Um dos assuntos mais comentados nos últimos dias é a licitação pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal para contratação de “empresa especializada em fornecimento de refeições institucionais”. Em outras palavras, contratação de serviços de buffet. O imbróglio se deu em razão não da contratação em si, mas dos itens que compunham a cesta de fornecimento, que inclui, whisky 18 anos, vinhos de safras especiais, lagosta e bacalhau, entre outras iguarias finas.
A repercussão se deu em visto o momento por que passa o País, no qual se busca pela adequada aplicação dos recursos públicos. Por adequada, entenda-se gastos que a um só tempo devem servir para o atendimento das necessidades da sociedade e em tempo adequado, bem como equidade nas escolhas do gestor.
Não é de se estranhar que houvesse muito barulho no momento em que se torna pública uma contratação que envolveria, em valores estimados, gastos da ordem de R$ 1 milhão. Afinal, os itens que compõe o cardápio não são acessíveis para a maioria esmagadora dos brasileiros. Ademais disso, o País atravessa uma das mais graves crises econômicas, inclusive vivenciando, em todas as esferas de governo, contingenciamento de recursos orçamentários, atrasos de pagamentos de salários de servidores e aposentadorias, não pagamento de faturas de fornecedores entre outras dificuldades.
A Corte Suprema, por sua vez, defende a contratação, dando conta de que o Pregão Eletrônico se deu em total consonância com os ditames legais e justifica a contratação em razão de se tratar de serviços a serem prestados não no dia a dia, mas em ocasiões especiais, como eventos com presença de autoridades nacionais e estrangeiras.
Claro que aos olhos (e ouvidos) do cidadão de senso comum, ou seja, aquele indivíduo que não transita na área técnico-juridica, não afeto às normas e procedimentos da Administração Pública, pode soar, a contratação que ora comento, um acinte ao povo brasileiro. E, de fato, boa parte das notícias veiculadas fazem crer que tais itens, lagosta, bacalhau, vinho etc., seriam para consumo do dia a dia da Corte Suprema e apenas para os onze ministros, o que não é verdade.
Diante desse cenário, reputo pertinente trazer alguns esclarecimentos para que o leitor possa melhor avaliar a situação que se coloca.
Em primeiro lugar, a contratação de serviços dessa natureza é useira e vezeira na Administração Pública; e não é de hoje. Por todo o País, há décadas, órgãos do Poder Público, incluído as Estatais, promovem contratação de serviços de buffet para serem servidos em eventos institucionais. A diferença nos dias de hoje é que a publicidade dessas contratações é muito mais abrangente e está muito mais disponível para o conhecimento da sociedade. Digo isso, não para defender ou atacar a decisão do STF pela compra de tais produtos, mas apenas para situar o leitor de que não se trata de uma novidade nos meandros da Administração Pública. Posso sugerir (por que não disponho de dados) que o próprio STF tem realizado esta contratação ano a ano, sendo esta que ora se discute tanto, apenas uma continuação do que já se vinha realizando todo ano.
Em segundo lugar, também é importante destacar que em momento algum se discutiu a legalidade do processo licitatório. Não há, sobre o processo, nenhum indício de mácula ou vício que pudesse ser interpretado como ato antieconômico ou improbo; favorecimento a terceiros ou desvio de recursos públicos. Logo, ao defender a legalidade do processo, o STF, em verdade, pouco diz. A grita se dá em razão do elitismo do gasto público; sobre ser ou não correto, justo com a sociedade, uns poucos funcionários públicos se arvorarem de sua autonomia e autoridade para serem brindados com lagosta e vinhos caros. Em outras palavras, o que está no centro do debate é a razoabilidade da despesa.
As decisões dos agentes públicos podem ser de duas naturezas: vinculadas ou discricionárias. As primeiras são obrigatórias e o agente não pode deixar de praticar o ato. As segundas, decorrem justamente de um juízo pessoal do agente. As decisões discricionárias representam as escolhas pessoais do agente público. Nestas, o agente decide com base em seu juízo de conveniência e senso de oportunidade.
Em razão do modelo constitucional adotado pelo sistema brasileiro, que tem origem nas ideias de Montesquieu, por meio da obra O espírito das leis, de 1748, os Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) são independentes e harmônicos entre si. Significa que nenhum Poder é autorizado invadir o campo de atuação institucional do outro. Uma decisão judicial não pode ser revista por um parlamentar. O chefe do Executivo não pode determinar prisão ou soltura de quem quer que seja.
Essa brevíssima definição é importante considerando que os atos discricionários — aqueles que são tomados com base em juízo pessoal de conveniência e oportunidade — são atos típicos do Poder Executivo. Um juiz, ao sentenciar, não expede um ato discricionário; não decide com a partir da sua ideia de conveniência, mas sim, com base em seu livre convencimento motivado (CF, art. 93, IX c/c CPC/2015, art. 371).
Por tal razão, os atos discricionários não podem sofrer intervenção de outro Poder quanto ao seu mérito, isto é, quanto à escolha do gestor propriamente dita. Tal intervenção representaria violação ao princípio da separação harmônica entre os Poderes.
A decisão do gestor público de comprar ou contratar algo é de natureza discricionária. O gestor, a partir do seu legítimo poder discricionário, é que deve decidir o que em que momento deve realizar uma despesa pública com uma contratação. Não é obrigado a comprar isto ou aquilo; tampouco se vê obrigado a fazê-lo no início do ano ou no final dele.
Todavia, mesmo as decisões discricionárias devem dirigir-se para o melhor atendimento ao interesse público, sob pena de ser considerado ato improbo ou ilegítimo por desvio de finalidade. É dentro desse cenário que deve transitar a discussão sobre se um órgão público pode ou não comprar lagosta com dinheiro público.
A Emenda constitucional no. 19 fez incluir no caput do art. 37 da Constituição de 1988 o princípio da eficiência como um dos balizadores do atuar do agente público. Com ele, muito embora não de forma expressa, veio a reboque, o dever de observância do princípio da razoabilidade. Ambos se constituíram em um importante sistema de freio ao poder discricionário. O primeiro exige que o gestor adote todas as providências necessárias e que esteja à sua disposição para que seja atingido o melhor resultado possível em prol da sociedade; o segundo, exige que o gestor adote a solução ótima para o atingimento do interesse coletivo.
O dever de observância da razoabilidade surge com muito mais força justamente diante do ato discricionário. Não se pode admitir que a lei, ao outorgar ao agente o poder de decidir segundo suas pessoais convicções, o autorizou a tomar medidas que viessem a se afastar do interesse da coletividade. Celso Antônio Bandeira de Mello[1], em lição lapidar, externa que a discricionariedade não é um salvo-conduto para que o administrador público aja de acordo com seus “humores, paixões pessoais e excentricidades”. Anota, o festejado autor que, em função deste princípio, “as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez”, seriam invalidáveis, inclusive pelo Judiciário.
Dito isto e retornando ao caso do STF, o que deve ser observado é se a decisão de contratar, nos moldes especificados, é ou não juridicamente razoável. Matéria veiculada no jornal Valor Econômico[2], de 02/05/2019 dá conta de que a licitação do STF reproduz as especificações e características de contrato semelhante firmado pelo Ministério das Relações Exteriores (que faz o cerimonial da Presidência da República) já analisado e validado pelo Tribunal de Contas da União.
Não se nega que um órgão, qualquer um, que, dentre suas atribuições institucionais, está a de promover intercâmbio técnico entre autoridades nacionais e estrangeiras, que receba as autoridades convidadas em almoços, jantares e coquetéis, servindo comida e bebida de boa qualidade.
Em situação análoga, porém de bem menores proporções, o Tribunal de Contas da União, analisando representação formulada contra pregão eletrônico promovido por duas diretorias da ELETRONORTE (Processo TC 031.324/2008-0 e 031.891/2008-0) entendeu que a contratação de serviços de buffet para servir lanche e coffe break por ocasião de realização de cursos e treinamentos internos para aperfeiçoamento de pessoal, não poderia ser vedado de forma genérica, aduzindo o Relator do processo, Min. Benjamim Zymler, em decisão cautelar, que a contratação pode ser admitida “desde que de forma comedida, respeitando-se os princípios da razoabilidade, moralidade e economicidade”.
No meu particular modo de ver, o problema não está na contratação do serviço em si, mas nos itens que o compõe. Em tempos hodiernos, em que se anota enorme crise financeiras e grande déficit público; num momento em que o Governo Federal vem pedir o esforço e sacrifício de todos para a equalização das contas públicas (vide reforma da previdência), tendo vários Estados da Federação em rota de falência, um órgão público icônico como o STF contratar itens de padrão elevado não me parece atender ao dever de eficiência e razoabilidade.
Itens dessa envergadura, que outrora eram adquiridos como rotina, deveriam ter sido substituídos por outros, nacionais, de qualidade compatível, com redução de gastos, apreço à nossa cultura e coerentes com o momento econômico e social por que passa o País.
Ao que tudo indica, a Suprema Corte brasileira deu andamento ao processo de contratação em tela nos mesmos moldes que já certamente vinha realizando, não se atentando às circunstâncias específicas do atual momento.
A contratação pode ter seguido rigorosamente os ditames legais, com observância da publicidade e critérios objetivos de julgamento. Segundo a reportagem acima destacada, o resultado da licitação alcançou um deságio de mais de 50% em relação ao valor estimado, ou seja, a despesa que previa gastos de R$ 1 milhão, acabou por ser adjudicada por menos de R$ 500 mil, conferindo uma aparência de legalidade e economicidade.
Contudo, no meu sentir, frente ao dever de eficiência e razoabilidade, a contratação exige revisão.
O caso junto ao TCU está sob a relatoria do eminente ministro acima citado, cuja imparcialidade e apuro técnico faz presumir que seu voto estará alinhado aos princípios norteadores da gestão pública.
À conferir.