Nova interpretação amplia a atuação de consórcios públicos como instrumento de eficiência e cooperação federativa
Edcarlos Alves Lima
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2022), onde também possui o título de especialista em Direito Tributário (2012). Especialista em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2013). L.L.M. em direito municipal da Católica Business School (UNICAP). Coordenador pedagógico e Professor do curso de direito das Faculdades Integradas Rio Branco Granja Vianna. Procurador-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Procuradoria Geral do Município de Cotia. Autor de artigos jurídicos, de capítulos de livros e autor do livro Inovação e Contratações Públicas Inteligentes, pela editora Fórum. Instrutor e palestrante na área de licitações e contratos. Parecerista da Revista da Defensoria Pública da União (DPU).
Como é sabido, ao consolidar práticas administrativas diversas e incorporar o vasto repertório jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, o legislador da Lei nº 14.133/2021 não atentou para as especificidades dos 5.568 municípios brasileiros — especialmente daqueles classificados como de pequeno porte, ou seja, com até 20 mil habitantes, que representam algo em torno de 70% dos entes federativos subnacionais.
Considerando que é no município que estão localizados os problemas mais complexos e os dilemas reais da vida em sociedade, tal ente é de fundamental importância dentro da opção federativa feita pelo Constituinte de 1988.
Apesar de sua relevância, a realidade dos municípios brasileiros é marcada por limitações econômicas, orçamentárias e estruturais, que comprometem sua capacidade de prover adequadamente os serviços públicos sob sua responsabilidade.
Neste contexto, tendo em vista que a execução da maioria das políticas públicas e a prestação de serviços essenciais dependem, direta ou indiretamente, de contratações públicas regulares, impõe-se uma reflexão: como os municípios, em especial os de pequeno porte, podem superar suas limitações técnicas e estruturais para realizar licitações eficientes e seguras?
Essa indagação revela um problema de alta relevância prática, sobretudo para os mais de 3.500 municípios brasileiros com até 20 mil habitantes, tradicionalmente marcados por restrições orçamentárias e carência de quadros técnicos qualificados.
É nesse cenário que a utilização de consórcios públicos como gestores centralizados de procedimentos licitatórios se apresenta não apenas como uma solução juridicamente possível, mas como uma estratégia institucional necessária à sobrevivência administrativa dos entes subnacionais.
A Lei nº 14.133/2021, ao disciplinar a nova sistemática das contratações públicas, reforça a potencialidade dos consórcios públicos como ferramentas de cooperação federativa.
A partir da leitura sistemática do art. 181 da nova legislação, compreende-se ser possível que os consórcios públicos promovam licitações para atender aos interesses comuns dos entes consorciados[1], sendo ainda mais relevante o parágrafo único, ao deixar claro que a execução do contrato poderá ser realizada diretamente pelos entes consorciados, sem que o consórcio necessariamente participe da execução.
Essa previsão normativa abre espaço para um modelo de atuação no qual o consórcio público se dedica exclusivamente à gestão técnica e procedimental dos atos preparatórios e externos da licitação, enquanto a execução contratual é descentralizada, respeitando a autonomia e particularidade de cada ente.
É válido sublinhar que a interpretação proposta apresenta não apenas respaldo jurídico, mas também adequação prática aos princípios constitucionais da eficiência administrativa (art. 37, caput, da CF) e da cooperação federativa (art. 241).
Pequenos municípios, que frequentemente carecem de equipes técnicas especializadas, podem encontrar, nesse modelo de atuação, a possibilidade concreta de promover licitações seguras, competitivas e regulares, superando barreiras que, de outra forma, inviabilizariam a concretização de políticas públicas comuns.
Sob a ótica dos princípios administrativos, o arranjo privilegia a eficiência, ao reunir expertise técnica centralizada em um único ente (o consórcio), a descentralização, com a execução adaptada às necessidades locais de cada município consorciado, e a legalidade, uma vez que a prática está expressamente autorizada pela legislação vigente.
A despeito de a Lei nº 14.133/2021 não definir expressamente o conceito de “licitação compartilhada”, o art. 181 e seu parágrafo único autoriza os consórcios públicos a promoverem procedimentos licitatórios em benefício dos entes consorciados, permitindo que a execução dos contratos se dê de forma descentralizada.
Trata-se de prática que, na realidade dos pequenos municípios, representa não apenas uma possibilidade jurídica, mas uma estratégia necessária de fortalecimento e melhoria da gestão pública.
Cumpre destacar que a atuação do consórcio público como mero gerenciador não representa uma distorção da lógica consorcial. Pelo contrário: ao centralizar a parte procedimental da contratação, sem impor a execução compartilhada do objeto, respeita-se a natureza federativa e a autonomia dos municípios, que celebram contratos individualizados e mantêm a responsabilidade sobre a execução dos serviços sob a ótica das especificidades locais.
Eventuais críticas, como a alegação de que haveria diluição de responsabilidade entre os entes consorciados, podem ser devidamente rebatidas. A adequada redação dos editais e dos contratos administrativos, com a clara definição dos papéis e obrigações de cada município participante, é capaz de garantir a individualização da responsabilidade e a transparência dos procedimentos.
Portanto, para pequenos municípios brasileiros, a utilização de consórcios públicos como gestores de licitações não é apenas uma alternativa válida, mas uma estratégia de sobrevivência institucional frente às exigências técnicas, jurídicas e econômicas cada vez mais complexas da nova legislação.
A correta implementação desse modelo permitirá não apenas maior racionalização dos recursos públicos, mas também o fortalecimento da governança local, assegurando contratações mais eficientes, regulares e transparentes, em sintonia com o espírito inovador da Lei nº 14.133/2021.
Assim, à indagação inicial — sobre como os pequenos municípios podem superar suas limitações para realizar licitações eficientes —, a resposta se revela clara: pela utilização estratégica dos consórcios públicos como gestores centralizados, garantindo eficiência, legalidade e a consolidação de um federalismo mais cooperativo e inclusivo.
[1] Aliás, essa possibilidade já encontrava respaldo na Lei nº 11.107/2005, que, ao disciplinar as cláusulas obrigatórias do protocolo de intenções, exigiu a inclusão de autorização expressa para que o consórcio público pudesse licitar ou outorgar concessão, permissão ou autorização de serviços públicos no âmbito da gestão associada de serviços públicos (art. 4º, inciso XI, alínea “c”).