Como é de notório conhecimento, em 11 de março foi declarada pela Organização Mundial da Saúde a pandemia gerada pela propagação global da COVID-19. Em razão disso, o estado de calamidade foi decretado no país[1], o que enseja a adoção de diversas medidas para combater a doença e evitar sua disseminação, com reflexos diretos na economia e nas atividades comerciais. E, nesse cenário de crise econômica, os mais afetados são os micro e pequenos empresários que não dispõem de fluxo de caixa para suportar as medidas adotadas pelo Governo para evitar a propagação do vírus (a exemplo do fechamento do comércio, redução do horário de funcionamento, isolamento social que acarreta a diminuição das vendas, dentre outros).
A “nova realidade” exige cautela dos gestores públicos, pois é preciso ponderar todos os valores em jogo: interesse público, reflexos econômicos e trabalhistas da crise, a fim de se reconhecer que o mercado público também precisa do mercado privado e, sem a sustentabilidade deste, o próprio interesse público perecerá. Em apertada síntese: se as empresas falirem, quem vai fornecer para o Estado, após cessada a pandemia?
Considerando que o Estado é um grande consumidor, a licitação torna-se um importante instrumento de concretização de políticas públicas, na medida em que fomenta o desenvolvimento de microempresas e empresas de pequeno porte, contribui para a geração de empregos, propicia o surgimento de novos negócios e a formalização daqueles que viviam na clandestinidade, além de privilegiar a aquisição de produtos nacionais e fomentar o mercado interno, dentre outros.[2]
Por reconhecer este poder de compra do Estado é que a Lei 12.349/2010 incluiu uma terceira finalidade legal à licitação, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, alteração promovida no art. 3º da Lei 8.666/93, em perfeita consonância à Constituição Federal que, em seu art. 3º, alçou o desenvolvimento nacional a objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, ao lado da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização, assim como da redução das desigualdades sociais e regionais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Assim, o Estado assume a função de garantir uma justiça social generalizada, propiciando as condições mínimas para a existência digna dos cidadãos. Infere-se, portanto, que há uma vinculação direta entre a concepção de Estado Democrático de Direito e o dever de concretizar políticas públicas, situação que repercute consideravelmente na esfera do direito administrativo, porquanto a Administração Pública deve pautar seus atos no sentido de viabilizar a consecução de tais direitos. E a licitação, por representar um instrumento por meio do qual o Estado adquire seus produtos e contrata seus serviços, deve ser manejada de forma a concretizar as políticas públicas esculpidas na Constituição Federal, especialmente a partir da alteração legislativa ocorrida em 2010, por intermédio da Lei 12.349.[3]
Não se pode olvidar que o Estado intervém no domínio econômico não apenas quando realiza atividades estatais ou disponibiliza utilidades aos indivíduos, mas também quando contrata com a iniciativa privada para suprir suas necessidades. O poder de compra do Estado, portanto, delineia a estrutura e o funcionamento da iniciativa privada, contribuindo de forma salutar para o desenvolvimento econômico do País. Não a toa, em tempos de crise na economia, há um aumento considerável dos gastos públicos, com o escopo de reaquecer o mercado. [4]
Mas o crescimento econômico, por si só, não é capaz de propiciar o desenvolvimento. Isso porque nem sempre o crescimento da economia gera igualitária distribuição de riqueza e melhoria na qualidade de vida da população em geral. Para que o crescimento econômico acarrete desenvolvimento é indispensável que ele venha acompanhado de maior oferta de empregos e redução da desigualdade social, com a consequente erradicação da pobreza.[5]
Resta claro, portanto, que o desenvolvimento nacional não pode ser vislumbrado apenas no viés econômico, ao contrário, a este conceito deve-se acrescentar o cunho social. Nas precisas lições de Daniel Ferreira, a interpretação sistemática do art. 3º da Constituição Federal induz à conclusão de que nossa República visa um crescimento econômico socialmente benigno, capaz de propiciar uma transformação social estrutural.[6]
Por conta disso, interpretando-se o art. 3º da Le 8.666/93 à luz da Constituição Federal, é possível concluir que o desenvolvimento nacional sustentável comporta, ao menos, três vetores: social, econômico e ambiental.[7]
Fácil perceber, portanto, que a modificação na Lei Geral de Licitações e Contratos teve o condão de concretizar princípios constitucionais – desenvolvimento nacional e fomento do mercado interno – utilizando o poder de compra do Estado para atingir tal desiderato.[8]
Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti asseveram que o princípio da supremacia da Constituição atrai para seu texto a definição de políticas públicas consideradas indispensáveis para garantir o chamado ‘mínimo existencial’ intrínseco à dignidade da pessoa humana. Para os autores, a atividade contratual da Administração é o caminho necessário e natural para permitir as compras, obras e serviços pertinentes aos projetos e programas que materializarão tais políticas públicas. Nessa toada, a própria legislação tem incorporado estímulos para a contratação de objetos que sejam indispensáveis para tal implementação.[9]
Fica assente a ideia de que as licitações e os contratos daí decorrentes possuem além de um fim imediato outro mediato. “[o contrato] deixa de ser apenas instrumento para o atendimento da necessidade de um bem ou serviço que motivou a realização da licitação para constituir, também, instrumento da atividade de fomento estatal, voltado, dessa forma, não só para os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado. Se o contrato cumprirá a finalidade de atender duplo interesse da Administração – imediato e mediato – é legítima e adequada a conclusão de que a seleção a ser procedida mediante o certame licitatório resulte na escolha da proposta que ofereça a maior vantagem em relação a ambos objetivos.” [10]
Em síntese, o poder de compra do Estado pode ser uma estratégia de política voltada ao desenvolvimento econômico sustentável, para a geração de emprego e renda nesse momento de calamidade pública em decorrência da pandemia do COVID-19. E o fomento às pequenas empresas é uma das vias já prevista em nosso ordenamento jurídico para a consecução desse objetivo[11], nos termos do disposto nos arts. 170, IX, e 179, da Constituição Federal e na Lei Complementar 123/06, considerando que as pequenas empresas são as grandes responsáveis pela geração de empregos em nosso país.
Assim, se antes da pandemia já havia o dever do Poder Público de concretizar as diretrizes da Lei Complementar 123/06, que estabelece benefícios às pequenas empresas quando da participação em licitações, com maiaor razão o tratamento diferenciado aplicável a esta categoria deve ser respeitado e concretizado pelo Estado durante a calamidade pública, como forma de contribuir para a permanência e sustentabilidade desses empreendimentos.
Essa foi a orientação do TCU:
“Para finalizar, ressalto que a existência da referida política se mostra mais importante no contexto atual, em que, no âmbito das medidas para se limitar o contágio relacionado à Covid-19, com vistas a promover o maior isolamento da população, em todo o país, estão sendo tomadas medidas para determinar o fechamento de estabelecimentos comerciais, industriais, entre outros. As ME/EPP poderão ser prejudicadas e, por consequência, por oferecerem a maior parcela de empregos no país, pode haver grande impacto no índice de desemprego e no desempenho da economia do país.
Cabe mencionar, nesse sentido, a iniciativa do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, que enviou manifestação a todos os municípios catarinenses, no sentido de que deve haver apoio ao movimento realizado pelo Sebrae, para que seja observado o capítulo V da Lei Complementar 123/2006, no intuito de manter e até ampliar o mercado de compras junto às ME/EPP, contribuindo para que permaneçam ativas e capazes de sustentar o vínculo laboral com seus trabalhadores[footnoteRef:12]. [12: Ofício Circular TCE/SC/GAP/PRES/4/2020, DE 27/3/2020, peça 49.]”. Acórdão 892/2020 – Plenário.
E, você, pequeno empresário, deve fazer valer seus direitos, exigendo do Estado a plena concretização da Lei Complementar 123/06!