnexigibilidade de licitação. Serviços advocatícios. Empresa estatal. Requisito. ENUNCIADO. A contratação direta de escritório de advocacia por empresa estatal encontra amparo no art. 30, inciso li, alínea “e”, da Lei 13.303/2016, desde que presentes os requisitos concernentes à especialidade e à singularidade do serviço, aliados à notória especialização do contratado. (Boletim de Jurisprudência 332/2020 – Acórdão 2761/2020-TCU-Plenário (Representação, Relator Ministro Raimundo Carreiro)
A nova Lei nº 14.133/2021, por sua vez, manteve a possibilidade de contratação direta por inexigibilidade nos casos de inviabilidade de competição, mas promoveu alterações importantes. O artigo 74 deixou de exigir a demonstração da “natureza singular” do objeto, passando a exigir apenas que o serviço contratado seja técnico especializado, de natureza predominantemente intelectual, executado por profissional ou empresa de notória especialização. Essa mudança objetiva conferir maior clareza e flexibilidade ao gestor público, reduzindo a carga subjetiva de interpretação e o risco de autuações excessivamente formais por parte dos órgãos de controle.
Para as entidades do Sistema S, essa alteração na lei geral é particularmente relevante. Embora seus regulamentos próprios de contratação nem sempre tenham espelhado a exigência textual de ‘natureza singular’ contida na revogada Lei nº 8.666/1993, a interpretação e a prática administrativa frequentemente se alinhavam aos princípios da legislação federal e à consolidada jurisprudência dos órgãos de controle, que valorizavam tal critério para a inexigibilidade. Dessa forma, a supressão da menção expressa à singularidade do objeto na Lei nº 14.133/2021 impõe uma reflexão sobre como o Sistema S deve agora fundamentar a inviabilidade de competição nessas contratações.
Neste sentido, importante reflexão cabe quanto à conclusão do Parecer nº. 00001/2023/CNLCA/CGU/AGU sobre a temática:
a) Para a contratação por inexigibilidade de licitação dos serviços técnicos especializados listados no art. 74, III, da Lei nº 14.133, de 2021, deve a Administração comprovar (i) tratar-se de serviço de natureza predominantemente intelectual, (ii) realizado por profissionais ou empresas de notória especialização; e que (iii) a realização da licitação será inadequada para obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração.
b) A comprovação da notória especialização do profissional ou da empresa não decorre de um juízo subjetivo do administrador público, mas do reconhecimento do profissional ou da empresa, dentro do campo em que atua, como apto a prestar, com excelência, o serviço pretendido.
c) A notoriedade, de acordo com a Lei nº 14.133, de 2021, pode ser comprovada de diversas maneiras, como, por exemplo, desempenho anterior de serviço idêntico ou similar ao almejado pela Administração, publicações em periódicos de elevada qualificação acadêmica, reconhecimento do alto nível da equipe técnica que presta o serviço.
d) Além da notória especialização, deve a Administração demonstrar que os preços são adequados à realidade do mercado segundo os critérios de pesquisa de preços determinados pela legislação.
e) Ao administrador público cabe o dever de motivar sua decisão na comprovação da confiança que tem no prestador de serviço por ela escolhido.
f) Em relação ao ponto principal, acerca da não previsão da comprovação da natureza singular do serviço a ser prestado pela empresa ou profissional de notória especialização, pelas razões elencadas neste parecer, manifestamo-nos pela desnecessidade de sua comprovação para a contratação por inexigibilidade de licitação, desde que o administrador adote as cautelas elencadas nas letras “a” a “e” deste item 54 do parecer, de forma que a motivação de seus atos conste expressamente nos autos do procedimento administrativo.
Portanto, a retirada da exigência formal de singularidade não implicou, na prática, uma ampliação indiscriminada das hipóteses de inexigibilidade. Conforme tem reiterado o Tribunal de Contas da União (TCU), mesmo sem a exigência legal expressa, continua sendo indispensável demonstrar que o objeto a ser contratado possui características diferenciadas e que a seleção do prestador não pode se dar por meio de critérios objetivos, em razão da sua complexidade ou da especificidade da solução requerida.
A mudança de paradigma legislativo sinaliza uma tentativa de modernizar e desburocratizar o procedimento, ao mesmo tempo em que reforça a responsabilidade do gestor quanto à fundamentação da contratação. A interpretação atual deve ser orientada pelo princípio da motivação qualificada, exigindo que a inviabilidade de competição, a adequação da proposta ao interesse público e a notória especialização estejam amplamente demonstradas e documentadas nos autos.
Na prática, a exigência de justificativas robustas persiste. A jurisprudência do TCU tem sinalizado que a supressão da “singularidade” como requisito formal não elimina a necessidade de o objeto contratado apresentar especificidades técnicas que justifiquem a contratação direta, sob pena de se promover verdadeira burla ao dever de licitar. O foco, portanto, desloca-se da expressão literal da lei para o exame substancial dos fundamentos da contratação.
3. Elementos essenciais: inviabilidade de competição, notória especialização, objeto técnico especializado
A inexigibilidade de licitação, conforme previsto no artigo 74 da Lei nº 14.133/2021, exige a demonstração de três elementos fundamentais: a inviabilidade de competição, a notória especialização do contratado e a natureza técnica intelectual especializada do objeto. No mesmo sentido é o artigo 13 dos Regulamentos de Contratações das entidades do Sistema S[4]. Esses requisitos, embora não descritos como cumulativos de forma expressa, são reiteradamente considerados em conjunto pelos órgãos de controle, em especial pelo Tribunal de Contas da União (TCU), para aferição da legalidade da contratação direta.
A notória especialização definido na Lei de Licitações como a qualidade do profissional ou empresa que, com base em desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, infraestrutura, equipe técnica ou outros fatores, demonstra ser essencial para a plena satisfação do contrato. Essa notoriedade, pode ser comprovada de diversas maneiras, como, por exemplo, pelo desempenho anterior em serviço idêntico ou similar ao almejado pela entidade, por publicações em periódicos de elevada qualificação acadêmica ou pelo reconhecimento do alto nível da equipe técnica que presta o serviço. Essa formulação substitui, na prática, o antigo requisito da “natureza singular” do serviço, conferindo maior ênfase à qualificação do contratado em relação direta com o objeto pretendido.
Nos regulamentos de contratação das entidades do sistema S, similar conceito está previsto no § 2º, do artigo 13[5], que considera notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência,3 publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do4 contrato.
Do ponto de vista doutrinário, a eliminação da exigência expressa de singularidade não afasta a necessidade de um exame rigoroso quanto à especialização do prestador e às características específicas do serviço. Para José dos Santos Carvalho Filho[6], a retirada da singularidade “pode ter gerado mais incertezas do que clareza”, pois transfere ao gestor o ônus de justificar de forma ainda mais individualizada a pertinência da contratação direta. Consolidou-se também na doutrina o entendimento de que a notória especialização se manifesta, essencialmente, em trabalhos que possuem qualidades intrínsecas ou contornos que os tornam individualizados, diferenciando-os de forma substancial dos demais ofertados no mercado e das atividades rotineiras.
Essa linha de raciocínio é corroborada pela jurisprudência do TCU. No Acórdão nº 1231/2024 – Plenário, o Tribunal rejeitou as justificativas apresentadas para uma contratação direta por inexigibilidade, por entender que “não houve a demonstração inequívoca do requisito da singularidade do objeto” e que o serviço contratado, ainda que envolvesse conhecimentos jurídicos, não se qualificava como atividade privativa da advocacia ou como serviço que exigisse habilidades exclusivas do escritório contratado. O relator enfatizou que “a ausência de documentação comprobatória que detalhasse o objeto, as entregas previstas e os critérios para avaliação da prestação” comprometeu a validade da contratação e revelou falha substancial na fundamentação do processo.
O mesmo acórdão destacou ainda que a notória especialização não pode ser presumida com base na reputação geral do escritório ou de seus integrantes, devendo estar “materialmente demonstrada por documentos que evidenciem experiência específica no objeto a ser contratado, estudos realizados, casos semelhantes já atendidos e publicações técnicas que sustentem a escolha”.
Dessa forma, para que se configure hipótese legítima de inexigibilidade, é indispensável que o objeto contratado não possa ser comparado com outras propostas por ausência de critérios objetivos de julgamento, e que o prestador demonstre efetiva capacidade técnica para atender, de forma diferenciada, à necessidade específica da entidade contratante. A contratação de serviços comuns ou genéricos sob a justificativa de notória especialização desvirtua o instituto e viola os princípios da economicidade, isonomia e impessoalidade.
Portanto, a aplicação segura da inexigibilidade exige do gestor não apenas o domínio do marco legal, mas também um exercício crítico de análise da complexidade do objeto e da adequação do contratado, devidamente comprovados nos autos do processo de contratação.
3. Notória Especialização e Singularidade do Objeto
A contratação de serviços técnicos profissionais especializados, especialmente serviços jurídicos, por inexigibilidade de licitação, envolve questões relevantes de ordem técnica e jurídica. Apesar de a Lei nº 14.133/2021 ter suprimido expressamente a exigência de “natureza singular” do objeto e o Regulamento de Contratações das entidades do Sistema S não prever, o entendimento consolidado do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta para a necessidade de se comprovar a existência de características especiais no objeto e a notória especialização do contratado como requisitos cumulativos e indispensáveis para a legalidade da contratação direta.
A Lei nº 14.039/2020, que alterou o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994), reafirma essa concepção. Em seu artigo 3º-A, estabelece que os serviços prestados por advogados são, por sua natureza, técnicos e singulares, desde que seja comprovada a notória especialização do profissional ou sociedade contratada. O parágrafo único do mesmo dispositivo adota critério semelhante ao da nova Lei de Licitações para conceituar a notória especialização, reafirmando o caráter técnico, específico e relevante da contratação.
A ausência literal da “natureza singular” do objeto gerou a interpretação, por alguns setores, de que bastaria a notória especialização do prestador de serviço para legitimar a contratação direta, especialmente em se tratando de serviços advocatícios.
Contudo, essa compreensão tem sido contestada por órgãos de controle, como o TCU, que reforçam que a ausência de previsão expressa não elimina a exigência de análise substancial do objeto contratado. Assim, mesmo diante da nova redação legal, permanece a obrigação de demonstrar que o serviço pretendido possui especificidades técnicas que tornam inviável a competição.
Além da interpretação doutrinária sobre os contornos da notória especialização, a escolha do prestador por inexigibilidade impõe ao gestor o dever de motivar a confiança nele depositada. Alinhada à Súmula 39 do TCU – que se refere à ‘seleção do executor de confiança’ –, tal confiança deve ser construída sobre a notória especialização e a capacidade efetivamente demonstrada e documentada pelo profissional ou empresa para atender às necessidades específicas e complexas da entidade. Essa abordagem reforça que, mesmo sem a menção legal expressa à ‘natureza singular’, a justificativa para a escolha do contratado deve evidenciar uma adequação única e particular ao objeto, demonstrada de forma substancial.
O TCU tem reiteradamente reafirmado que não basta a notoriedade genérica do prestador. É imprescindível que o objeto do contrato possua características diferenciadas, que justifiquem a inexigibilidade e a inviabilidade de competição. Essa orientação encontra eco em deliberações anteriores, mesmo tratando de contextos correlatos, como o Acórdão 2761/2020-TCU-Plenário (Boletim de Jurisprudência 332/2020), relatado pelo Ministro Raimundo Carreiro, que, ao analisar a contratação direta de escritório de advocacia por empresa estatal sob a égide da Lei 13.303/2016 (art. 30, inciso II, alínea “e”), reforçou a necessidade da presença dos requisitos de especialidade e singularidade do serviço, aliados à notória especialização do contratado. Tal posicionamento sublinha a constância do Tribunal na exigência desses pressupostos para a contratação direta de serviços jurídicos. No Acórdão nº 3370/2022 – Segunda Câmara, o Tribunal assentou:
“A contratação por inexigibilidade sem a devida demonstração de que o objeto possui características diferenciadas ou especiais que justifiquem a não realização de licitação e demandem atuação de profissionais com notória especialização do contratante afronta o art. 3º-A da Lei 14.039/2020, o art. 25 da Lei 8.666/1993 e a jurisprudência do5 TCU (Súmulas 39 e 252).”
O mesmo acórdão esclarece que a nova Lei de Licitações (art. 74) apenas deixou de exigir formalmente a “natureza singular”, mas não afastou a necessidade de demonstrar que o objeto contratado não é comum ou rotineiro, mas sim de complexidade tal que justifique a escolha específica de um prestador notoriamente especializado:
“É imperioso comprovar que o objeto possui características diferenciadas ou especiais que justifiquem a não realização da licitação. Ou seja, é preciso demonstrar que o objeto não é corriqueiro e que, portanto, exigiria a assessoria jurídica notoriamente especializada.”
O entendimento do TCU é ainda reforçado pela jurisprudência anterior à nova lei, especialmente pelas Súmulas 39 e 252:
• Súmula 39: “A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação.”
• Súmula 252: “A inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado.”
O Acórdão nº 1231/2024 – Plenário, ao julgar a contratação direta de um escritório jurídico para implementar programa de integridade, por entidade do Sistema S, reiterou que, mesmo diante da revogação da antiga lei, a contratação por inexigibilidade requer a demonstração inequívoca do vínculo entre a notória especialização e o objeto específico da contratação. No caso concreto, o Tribunal apontou a ausência de elementos que comprovassem a especialidade do escritório na temática do contrato, bem como a insuficiência documental para justificar a contratação direta.
Diante disso, resta evidente que, mesmo com a evolução legislativa, a lógica de análise da contratação direta permanece exigente, sendo imprescindível a comprovação do nexo técnico entre o prestador escolhido, sua experiência comprovada e as especificidades do objeto contratado. A fragilidade nesse tripé tem levado o TCU a impor sanções e a determinar a devolução de valores pagos indevidamente.
4. As Particularidades do Sistema S
As entidades do Sistema S, embora revestidas de natureza privada, atuam sob regime jurídico híbrido em razão da destinação de recursos públicos parafiscais arrecadados compulsoriamente. Essa condição especial tem implicações diretas na forma de contratação de bens e serviços, pois impõe o dever de observância a princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública, notadamente os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (CF, art. 37, caput).
Conforme reconhece o Tribunal de Contas da União no Acórdão 1231/2024, o controle das contratações realizadas pelas entidades do Sistema S deve considerar tanto a sua autonomia regulatória quanto o interesse público envolvido na gestão dos recursos arrecadados compulsoriamente:
“Ainda que as entidades do Sistema S não integrem formalmente a Administração Pública, submetem-se à fiscalização do TCU por força da natureza pública dos recursos que administram.”
A decisão do TCU reforça a expectativa de que as entidades do Sistema S mantenham padrões elevados de governança e controle nos processos de contratação. No caso julgado, a ausência de justificativas adequadas, tanto para a escolha do escritório contratado quanto para o valor pactuado, foi considerada uma violação aos princípios da legalidade e da publicidade:
“A contratação por inexigibilidade […] sem a demonstração clara e objetiva do objeto, de suas entregas, dos critérios de avaliação e dos fundamentos que justifiquem a escolha, viola os princípios constitucionais aplicáveis à gestão pública.”
Esse entendimento consolida a posição de que o regulamento próprio das entidades não afasta a incidência dos princípios constitucionais quando há gestão de recursos públicos, exigindo, portanto, um nível elevado de formalização, motivação e transparência.
Embora possuam regulamentos próprios – como o Regulamento Contratações do Sistema S – as entidades não estão imunes à atuação fiscalizadora do TCU. O acórdão em análise deixou claro que a existência de normativos internos não exime os gestores da responsabilidade por irregularidades apuradas no uso dos recursos:
“A contratação analisada, ainda que amparada formalmente em regulamento interno, apresentou falhas materiais que comprometem a legalidade e a economicidade, razão pela qual se impõe a responsabilização dos gestores.”
Tal constatação evidencia a necessidade de alinhamento entre os regulamentos internos e as exigências substantivas estabelecidas pela jurisprudência dos órgãos de controle, especialmente quanto à formalização da inexigibilidade.
5. A Contratação de Serviços Jurídicos por Inexigibilidade
A contratação de serviços advocatícios com fundamento na inexigibilidade de licitação é juridicamente admissível, mas requer fundamentação robusta. Apesar de o artigo 74 da Lei nº 14.133/2021 e o artigo 3º-A da Lei nº 8.906/1994 (com redação dada pela Lei nº 14.039/2020) reconhecerem a natureza técnica e singular dos serviços jurídicos, a jurisprudência do TCU ressalta que essa qualificação não é automática.
O Acórdão 1231/2024 – Plenário analisou a contratação de um escritório de advocacia por entidade do Sistema S, com a justificativa de implementação de um programa de integridade institucional. O contrato foi celebrado por inexigibilidade de licitação.
O TCU entendeu que a contratação não apresentou documentação mínima capaz de comprovar a vinculação entre a notória especialização do contratado e o objeto do serviço. Além disso, não foram descritas as entregas previstas nem os critérios objetivos de avaliação, o que comprometeu a legalidade da inexigibilidade:
“Não houve a demonstração inequívoca do requisito da singularidade do objeto, tampouco de sua relação com a suposta especialização do contratado, o que torna irregular a contratação direta.”
Para as entidades do Sistema S, esse julgado evidencia a necessidade de observar rigorosamente os seguintes elementos:
• Descrição detalhada do objeto e das entregas;
• Justificativa da necessidade do serviço, inclusive diante da existência de corpo jurídico interno;
• Demonstração de que o escritório possui atuação reconhecida e comprovada em demandas idênticas ou análogas;
• Fundamentação clara para o valor pactuado.
A análise minuciosa do processo que culminou no Acórdão 1231/2024 revelou falhas importantes que podem ser evitadas pelas entidades do Sistema S. As principais irregularidades apuradas foram:
• Ausência de elementos que comprovassem a experiência específica do escritório contratado na área objeto do contrato (programa de integridade);
• Falta de documentação sobre as entregas efetivamente realizadas, apesar dos valores expressivos pagos;
• Ausência do próprio contrato e do processo administrativo de inexigibilidade nos autos encaminhados ao TCU;
• Majoração de 75% do valor original mediante termo aditivo, sem justificativa plausível;
• Fragilidade na justificativa de preços, sem estudo de mercado, orçamentos comparativos ou critérios objetivos. A esse respeito, a Professora Julieta Mendes Lopes (22º Núcleo do Sistema S) ressaltou que, além da notória especialização, a Administração deve demonstrar que os preços são adequados à realidade do mercado, seguindo os critérios de pesquisa de preços determinados pela legislação, uma cautela que se mostrou ausente no caso analisado.
O TCU não apenas rejeitou as justificativas apresentadas como também aplicou multas aos responsáveis, destacando que a contratação violou os princípios da legalidade, da publicidade e da eficiência na gestão dos recursos públicos:
“A contratação sem base documental idônea compromete a rastreabilidade e o controle dos recursos, além de inviabilizar a aferição da economicidade e da vantajosidade do ajuste firmado.”
Os embargos de declaração opostos ao Acórdão 1231/2024 foram rejeitados em sua maioria no Acórdão 962/2025 – Plenário. As defesas alegaram obscuridade quanto à cronologia dos documentos, à justificativa do valor e à competência técnica do escritório contratado.
Entretanto, o TCU manteve o entendimento de que a contratação não observou os parâmetros mínimos exigidos. Em relação à ausência da “natureza singular”, o Tribunal foi enfático:
“Ainda que a nova Lei de Licitações tenha deixado de exigir a ‘natureza singular’ do objeto, permanece imprescindível demonstrar que o serviço contratado possui características diferenciadas, não sendo suficiente a reputação genérica do contratado.”
O julgamento dos embargos reforça que, mesmo sob o novo regime jurídico, os elementos essenciais da inexigibilidade devem ser tratados com seriedade, sob pena de responsabilização dos gestores.
6. Conclusão
A contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação pelas entidades do Sistema S, embora juridicamente possível, exige cautela e rigor técnico-jurídico. A análise do Acórdão 1231/2024 – TCU e dos embargos julgados no Acórdão 962/2025 revela falhas comuns que podem e devem ser evitadas por meio de processos bem instruídos, com justificativas sólidas e alinhadas às boas práticas de governança.
A eliminação formal da “natureza singular” não flexibilizou, na prática, os critérios de avaliação da contratação direta. Ao contrário, a jurisprudência tem reforçado que a vinculação entre o objeto e a especialização do contratado deve ser demonstrada com profundidade. Além disso, é essencial que haja clareza quanto às entregas contratadas, à motivação da escolha e à compatibilidade do preço, sob pena de responsabilização dos agentes envolvidos. Para tanto, é crucial não apenas a demonstração da especialização e da diferenciação do serviço, mas também, a rigorosa comprovação da adequação dos preços contratados à realidade de mercado.
Dessa forma, o presente artigo buscou contribuir com os profissionais do Sistema S ao oferecer uma análise crítica, orientada por julgados concretos e respaldada na legislação vigente, com o objetivo de promover uma atuação mais segura, eficiente e conforme aos princípios que regem a boa gestão dos recursos públicos.
Referências bibliográficas:
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BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 3370/2022 – Plenário. [Dados adicionais como tipo de processo, relator e data da sessão não informados no texto].
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[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 35ª ed. São Paulo: Atlas. 2021. p. 272.
[2] LOPES. Julieta Mendes. Comentários aos Regulamentos de Licitações e Contratos dos Serviços Sociais Autônomos. 2ª ed. Curitiba: JML. 2024. p. 246.
[3] Art. 14, do Regulamento do SEBRAE.
[4] Art. 14, do Regulamento do Sebrae.
[5] Art. 14, do Regulamento do Sebrae.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Atlas, 2021, 35ª ed. P. 273. Apud, SUNDFELD, Ari Carlos. Licitação, cit, p.45