A CONTRATAÇÃO DE CURSOS DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO SISTEMA EAD, COMO SOLUÇÃO PARA TEMPOS DE PANDEMIA

Resumo
Nunca foi tarefa fácil realizar contratações de cursos e treinamentos, visando aperfeiçoamento de pessoal nos órgãos e entidades da Administração Pública, notadamente, por se tratar de objeto cujas características raramente permite o desenvolvimento de procedimento licitatório. Se tal contratação, no formato tradicional, já exigia muito cuidado na instrução, maior dificuldade é encontrada quando se trata de ações de capacitação no sistema à distância (EAD). Tal dificuldade se verifica em virtude da enorme variação de modelos desse tipo de treinamento e, não raro, trazem uma falsa percepção de que se trata de um produto de prateleira. Neste artigo, procuramos elucidar as características do sistema EAD com o intuito de apresentar a correta solução de enquadramento jurídico e melhor forma de contratação.

Palavras-chave:Treinamento. Licitação. Inexigibilidade. Singularidade. Notória especialização.

Resume
It has never been an easy task to hire courses and trainings, aiming to improve personnel in the bodies and entities of the Public Administration, notably, because it is an object whose characteristics rarely allow the development of a bidding procedure. If such hiring, in the traditional format, already required great care in instruction, greater difficulty is encountered when it comes to training actions in the distance system (EAD). Such difficulty is verified due to the enormous variation of models of this type of training and, often, they bring a false perception that it is a shelf product. In this article, we seek to elucidate the characteristics of the EAD system in order to present the correct solution for the legal framework and the best form of contracting.

Keywords: Training. Bidding. Unenforceability. Singularity. Notorious specialization.

1. Os efeitos da pandemia do COVID 19 na contratação de ações de capacitação. 2. O sistema EAD: uma breve apresentação.  2.1 As variações do ensino no sistema EAD. 3. A contratação de serviços de T&D na legislação e na jurisprudência do TCU. 3.1. O entendimento firmado no TCU. 4. A singularidade nas ações de capacitação no sistema EAD. 5. O enquadramento da notória especialização e a escolha do executor. 5.1. Natureza do ato de escolha do profissional ou empresa. 5.2 A definição da notória especialização deve recair no profissional (docente) ou a empresa? 6. A contratação de serviços de T&D pelas entidades do Sistema S e pelas Estatais. 8. Conclusões.

1 – Os efeitos da pandemia do COVID 19 na contratação de ações de capacitação.

Em artigo antecedente[1] que abordava tema análogo ao presente, discorri sobre o enorme desafio encontrado pelos agentes públicos, empregados das estatais e do Sistema S, que lidam diuturnamente com contratações, ao se depararem com os processos de contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, notadamente em razão da necessidade de conciliar a obrigatoriedade, como regra geral, de licitar (CF, art. 37, XXI) e as peculiaridades inerentes a essa espécie de prestação de serviço, dada a impossibilidade, na imensa e esmagadora maioria dos casos, de se estabelecer critérios objetivos de comparação com as várias alternativas existentes no mercado.

No citado trabalho, deixamos bem consignado, inclusive com apoio na jurisprudência do Tribunal de Contas da União, que a contratação desses serviços deve se dar, por regra, fulcrado na inexigibilidade de licitação, visto tratar-se de serviço técnico especializado, de natureza singular. Somente em alguns raros casos, é que se poderia realizar licitação para tal mister, nas hipóteses em que a comparação entre os possíveis executores admitisse estabelecimento de critérios objetivos de julgamento.

No atual cenário por que passa o País, volta à tona essa problemática com outra roupagem, visto que, em razão das medidas de contenção da contaminação do vírus conhecido como SARS-COV-2, e as regras de isolamento social ainda em vigor (e parece que irão perdurar por ainda muito tempo), somente os órgãos da Administração Pública que prestam serviços essenciais estão trabalhando a todo vapor. Os demais, ou fecharam as portas ou reduziram drasticamente a sua atividade. Aqueles que estão retornando, o estão fazendo aos poucos. Muitos servidores se encontram em atividade baseada em teletrabalho — home oficce — ou mesmo sem realizar qualquer atividade laboral, por serem, suas atribuições, incompatíveis com o trabalho remoto.

Nada obstante, a necessidade de capacitação e aperfeiçoamento de servidores, empregados públicos e colaboradores do Sistema S permanece. E vou mais longe. Este é o melhor momento para oferecer oportunidade de capacitação. Isto porque, os servidores, em sua maioria, estão com maior disponibilidade de tempo. É bastante cediço que muitos servidores e colaboradores das organizações não conseguem espaço para se afastar de suas funções para se capacitar, dado o volume de trabalho que não pode prescindir da sua atuação direta. Tanto assim, que o mercado de treinamento para a Administração Pública raramente oferece programas com duração superior a 16 horas. Some-se a isso, o fato de que em muitas organizações, a progressão funcional na carreira depende do cumprimento de carga horária mínima anual como pré-requisito, como é o caso, apenas à guisa de exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cuja regulamentação exige do serventuário o cumprimento de, no mínimo, 30 (trinta) horas de capacitação anual para se habilitar à progressão na carreira.

O formato disponível para atender a essa demanda, por óbvio, é o ensino à distância (EAD). Em que pese não se tratar de nenhuma novidade em matéria de sistema educacional, tal formato, até o presente momento, não era muito explorado pelos órgãos e entidades da Administração Pública, que ainda nutriam preferência por cursos presenciais, internos ou externos.

No entanto, considerando as circunstâncias acima descritas, esse modelo passou a ser mais procurado, gerando novas dificuldades quanto ao enquadramento na legislação vigente

As vantagens do ensino à distância são muito significativas, não só em relação ao custo total, considerando diárias e passagens aéreas, como também o menor tempo de disponibilização do servidor na ação de capacitação.

É nesse contexto que passamos a enfrentar as possíveis dificuldades e dúvidas dos setores de capacitação e escolas de governo.

2. O sistema EAD: uma breve apresentação

O ensino à distância, comumente chamado de EAD, é uma alternativa de modelagem de sistema educacional no qual a instituição de ensino, aluno e professor se relacionam remotamente por meio do uso de tecnologia da informação. Sem sombra de dúvida, a evolução tecnológica propiciou a ascensão dessa forma de se disseminar educação.

Surge, em um primeiro momento, para os cursos de graduação e pós-graduação como forma de atender a um público alvo muito específico, que eram as pessoas que não dispunham de tempo para se formar presencialmente ou cujo domicílio não contava com instituição de ensino tradicional.

O EAD, tem por principal característica, a flexibilidade, pois o aluno pode realizar as tarefas nos horários e dias que lhe forem mais convenientes. Além dessa vantagem, o custo da educação tende a ser muito menor. Isto porque, as instituições de ensino não precisam manter grandes estruturas físicas para comportar um corpo discente volumoso. A maior capilaridade do ensino propicia, para as instituições de ensino, notadamente, as privadas, um ganho de economia de escala bastante considerável, na medida em que, com pouca estrutura, consegue atrair muitos mais alunos (leia-se, portanto, mensalidades) do que seria possível em um prédio com várias salas de aula.

A criação de um curso em EAD tem as mesmas características do formato tradicional. Há uma equipe ou um responsável pela criação do conteúdo. O responsável pelo curso é chamado de professor-conteudista. Ele é o elemento intelectual do curso, pois é quem cria todo o conteúdo que será ministrado, ou coordena a equipe do corpo docente, quando envolvida mais de uma disciplina.

2.1 – As variações do ensino no sistema EAD

Esse sistema permite um grande número de variações de modelos de ensino. Tudo depende das ferramentas de tecnologia da informação disponíveis, sendo que, atualmente, há em funcionamento no País uma infinidade de plataformas, além de ser possível a instituição de ensino customizá-las segundo seu particular interesse.

A formação pode ser exclusivamente on line ou ser semipresencial.

No primeiro, podem ser aulas gravadas e exercícios e avaliações com base em questões objetivas de múltipla escolha. Pode também ser inserida participação em fóruns virtuais, no qual os alunos são conduzidos pelo professor-tutor em atividades e também servem para esclarecimentos de dúvidas e correção de trabalhos apresentados. Também pode ser baseado em aulas “ao vivo”, mas esse modelo é muito pouco utilizado uma vez que retira a vantagem da flexibilidade de horário. Entretanto, a aula “ao vivo” (live ou teleconferência), torna menos impessoal a relação professor-aluno, o que pode elevar o nível de aprendizado.

No caso da formação semipresencial, o sistema é construído para mesclar as aulas gravadas ou ao vivo com aulas expositivas-dialogadas presenciais. Neste caso, as aulas presenciais são previamente agendadas de maneira que o aluno possa se mobilizar para a ela ter acesso.

Todas essas variações podem ser desenvolvidas em ambiente corporativo, seja com a concessão de ‘acessos’ como também a reunião em turmas virtuais. Há muitas ferramentas que permitem que várias pessoas, em locais distintos, estejam, ao mesmo tempo, participando do evento.

3 – A contratação de serviços de T&D na legislação e na jurisprudência do TCU

Nada obstante ser a regra geral na administração pública (também estatais e Sistema S) celebrar contratos de qualquer natureza por meio de licitação prévia, como corolário constitucional, a própria Constituição da República e a legislação correlata admitem exceções. Uma delas, é quando se mostra inviável a competição. Essa impossibilidade sempre decorre do próprio objeto, seja porque único, como nos casos de produto exclusivo[2], seja porque, mesmo não sendo exclusivo, se mostra inconciliável com a ideia de comparação objetiva de propostas. E nessa essa última em que justamente se amolda a hipótese ora em exame. Vejamos o que diz a legislação:

Art. 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

Art. 13 – Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
[…] VI – treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;

A singularidade é o elemento que torna o serviço peculiar, especial e incompossível de ser submetido à competição. Não será suficiente que o serviço esteja descrito no art. 13, pois, de per si, não o faz especial (singular). Deve haver, na execução ou em suas características intrínsecas, algo que o torne inusitado.

Não se pode confundir singularidade com exclusividade, ineditismo ou mesmo raridade. Se fosse único ou inédito, seria caso de inexigibilidade por ausência de contendores, fulcrada no caput do art. 25, e não pela natureza singular do serviço. O fato de o objeto ser prestado por poucos profissionais ou empresas não impede que estes disputem o objeto. Logo, o fato de haver muitos ou poucos profissionais aptos a executarem o serviço é indiferente para a configuração da singularidade. A inviabilidade de competição decorre, invariavelmente, do objeto. Aliás, sobre a confusão sobre a singularidade e a existência de vários possíveis executores, veja-se a posição do Tribunal de contas da União:

Nas contratações diretas por inexigibilidade de licitação, o conceito de singularidade não pode ser confundido com a ideia de unicidade, exclusividade, ineditismo ou raridade. O fato de o objeto poder ser executado por outros profissionais ou empresas não impede a contratação direta amparada no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993. A inexigibilidade, amparada nesse dispositivo legal, decorre da impossibilidade de se fixar critérios objetivos de julgamento. (Ac. 2.616/2015, Plenário, Rel. Benjamim Zymler)

Enfim, a caracterização da singularidade do objeto dependerá exclusivamente do exame daquele elemento central que materializa a própria execução. Em trabalho recentemente publicado[3] deixei consignado qual é esse elemento, verbis:

O serviço é singular quando seu resultado não é previsível ou é incerto; quando o contratante, apesar de apontar as características do que pretende contratar, não tem como saber exatamente qual será o produto receberá com a conclusão da execução; é o serviço cujo resultado pode variar de executor para executor, ou seja, cada executor entrega coisa diferente do outro.

Quando o serviço não é singular, seu resultado é perfeitamente previsível, ou seja, o contratante sabe exatamente, desde a contratação, o que irá receber das mãos do executor antes mesmo da execução. E por isso mesmo tem total possibilidade de identificar objetivamente sua inconsistência ou desconformidade com o que se contratou. Ao mesmo tempo, e justamente porque já sabe qual será o resultado da execução, a comparação entre os vários produtos entregues pelos vários possíveis executores se dá por meio de comparação absolutamente objetiva, permitindo perfeitamente o cotejamento entre as várias possíveis propostas. Cumpre deixar desde já consignado que não se está falando da variabilidade da forma de execução (metodologia), mas do resultado em si.

Portanto, se o resultado da execução não for previsível, objeto deverá ser considerado singular.

Nos serviços de treinamento, a execução se materializa com as aulas. É por meio desta ação que o professor/instrutor/corpo docente, realiza o objeto. Não, pois, o seu resultado, mas, repita-se, é o meio por meio do qual o resultado da execução será atingido. No caso do serviço de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, o resultado é o nível aprendizado a ser obtido pelos alunos. Pergunta-se: é possível prever o nível de aprendizado antes que as aulas sejam ministradas? Claro que não. E a razão é simples.

Cada professor, fazendo uso da metodologia diadático-pedagógica, utilizando os recursos instrucionais e realizando o conteúdo programático, aplica técnica própria, o que torna variável o resultado (aprendizado) da execução. Esse resultado depende da forma de lidar com grupos, empatia, experiências pessoais, seu ritmo e tom de voz. Técnicas, inclusive, que se acham em constante evolução. Mas não só o professor interfere na imprevisibilidade do resultado. Também o público-alvo (alunos). Isto porque, as turmas são heterogêneas. Formação acadêmica, experiências, capacidade de apreensão de informações, tudo isso varia de pessoa para pessoa.

Logo, a conclusão inexorável é que o resultado da execução dos serviços de T&D são imprevisíveis, o que o caracteriza como de natureza singular. Não é possível sequer imaginar qual será o nível de aprendizado obtido ao final de uma ação de capacitação.

Não há como negar que cada aula (cada serviço) é, em si, singular, inusitado, peculiar. Nesse diapasão, vale transcrever excerto do Acórdão 439/1998-Plenário, que será melhor abordado mais adiante, citando lição de Ivan Barbosa Rigolin, em artigo publicado ainda sob a vigência do Decreto-Lei 2.300/86:

“O mestre Ivan Barbosa Rigolin, ao discorrer sobre o enquadramento legal de natureza singular empregado pela legislação ao treinamento e aperfeiçoamento de pessoal (…) defendia que: ‘A metodologia empregada, o sistema pedagógico, o material e os recursos didáticos, os diferentes instrutores, o enfoque das matérias, a preocupação ideológica, assim como todas as demais questões fundamentais, relacionadas com a prestação final do serviço e com os seus resultados – que são o que afinal importa obter -, nada disso pode ser predeterminado ou adrede escolhido pela Administração contratante. Aí reside a marca inconfundível do autor dos serviços de natureza singular, que não executa projeto prévio e conhecido de todos mas desenvolve técnica apenas sua, que pode inclusive variar a cada novo trabalho, aperfeiçoando-se continuadamente.” (Treinamento de Pessoal – Natureza da Contratação in Boletim de Direito Administrativo – Março de 1993, págs. 176/79)

A exceção ficaria por conta daqueles cursos e treinamentos que têm natureza de adestramento e/ou privilegiem o autodidatismo, e que apresentam como meio principal do alcance do resultado (aprendizado) o método a ser aplicado e/ou material didático. Nesses, a intervenção do professor é acessória, não sendo determinante na obtenção dos resultados esperados. É o que se chama de facilitador.

3.1. O entendimento firmado no TCU

O primeiro enfrentamento de maior destaque junto ao Tribunal de Contas da União está consignado na Decisão 535/1996, provocada por meio de representação interposta pelo Instituto Sezerdello Correa-ISC, Escola de Contas do TCU, na qual o Plenário deliberou autorizar o ISC a promover o procedimento conhecido como credenciamento[4], visando pré-qualificação de professores para contratações futuras, nas vezes em que a escola necessitar, com arrimo no art. 25, caput:

“O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1 – autorizar o Instituto Serzedello Corrêa a proceder ao cadastramento de docentes para ministrarem treinamento/aperfeiçoamento na área-fim do Tribunal; 2 – autorizar o ISC a proceder, sempre que necessário, à contratação direta, por prazo determinado, dos docentes previamente cadastrados e selecionados de acordo com o currículo, dando-se preferência aos professores do local onde será realizado o treinamento/aperfeiçoamento; 3 – autorizar o Instituto a proceder, nos demais casos, a licitações para a contratação de instrutores, realizando, dado o conteúdo didático de cada disciplina, um certame licitatório para cada conjunto de cursos de uma mesma disciplina; 4 – determinar a inclusão da presente Decisão, bem como do Relatório e Voto que a fundamentam, na Ata da Sessão Ordinária realizada nesta data.”

Como se vê do decisum acima transcrito, naquela assentada, o Relator houve por bem distinguir duas espécies de treinamento: a) cursos área-fim; e, b) cursos área-meio. Desse modo restou consignado que os cursos que fossem destinados aos servidores atuantes da área-fim do Tribunal, deveriam ser contratados sem licitação fulcrado no art. 25, II e §1º. c/c art. 13, VI da Lei 8.666/93, por reconhecer, somente a estes treinamentos, a característica da singularidade, bem como a necessidade de serem ministrados por profissionais de notória especialização. Já os cursos destinados à área-meio deveriam ser ordinariamente licitados, segundo o entendimento do relator, em síntese, por não apresentarem nenhuma característica que os torne singular.

Essa divisão em categorias como elemento justificador do afastamento do dever geral de licitar não resolve o impasse. Basta imaginar que o mesmo curso seria ilicitável em um órgão, em virtude de ser-lhe específico de sua área finalística e, em outro, seria cabível a licitação, por ser relativo à atividades auxiliares. Sob essa visão, um treinamento destinado aos médicos e enfermeiras de um hospital público, visando capacitação na triagem e diagnóstico da dengue seria singular a exigir a contratação de notório especialista; mas se o mesmo curso fosse ministrado para os médicos e enfermeiras do Departamento de Saúde, de um Tribunal de Justiça, o curso seria licitável. Já vimos e revimos que a singularidade dos serviços se prende ao próprio objeto. Ora, ou o objeto é singular ou não é. Não é possível imaginar o mesmo treinamento, destinado ao mesmo público alvo, possa ser, ao mesmo tempo, licitável e inexigível.

Posteriormente, a Corte Federal de Contas voltou a enfrentar o problema a partir de denúncia sobre eventuais ilegalidades cometidas pelo TRT da 16ª Região na contratação de cursos para seus servidores nos anos de 1995 e 1996. Na oportunidade, o eminente, Min. Carlos Átila, abandonando a tese da relativização dos cursos em relação à sua área de aplicação, passa a enxergar a questão sob outro ângulo, inclinando-se pela não adoção de procedimento licitatório para contratos dessa natureza, conforme o excerto extraído de seu voto, abaixo transcrito:

“(…)Considero muito pouco razoável fixar, mediante interpretação rígida e estrita da Lei, barreiras convencionais desnecessárias para o trabalho dos administradores dos programas de capacitação dos servidores públicos. Bastam as enormes dificuldades naturais que já se antepõem à sua tarefa – como é o caso, precisamente, da escassa disponibilidade de mestres e instrutores qualificados, experientes, e com boa didática para transmitirem conhecimentos aos treinandos. Assim, tanto para a contratação de professores e instrutores para ministrar aulas em cursos organizados pelo próprio órgão, quanto para pagar a matrícula e participação de servidores em cursos especializados, organizados por terceiros e abertos à inscrição de outros interessados – em ambos os casos – entendo que se caracteriza a inviabilidade de competição prevista no item II do art. 25, combinado com o item VI do art. 13 da Lei das Licitações, sendo assim facultado aos administradores considerar, se assim o entenderem, inexigível o processo de licitaçäo.(…)” (TCU, Decisão 747/1997, Rel. Min. Carlos Álvares da Silva)

Encaminhou seu voto ao Plenário da Corte com a seguinte proposta de decisão:

“(…)8.2. considerar enquadramento na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13, da Lei nº 8.666/93, a contratação de professores, conferencistas ou instrutores, para ministrar aulas em cursos de treinamento, de formação ou de complementação de conhecimentos especializados de servidores, bem como para sua inscrição em cursos abertos a terceiros, destinados ao ensino de matérias especializadas, sempre que não se trate de treinamento baseado em técnicas e métodos padronizados de ensino;(…)”

O Plenário, mesmo não acolhendo a proposta de decisão, deliberou da seguinte forma:

“O Tribunal Pleno, ante as razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. conhecer da denúncia em pauta por atender aos requisitos de admissibilidade previstos no caput do art. 213 do Regimento Interno para, no mérito, considerá-la improcedente; 2. remeter cópia do Relatório e Voto, da Decisão não acolhida, bem como desta Decisão, à SEGECEX, para que, no prazo de até sessenta (60) dias, coordene estudo e apresente conclusões sobre a matéria constante do item 8.2 da Decisão não acolhida, para posterior deliberação do Tribunal;(…)”

A decisão acima gerou estudos que culminaram na Decisão 439/1998, cuja relatoria coube ao Min. Adhemar Paladini Ghisi, e que se tornou um divisor de águas sobre a matéria, tornando-se decisão paradigma, nos seguintes termos:

“O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. considerar que as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para ministrar cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93; 2. retirar o sigilo dos autos e ordenar sua publicação em Ata; e 3. arquivar o presente processo.

Bom frisar que apesar de ter sido proferida há muitos anos, a Decisão 439/1998 ainda continua balizando as decisões da Corte Federal de Contas, como se vê, apenas a título de ilustração, os seguintes precedentes: Acórdão 654/2004 – Segunda Câmara Rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha; Acórdão 1886/2007 – Segunda Câmara Rel. Min. Marcos Bemquerer; Acórdão 1247/2008 – Plenário Rel. Min. Marcos Bemquerer; Acórdão 1762/2011 – Segunda Câmara Rel. Min. Augusto Sherman

4 – A singularidade nas ações de capacitação no sistema EAD

Uma questão atual que se deve levantar é em relação aos cursos no sistema à distância (EAD).

À primeira vista, poder-se-ia imaginar que, pelo fato de ser dependente de recursos de tecnologia da informação e a plataforma ser a mesma para todos os alunos e turmas, teríamos aqui claro exemplo de curso padronizado, portanto, não singular. Isso não é verdade.

Ainda que utilizando recursos tecnológicos padronizados, o que deve ser observado é se o resultado da execução, ou seja, se o nível de aprendizado é previsível.

É inegável que, mesmo no sistema à distância, a execução é predominantemente intelectual. A elaboração do material instrucional e o desenvolvimento do conteúdo são elaborados e orientados pela ótica personalíssima do Professor-Conteudista, o qual possui método de trabalho, visão científica e experiência que lhes são próprios. Do mesmo modo, o ambiente virtual não torna o público alvo homogêneo. Cada aluno ou participante receberá a mesma carga de informações mas a recepcionará também de modo personalíssimo.

Daí porque não se pode deixar de admitir que, sendo o resultado (aprendizado) imprevisível, mesmo no sistema EAD, a contratação de ações de capacitação e desenvolvimento de pessoas é, por regra, de natureza singular.

Essa percepção fica mais clara ainda quando o curso contratado é semipresencial, ou é composto por aulas “ao vivo” ou ainda quando há atividades dirigidas por professor-tutor.

5 – O enquadramento da notória especialização e a escolha do executor

Todavia, para configuração da inviabilidade de competição, não bastará a identificação da singularidade. É imprescindível que o mesmo seja prestado por profissional ou empresa que detenha notória especialização. Somente na presença desse requisito é que a instrução do processo estará regular.[5]

Parece-nos suficiente o texto da lei para dar solução a eventuais impasses, mas a prática tem demonstrado que não é bem assim. À primeira vista, tem-se uma falsa ideia de que notório especialista deva ser amplamente conhecido, quase famoso. Lógico que não. Veja-se o texto legal:

Art. 25 – Omissis

§ 1º – Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Do texto acima transcrito não é possível encontrar nada que chegue perto da ideia de fama ou algo do gênero. Notório especialista é o profissional (ou empresa) que nutre entre seus pares, ou seja, “…no campo de sua especialidade…” a partir do histórico de suas realizações, quer dizer “…decorrente de desempenho anterior…ou de outros requisitos relacionados com suas atividades…” elevado grau de respeitabilidade e admiração, de forma que se “…permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”

O parágrafo sub examine indica o norte de quais peculiaridades ou requisitos são considerados idôneos para aferir se um profissional é ou não notório especialista, a saber: “…desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica…”. Mais ainda. A expressão “…ou de outros…” dá bem o tom de rol exemplificativo desses requisitos. O legislador admite, portanto, que outros conceitos e requisitos, não ditados no texto expresso da lei, podem servir de base à conclusão de que o profissional escolhido é o mais adequado à satisfação do contrato. Nota-se também, que a enumeração dos requisitos é alternativa. Significa que não é obrigatório que estejam todos contemplados na justificativa da escolha, bastando apenas o apontamento de um deles para balizar a escolha. É bom que se diga que essa análise deve estar relacionada com as finalidades do objeto. Para Marçal Justen Filho[6] a notória especialização “dependerá do tipo e das peculiaridades do serviço técnico-científico, assim como da profissão exercitada.” Vamos a um exemplo prático retirado de um caso que me foi trazido em sede de consulta.

5.1 – Natureza do ato de escolha do profissional ou empresa

Ao conceituar “notória especialização”, o dispositivo legal encerra com a expressão “que permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Não restam dúvidas de que essa escolha dependerá de uma análise subjetiva da autoridade competente para celebrar o contrato. Nem poderia ser diferente, pois se a escolha pudesse ser calcada em elementos objetivos a licitação não seria inviável. Ela é impossível justamente porque há impossibilidade de comparação objetiva entre as propostas.

Consequentemente, uma vez que a escolha se dará por meio de uma avaliação subjetiva, ou seja, juízo de valor pessoal de quem detém a competência para realizar a escolha, partir da soma de informações sobre a pessoa do executor (experiências, publicações, desempenho anterior etc), em comparação com esses dados dos demais possíveis executores, nítido está que a escolha é essencialmente discricionária. Será a autoridade competente que, respeitando o leque de princípios a que se submete a atividade administrativa, notadamente, legalidade, impessoalidade, indisponibilidade do interesse público e razoabilidade, e ainda, sopesando as opções à sua disposição, com fulcro em seu juízo de conveniência, indicará aquele que lhe parecer ser o “indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.” Mais uma vez nos socorreremos de excerto do já citado Acórdão 439/98-Plenário, TCU, que traz citação de brilhante lição de Eros Roberto Grau:

“Sobre a prerrogativa da Administração de avaliar a notória especialização do candidato, invocamos novamente os ensinamentos de Eros Roberto Grau, na mesma obra já citada: ‘…Impõem-se à Administração – isto é, ao agente público destinatário dessa atribuição – o dever de inferir qual o profissional ou empresa cujo trabalho é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado àquele objeto. Note-se que embora o texto normativo use o tempo verbal presente (‘é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’), aqui há prognóstico, que não se funda senão no requisito da confiança. Há intensa margem de discricionariedade aqui, ainda que o agente público, no cumprimento daquele dever de inferir, deva considerar atributos de notória especialização do contratado ou contratada.’ (Eros Roberto Grau, in Licitação e Contrato Administrativo – Estudos sobre a Interpretação da Lei, Malheiros, 1995, pág. 77) (grifamos)

Em relação a essa afirmação, no mesmo precedente, encontramos as palavras de Jacoby, in verbis:

“Portanto, cabe ao administrador avaliar se determinado profissional é ou não notório especialista no objeto singular demandado pela entidade, baseando-se, para tal julgamento, no desempenho anterior do candidato e nas demais características previstas no § 1º do art. 25 da Lei de Licitações. Quem, senão o administrador, poderá dizer se determinado instrutor é ‘essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’, (…) Apenas ele, mediante motivação em que relacione as razões da escolha, poderá identificar no professor ou na empresa contratada os requisitos essenciais impostos pelas particularidades do treinamento pretendido. (‘in’ Contratação Direta sem Licitação, Brasília Jurídica, 1ª ed., 1995, pág. 306)(grifo acrescentado)

É idêntica a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello[7], que, com a habitual precisão, esclarece que:

“É natural, pois, que, em situações deste gênero, a eleição do eventual contratado — a ser obrigatoriamente escolhido entre os sujeitos de reconhecida competência na matéria — recaia em profissional ou empresa cujos desempenhos despertem no contratante a convicção de que, para o caso, serão presumivelmente mais indicados do que os de outros, despertando-lhe a confiança de que produzirá a atividade mais adequada para o caso. Há, pois, nisto, também um componente inelimitável por parte de quem contrata.”

Não pode, pois, ser subtraído do próprio alvitre da autoridade, e só a ela competirá, a decisão sobre qual notório especialista deva recair a contratação. O que não se admitirá é que a escolha não seja calcada em argumentos que não se direcionem à conclusão de que o escolhido possui notória especialização, nem tampouco que os argumentos sejam flagrantemente desarrazoados; que a escolha seja pautada por um capricho ou uma preferência meramente pessoal. Entre vários professores, a autoridade poderá, sim, optar pelo que se mostrar, em seu sentir, mais adequado, mesmo que seja autor da proposta mais elevada. Porém, não estará livre de apontar as razões pelas quais reconheceu nele o profissional mais adequado.

5.2 – A definição da notória especialização deve recair no profissional (docente) ou a empresa?

Outro questionamento de ordem prática que é comumente suscitado é o problema de se identificar se é a empresa ou o profissional que detém a notória especialização. Isto porque, não raro as contratações de profissionais (palestrantes, conferencistas e professores) acaba se dando por intermédio de uma sociedade empresária.

Há três tipos de empresa nesse segmento: (i) as empresas dos próprios profissionais (MEI ou escritórios jurídicos); (ii) as empresas de organização de eventos; e, (iii) as organizações que produzem conteúdo intelectual, com objetivo social voltada ao ensino e pesquisa. Nesse último conjunto, há instituições vinculadas ao Poder Público, em geral, fundações, e privadas. E estas últimas, se subdividem entre as que têm e as que não têm fins lucrativos.

No que se refere às empresas ligadas diretamente aos profissionais escolhidos, não há qualquer dificuldade uma vez que, ao contratá-las, se está, em verdade, contratando o próprio profissional, que utiliza de meio contabilmente mais adequado para o exercício de sua profissão. Assim, mesmo contratando um CNPJ o atributo a ser indicado poderá ser de natureza humana (publicações, formação acadêmica, experiências, prêmios etc.).

Já as empresas de treinamento (pessoa jurídica) podem ser consideradas notórias especialistas quando o atributo que conduziu a sua escolha for de natureza organizacional, tais como “aparelhamento, equipe técnica, experiência anterior, publicações”.

Para aquelas que produzem conteúdo intelectual, ou seja, aquelas em que a produção científica esteja em nome da própria pessoa jurídica, não será difícil caracterizar a notória especialização. Nesses casos, a escolha certamente se dará em função da produção técnica ou científica com a assinatura da instituição, ou seja, aquilo que confere notoriedade para a instituição, tais como, cursos reconhecidos nacional ou internacionalmente, anuários, periódicos, relatórios, pesquisas, além daqueles requisitos exemplificados no §1º do art. 25, II, ou seja, “…organização, aparelhamento, equipe técnica…”.

Pode surgir maior dificuldade quando se tratar de empresa de organização de eventos.

Em primeiro lugar é bom que se diga que muito raramente as empresas mantém vínculo permanente com os profissionais (conferencistas, palestrantes). Mesmo porque, muitos possuem vínculo com o Poder Público e, portanto, não poderiam estar vinculados a empresas privadas. Assim, as empresas de treinamento contratam tais profissionais especificamente para o evento a ser realizado (no formato aberto ou in company).

Dito isto, não é qualquer empresa que possui a capacidade de atrair e reter profissionais qualificados em seu corpo de instrutores parceiros, porque bons profissionais, que são muito bem aceitos no mercado, não vão se dedicar a prestar serviço a empresas que remuneram aquém de seu valor de mercado, que atrasam pagamento de honorários, que cancelam eventos próximo de sua realização, que ofertam conteúdo sem o conhecimento prévio do profissional. Somente empresas que têm processos de trabalho altamente profissional é que atraem o interesse dos melhores profissionais do mercado, qualquer que seja a área do conhecimento humano.

Ademais disso, e no caso específico da capacitação no sistema EAD, o atributo do aparelhamento também pode se tornar um diferencial para caracterização da notória especialização. Uma empresa que adote uma plataforma altamente profissional, com vários e excelentes recursos instrucionais certamente prestará um serviço mais qualificado do que a empresa que utiliza programas de vídeo conferência ou de hospedagem de gratuitos disponíveis na internet, sabidamente menos avançados e não customizados.

Assim, mesmo as empresas de organização de eventos podem ser consideradas notórias especialistas, notadamente no atributo equipe técnica e aparelhamento.

Além disso, é possível combinar a notória especialização da empresa e do profissional, pois cada professor/conferencista atua ao lado de mais de uma empresa ou instituição. E é também verdade que, com extrema frequência, os órgãos, na fase interna da contratação, sobretudo, na fase de cotação de preços, acabam por receber propostas de várias empresas, tendo o mesmo profissional como âncora do projeto.

6. A contratação de serviços de T&D pelas entidades do Sistema S e pelas Estatais.

É sabido que as entidades que compõe o Serviço Social Autônomo também estão submetidas ao dever geral de licitar, imposto no art. 37, XXI da Constituição da República. É igualmente sabido que tais entidades, chamadas, pelo conjunto, de Sistema S, possuem regulamento próprio, que é mais simples que a Lei no. 8.666/1993 e, em alguns pontos com ela diverge. Este é o caso da inexigibilidade de licitação. Vejamos como dispõe o Regulamento de Licitações e Contratos do Sistema S, doravante apenas referenciado como Regulamento,  para este instituto[8]:

Art. 10 – É inexigível a licitação, quando for inviável a competição, em especial:

[…]

II – Na contratação de serviços com empresa ou profissional de notória especialização, assim entendido aqueles cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Facilmente se percebe que a norma se distingue da Lei no. 8.666/1993 porquanto não emprega, na definição dessa hipótese de inexigibilidade de licitação duas expressões naquela constante e acima bem examinada, a saber: “serviços técnicos especializados”; e “de natureza singular”.

À primeira vista, por tratar-se de norma especial e própria para as entidades a ela submetidas, poderia ser aplicada interpretação literal para entender que no Sistema S essa hipótese de inexigibilidade dispensaria o enquadramento do serviço como técnico especializado e como singular. Tal interpretação não é correta, sob o pondo vista sistemático, que, em última análise, é seu fundamento de validade.

Em primeiro lugar, veja-se que a Constituição da República impõe o princípio do dever geral de licitar como supedâneo à realização de despesa com compras, obras, serviços e alienações, constituindo ato vinculado. Sendo assim, é a regra mater a ser afastada apenas em sede de exceção dado seu caráter vinculado. Se aplicada interpretação literal ao Regulamento do Sistema S, entender-se-ia tratar-se de uma hipótese discricionária, pois, bastaria que o gestor desejasse contratar um notório especialista, estaria afastado o dever geral de licitar.

Em segundo lugar, porque o inciso se submete ao caput do artigo, e não o contrário. Trata-se de regra comezinha de interpretação sistemática. Ora, veja-se que o caput do art. 10 do Regulamento diz expressamente e com a mesma redação do caput do art. 25 da L. 8.666/1993que a licitação somente será considerada inexigível quando for inviável a competição. Nesse diapasão, os incisos do referido normativo não se aplicam de forma automática, devendo, antes e sobretudo, ser demonstrada a inviabilidade de licitação.

Portanto, não basta que o gestor indique um profissional ou empresa detentora de notória especialização para afastar a licitação. O afastamento somente se dá quando, por alguma característica que lhe é própria o objeto não comportar cotejamento de propostas. E isso já foi bem visitado neste trabalho e naqueles aqui referenciados.

Não por outro motivo, não é de hoje que o Tribunal de Contas da União vem decidindo no sentido que, mesmo diante da ausência de texto expresso no Regulamento, as expressões subtraídas devem conformar o afastamento da licitação. Confira-se:

“(…) 5.2 ao Serviço social do Comércio – Conselho Nacional, para que adote providências a fim de alterar o art. 10, inciso II, da Resolução SESC no. 1.012/2001, a fim de incluir  no Regulamento de Licitações e de Contratos do Sistema SESC a expressão ‘serviços técnicos de natureza singular’, a fim de evitar, portanto, a utilização da notória especialização, com caráter essencialmente subjetivo.” (TCU, Ac. 551/2003, Segunda Câmara.) No mesmo sentido: Ac. 2.843/2003, Primeira Câmara; Ac. 1.664/2004, Primeira Câmara; Ac. 1.357/2005, Segunda Câmara.

Este é o mesmo caso das empresas públicas e sociedade de economia mista, cujo marco regulatório de licitações e contratos foi instituído pela Lei Federal no. 13.303/2016, com a seguinte redação para a hipótese de inexigibilidade de licitação em apreço:

 
Art. 30. A contratação direta será feita quando houver inviabilidade de competição, em especial na hipótese de:

[…]

II – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:
[…]

f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
[…]

§ 1º Considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Aqui, a norma manteve a expressão “serviço técnico especializado, mas desprezou o enquadramento como singular.

Também em uma interpretação apressada e puramente gramatical, que de longe se vê como adequada, o intérprete poderia ser conduzido a entender que o rol de serviços elencados nos incisos do transcrito artigo 30 seriam presumidamente inconciliáveis com a competição, o que seria completamente equivocado.

A uma, porque o caput do art. 30, que guarda identidade com a redação do caput do art. 25, da L. 8.666/1993, e do art. 10 do Regulamento, também aponta que a inexigibilidade de licitação depende da demonstração fática (e não presumida) de inviabilidade de licitação. A duas, porque, tratando-se de característica própria do objeto, a inviabilidade de competição independe de norma de direito positivo. Seria uma incongruência lógica, o mesmo objeto ser licitável em um órgão e ilicitável em outro.

Portanto, também nas Estatais, a inexigibilidade deve ser comprovada com o apontamento do caráter singular do objeto que se porá em execução, tudo, nos moldes acima propostos.

7 – Conclusão

Não tenho nenhuma  dúvida de que, de agora em diante, como se tem dito muito nos tempo hodiernos, o “novo normal” vai colocar a contratação de serviços de T&D no sistema EAD em patamar muito mais aproximado dos eventos presenciais. E assim penso porque fomos, todos, empurrados para o uso de disseminação de conteúdo por meio eletrônico. Não só as organizações e os agentes públicos, mas também as empresas e nós, professores e conferencistas, aprendemos que esse meio de difundir educação é absolutamente idôneo e viável.

Por isso, é mister que todos nós, órgãos e entidades da Administração Pública e Sistema S, empresas de treinamento e instituições de ensino, profissionais que desejem se capacitar e docentes de todas as áreas, nos preparemos adequadamente e busquemos um processo cíclico de melhoria a fim de que possamos melhor aproveitar as possibilidades que esse “novo normal” nos apresenta.

Destarte, considerando tudo o que aqui foi exposto, podemos sintetizar que os serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal no sistema EAD, nos mais variados formatos, no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública, podem ser contratados com o afastamento do dever geral de licitar, respeitando-se as seguintes premissas:

  1. entender que a inexigibilidade fundada no art. 25, II da Lei 8.666/93 depende da conjugação de três requisitos, a saber: (i) tratar-se de um serviço executado de forma predominantemente intelectual; (ii) possuir características que o torne singular; e, ser (iii) prestado por notório especialista, inclusive nas entidades do Sistema S e nas Estatais, apesar das variações normativas aqui apontadas;
  2. reconhecer que os serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, a exemplo das ações tradicionais, quando realizadas no formato EAD, também devem, por regra, ser considerados singular, posto que os resultados a serem obtidos (aprendizado) são absolutamente imprevisíveis;
  3. tais serviços somente serão licitáveis quando o método e/ou material didático forem preponderantes na obtenção do resultado, casos em que o docente se torna um facilitador, sendo que o resultado (aprendizado), ainda que não precisamente previsível, seria homogêneo;
  4. na contratação de cursos, a escolha da pessoa do executado é ato discricionário e exclusivo da autoridade competente, que deverá apontar as razões que o fizeram inclinar-se por este ou aquele profissional ou empresa;

Por Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

Especialista em Direito Administrativo. Professor Convidado da FGV e da da PUC-Rio; Professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR. Autor da obra Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, IBAM/Lumen Juris, 2011; Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, JML, 2018; e, Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratação de Serviços da Administração Pública, Estatais e Sistema S, JML, 2020. Ministra regularmente, em âmbito nacional, o curso Como Contratar Serviços de TD&E na Administração Pública, Estatais e Sistema S.


[1] Contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na Administração Pública: caso de licitação, dispensa ou inexigibilidade?, Boletim de Administração Pública e Gestão Municipal, Vol. 27. Curitiba: Governet, 2013; Revista JML de Licitações e Contratos, Vol. 33. Curitiba: JML, 2014; Revista do Tribunal de Contas da União, no. 129. Brasília: TCU, 2014; Boletim de Licitações e Contratos-BLC, Vol. 12/2017. São Paulo: NDJ, 2016; e, Informativo de Licitações e Contratos-ILC, Vol. 276. Curitiba: Zênite, 2017.
[2] Sobre o tema, vide nosso Contratação por inexigibilidade de licitação com fornecedor ou prestador de serviço exclusivo. Breve análise do art. 25, I da Lei 8.666/93. Revista do Tribunal de Contas da União, n. 134, p.18 usque 27
[3] Um estudo completo sobre a hipótese de inexigibilidade de licitação para contratação de serviços técnicos especializados, Fórum de Contratação e Gestão Pública, Belo Horizonte, ano 19, n. 219, p. 36-52, mar. 2020.
[4] Sobre credenciamento, vide o excelente artigo de DALLARI, Adilson Abreu, Credenciamento. RDE n. 05/2006, Salvador, BA
[5] Vide: TCU, Súmula 252; JUSTEN FILHO, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª. ed. Dialética. São Paulo, 2010, p. 367; MELLO, Celso Antônio bandeira de, Op. Cit., p.508; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 5ª. ed., Atlas. São Paulo, 1995, p. 273; CARVALHO FILHO, José dos Santos. 11ª ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2004, p. 226; JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Op. Cit. p. 605; MUKAI, Toshio, Op. Cit.
[6] Op. Cit., p.371.
 

Luiz Cláudio de Azevedo Chaves

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