MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.047/2021: NOVO ARCABOUÇO NORMATIVO PARA AS CONTRATAÇÕES EMERGENCIAIS VISANDO AO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA DE COVID-19

A Lei nº 13.979/2020, que trouxe, dentre outras medidas, a hipótese de contratação direta, por dispensa de licitação, de bens, serviços, inclusive os de engenharia, bem como insumos destinados para o enfrentamento da Covid-19, assim como a Lei nº 14.065/2021, que permitia, com alguns critérios e garantias, o pagamento antecipado no bojo de tais contratações, e também disciplinou o uso do Sistema de Registro de Preços, deixaram de existir, no arcabouço normativo, em 31 de dezembro de 2020, tendo em vista que suas vigências se vinculavam ao Decreto Legislativo nº 06, de 2020.

      Portanto, desde janeiro de 2021, os entes da federação, diante de uma emergência inadiável, para a qual o procedimento licitatório se demonstrasse um empecilho, deveria se socorrer, com todas as cautelas intrínsecas ao caso, da hipótese de contratação direta, por dispensa de licitação, fundamentada no art. 24, inciso V, da Lei nº 8.666/1993[1].

      Desde então, havia uma expectativa dos gestores públicos em torno da reedição, seja via projeto de lei ou medida provisória, do regime que vigia, sobretudo, sob a égide da Lei nº 13.979/2020, já que, como sabemos, a pandemia de Covid-19 não só continuou após 31 de dezembro de 2020, como se agravou sobremaneira, de modo a vivenciarmos o seu pior período nesses últimos meses[2].

      No âmbito do Congresso Nacional, especificamente na Câmara dos Deputados, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei nº 1.295/2021, apresentado, em 07/04/2021, pelo Deputado Rodrigo de Castro, no sentido de autorizar que a Administração Pública, durante a emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19, celebre contratos ou outros instrumentos diretamente, com dispensa de licitação.

      Após a tramitação interna, os objetivos do projeto foram sendo ampliados e, na versão final aprovada, cujo autógrafo foi enviado, em 03/05/2021, ao Senado Federal, passou a contemplar a aquisição de insumos e medicamentos de eficácia comprovada, bem como de bens e serviços, inclusive de engenharia, utilizados no tratamento de saúde em regime hospitalar de pacientes infectados pelo coronavírus responsável pela Covid-19 (Sars-CoV-2).

      Embora o escopo do projeto contemple a aquisição de insumos e medicamentos, assim como bens e serviços, inclusive de engenharia, o legislador pretende autorizar a utilização de tal hipótese de contratação direta apenas à seara específica da saúde[3].

      O referido projeto traz um modelo de contratação direta muito próximo daquele já veiculado pela Lei nº 14.124/2021, que dispôs sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas e de insumos e à contratação de bens e serviços de logística, de tecnologia da informação e comunicação, de comunicação social e publicitária e de treinamentos destinados à vacinação contra a covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.

      No mesmo dia em que o projeto aprovado na Câmara dos Deputados foi enviado à análise do Senado Federal, qual seja, em 03/05/2021, foi editada, pelo Presidente da República, e publicada no Diário Oficial da União, a Medida Provisória nº 1.047, de 3 de maio de 2021, que       dispõe sobre as medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia da Covid-19[4].

      No bojo da precitada Medida Provisória (MP), consta a reedição do regime de contratação direta antes previsto na Lei nº 13.979/2020, bem como a possibilidade de pagamento antecipado trazido pela Lei nº 14.065/2020, ambos aplicáveis às aquisições de bens, insumos e contratações de serviços, inclusive os de engenharia, necessários ao enfrentamento da pandemia de Covid-19.

      Por ter a Medida Provisória um escopo mais abrangente e regras mais bem detalhadas, deixa de fazer sentido, a nosso ver, a tramitação do Projeto de Lei nº 1.295/2021, podendo o Congresso Nacional apresentar à comunidade jurídica um único diploma normativo para as contratações urgentes e necessárias às ações de enfrentamento por todos os entes da Federação.

      A Medida Provisória, que já é plenamente aplicável, vale observar, está calcada em três eixos nela estruturados, de modo a autorizar: i) a dispensa de licitação, com possibilidade de adoção do Sistema de Registro de Preços, conforme regramentos trazidos nos artigos 3º e 4º; ii) a realização de licitação, na modalidade pregão – presencial ou eletrônico – com adoção de prazos reduzidos pela metade, no bojo do qual também poderá ser adotado o Sistema de Registro de Preços, na forma dos artigos 5º e 6º; e iii) o pagamento antecipado, mediante previsão no contrato ou instrumento equivalente, desde que observadas as condições do artigo 7º.

      Em termos de planejamento da contratação, também na forma do regime anterior da Lei nº 13.979/2020, foram previstas: i) a dispensa de elaboração de estudos preliminares para contratação de bens ou serviços comuns; ii) a exigência de gerenciamento de riscos somente na gestão do contrato; e iii) a utilização da termo de referência ou de projeto básico simplificados, que deverão conter, no mínimo, os requisitos do § 1º do art. 8º.

      Ainda, quanto à estimativa de preços prévia à contratação e/ou licitação, os parâmetros trazidos pela MP também são os mesmos já conhecidos e aplicados na vigência da Lei nº 13.979/2020, com possibilidade de tal estimativa ser dispensada em caráter excecional e mediante justificativa da autoridade competente.

      Quanto às regras gerais aplicáveis às contratações feitas sob à égide na novel Medida Provisória, que também não se diferem do regime anterior, foram previstos: i) obrigatoriedade de divulgação, no prazo de 5 dias úteis, contando da data de realização do ato, em sítio oficial, das informações detalhadas nos incisos I ao VIII; ii) limites para despesa com utilização de cartão corporativo, realidade pouco conhecida para muitas Administrações Municipais; iii) possibilidade de contratação de fornecedor exclusivo, ainda que declarado inidôneo ou impedido de licitar ou contratar pelo poder público, observada a condição prevista no parágrafo único do art. 12[5]; e iv) possibilidade de ser prevista, em contrato, cláusula de alteração unilateral, para fins de acréscimos e supressões, até o limite de 50% do valor inicial atualizado.

      Ainda em termos de regras contratuais, houve uma novidade trazida pela Medida Provisória, que é a obrigatoriedade de ser demonstrada a “vantajosidade” para o fim de possibilitar a renovação de contratos por períodos subsequentes e enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento da pandemia de Covid-19. Tal previsão não existia na Lei nº 13.979/2020 e levava, muitas vezes, à interpretação no sentido de que as renovações subsequentes deveriam ser feitas sem o cumprimento de certos requisitos.

      Outra novidade que não era prevista no regime anterior – e até com vistas a eliminar quaisquer dúvidas – é a aplicação suplementar, no que pertine às cláusulas dos contratos e instrumentos congêneres, da Lei nº 8.666/1993, de modo que, nas contratações feitas sob a égide da Medida Provisória, devem ser observadas as disposições do art. 55.

      É mister chamar a atenção do gestor para algumas questões relevantes, notadamente quando se tratar de utilização do Sistema de Registro de Preços.

A primeira é que não poderá haver a dispensa de estimativa prévia, na forma possibilitada pelo art. 8º, § 2º, tampouco a contratação por preços acima dos referenciais adotados pela Administração, na forma do § 3º, também do art. 8º.

      A segunda é que, diferentemente na conhecida sistemática aplicável dentro do SRP, em que se realiza a pesquisa trimestral de preços[6], há exigência de que, nas contratações celebradas após 30 dias da assinatura da Ata de Registro de Preços, deverá a Administração refazer a estimativa de preços, a fim de se certificar se os preços registrados permanecem compatíveis com o mercado.

      Em linhas gerais, o regramento da Medida Provisória ora analisado não se distancia, como visto, dos diplomas anteriores que, por estarem vinculados – equivocadamente, diga-se de passagem – à vigência do Decreto Legislativo nº 06/2020, deixaram de existir no plano jurídico a partir de 31 de dezembro de 2020.

      Considerando que o fim da pandemia – embora muito esperado por todos os cidadãos não só brasileiros, mas do mundo inteiro – é algo impossível de ser efetivamente previsto, espera-se que, quando da análise da comentada Medida Provisória, não haja vinculação de sua vigência a um evento determinado, mas sim que a futura lei possa vigorar pelo tempo necessário ao término das ações de combate e enfrentamento da pandemia de Covid-19.

      Por outro lado, esperamos dos gestores públicos responsabilidade e parcimônia para que não haja invocação indistinta do regime ora trazido pela Medida Provisória nº 1.047/2021, uma vez que, por estarmos há mais de um ano enfrentando a pandemia, é necessário ter o mínimo de planejamento possível, de modo a evitar emergências “fabricadas” ou que poderiam, em certa medida, serem submetidas ao regular procedimento licitatório, que, como sabemos, é a regra em nossa Constituição Federal.

      Em outros termos, não é a possibilidade em si de ser feita uma contratação direta, sem os rigores ordinários, que deve nortear a necessidade em torno do objeto de que necessita a Administração Pública, mas sim o contrário. Isto é, é a necessidade premente e inadiável que norteará a decisão do gestor em realizar uma contratação direta, por dispensa de licitação, em detrimento da deflagração do regular procedimento licitatório.


______________________
[1]
Tratamos dessa questão em artigo veiculado na Revista Consultor Jurídico, de 8 de fevereiro de 2021, 22h00. Disponível em (clique aqui). Acessado em: 04 Maio2021.
[2]Até o dia 02de maiode 2021, o Brasil registrava a existência de 14.754.910 milhões de casos confirmados e de 407.639óbitos causados pela doença em questão, conforme dados disponíveis em (clique aqui). Acessado em: 04 Maio2021.
[3]Essa é, inclusive, a justificativa expressada na proposição do projeto inicial, disponível em: (clique aqui). Acessado em: 04 Maio2021.
[4]De antemão, destaca-se que há impossibilidade de ser realizada obra de engenharia com fundamento nesta Medida Provisória. Nesse sentido, já tratamos da questão em artigo intitulado: “Contratação de obras de engenharia: inaplicabilidade da Lei nº 13.979/2020 e instrumentos possíveis de serem adotados” (in LIMA, EDCARLOS ALVES. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 9, n. 17, p. 49-68, mar./ago. 2020).
[5]Neste caso, a Medida Provisória ora analisada repete a mesma previsão contida na Lei nº 13.979/2020, tendo sido desconsiderado o fato de, quando da discussão da Medida Provisória 961/2020, que foi convertida na Lei nº 14.065/2020, houve a alteração da redação do dispositivo, que passou a ser a seguinte: “§ 3º  Na situação excepcional de, comprovadamente, haver uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço, será possível a sua contratação, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público”. Houve, portanto, a exclusão da possibilidade de contratar empresa inidônea, ainda que possuísse exclusividade no bem ou serviço de que necessita a Administração Pública.
[6]Vide art. 15, § 2º, da Lei nº 8.666/1993, combinado com o inciso XI do art. 9º, do Decreto Federal nº 7.892/2013.

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