A pandemia gerada pela propagação global da COVID-19, como é de notório conhecimento, ensejou a adoção de diversas medidas restritivas para combater a doença e evitar sua disseminação. Dentre elas, o isolamento social, com a suspensão de atendimento presencial em repartições públicas e empresas privadas; realização dos trabalhos em modo remoto (teletrabalho); etc. Isso, de fato, refletiu diretamente na rotina de todos, nas atividades comerciais e, também, na praxe administrativa, o que exige, por evidente, algumas adaptações necessárias para viabilizar a realização e a continuidade das contratações públicas.
Assim é que, no atual cenário, a modalidade de licitação que deve ser utilizada prioritariamente é o pregão eletrônico[1]–[2], posto que evita a aglomeração de pessoas em sessões públicas de recebimento/abertura de envelopes e realização de lances, além de ser um mecanismo de transparência, celeridade e aumento da competitividade.
Mas, não sendo possível a adoção do pregão eletrônico[3], pode a Administração realizar pregão presencial ou adotar outra modalidade de licitação que exija a realização da sessão pública com a reunião da Comissão, dos licitantes e demais interessados?
Sim, pode, no entanto, deve o ente licitante justificar a inviabilidade de adotar o procedimento eletrônico e a premente necessidade a ser atendida através da realização de certame presencial, destacando-se nesse sentido o posicionamento do Tribunal de Contas do Estado do Paraná:
“Há livre discricionariedade na realização de pregão presencial nesse momento de calamidade?
R: Inicialmente, deve-se reforçar aos jurisdicionados para que utilizem preferencialmente a modalidade de licitação eletrônica em detrimento do pregão presencial.
A orientação, que já é pacífica no âmbito desta Corte desde o julgamento do Acórdão nº 2605/2018 – Pleno (processo de Consulta em que se determinou que deve ser adotado via de regra o pregão eletrônico para aquisições de bens e serviços comuns, devendo constar justificativa expressa caso seja preterida a modalidade), ganha ainda mais importância durante o período de pandemia pelo qual o mundo todo atravessa.
Em virtude das orientações emanadas pelas autoridades de saúde para que seja feito distanciamento social, é natural que a disputa à distância seja a forma mais eficaz de proceder à contratação pública. O pregão eletrônico ajuda a ampliar a competitividade em um cenário com diversas restrições (como, por exemplo, os próprios obstáculos ao tráfego entre localidades distantes), além de contribuir para que sejam evitadas reuniões presenciais, diminuindo-se o risco de contágio pela enfermidade.
Para implantação da modalidade eletrônica nos municípios que ainda não têm essa prática estabelecida, este Tribunal de Contas recentemente publicou orientações sobre os procedimentos a serem adotados. Sugere-se a utilização do sistema Comprasnet, que é a plataforma da União e é disponibilizada gratuitamente aos demais entes públicos federados.
Além disso, aproveita-se a oportunidade para frisar que os prazos de transição fixados na Instrução Normativa nº 206/2019 do Ministério da Economia (a qual regulamentou o Decreto federal nº 10.024/2019, que obriga os municípios a realizarem licitação por pregão eletrônico quando utilizarem recursos federais) já se encerraram para boa parte dos jurisdicionados. Municípios com mais de 15.000 (quinze mil) habitantes devem utilizar preferencialmente o pregão eletrônico nos casos indicados pelo Decreto desde 06 de abril de 2020, enquanto os demais municípios têm até o dia 01 de junho de 2020 para procederem à adequação.
Na inviabilidade de realização do certame pelo formato eletrônico, orienta-se que o processo licitatório contenha justificativa expressa (reproduzida no edital, de forma pública) com as razões que obstam essa prática.”[4] (grifou-se)
Além disso, ao adotar modalidade de licitação em formato presencial, deve a Administração buscar adaptar os procedimentos, naquilo que for compatível e possível, para viabilizar a realização do certame ao mesmo tempo em que se garante a saúde e segurança dos envolvidos, adotando, por exemplo, mecanismos da tecnologia da informação para o momento de abertura dos envelopes e julgamento do certame (v.g. transmissão online), de modo que a publicidade e transparência do processo restem asseguradas. Da mesma forma, priorizar a comunicação e o recebimento de documentos via digital, bem como a prática em ambiente informatizado dos atos e procedimentos necessários ao deslinde do processo (a exemplo da fase recursal), etc., desde que os princípios incidentes nos processos licitatórios sejam preservados (publicidade, transparência, isonomia, etc.).
Porém, nem todos os atos desse processo serão passíveis de adaptação para serem realizados à distância ou eletronicamente, sob pena de afronta a princípios e regras fundamentais aplicáveis aos processos licitatórios e previstos nas leis de licitações.
Por exemplo, a realização da sessão de abertura dos envelopes de habilitação e propostas, embora possa ser transmitida aos licitantes e demais interessados através de meios digitais, exige-se que os membros da comissão estejam reunidos fisicamente para a rubrica e análise dos documentos, conforme prevê a Lei nº 8.666/93:
“Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:
(…)
Art. 43. A licitação será processada e julgada com observância dos seguintes procedimentos:
I – abertura dos envelopes contendo a documentação relativa à habilitação dos concorrentes, e sua apreciação;
(…)
§ 1º A abertura dos envelopes contendo a documentação para habilitação e as propostas será realizada sempre em ato público previamente designado, do qual se lavrará ata circunstanciada, assinada pelos licitantes presentes e pela Comissão.
§ 2º Todos os documentos e propostas serão rubricados pelos licitantes presentes e pela Comissão.
§ 3º É facultada à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, a promoção de diligência destinada a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta.” (grifou-se)
A rubrica nos documentos é importante para fins de controle e para demonstrar que os envelopes entregues estavam devidamente lacrados, os quais devem permanecer invioláveis até o momento de sua abertura, em especial o da proposta para garantir o seu sigilo, nos termos do que dispõe a Lei 8.666: “Art. 3° (…) § 3º A licitação não será sigilosa, sendo públicos e acessíveis ao público os atos de seu procedimento, salvo quanto ao conteúdo das propostas, até a respectiva abertura.”
Sobre o tema, comenta Marçal Justen Filho:
“A Lei determina que os documentos sejam rubricados pelos licitantes presentes e pela Comissão. Não haverá vício se apenas alguns dos licitantes efetivarem a rubrica. Essa rubrica destina-se a fornecer um meio objetivo de controle sobre a identidade entre os documentos apresentados e aqueles que posteriormente serão objeto da deliberação da Comissão. A exigência de assinatura não se trata de formalidade que se exaure em si mesma. Que se fazer, porém, se todos (ou parte) dos licitantes se recusarem a apor sua rubrica? Trata-se de simples irregularidade. A presença dos licitantes à sessão é facultativa. Logo, pode ocorrer de nenhum licitante comparecer. Nem por isso, haverávício. Se a rubrica do licitante fosse essencial à validade da licitação, também o seria o comparecimento à sessão de abertura de envelopes. Depois, os licitantes podem, inclusive, recusar-se a assinar a ata. Ora, não haveria qualquer fundamento para a ausência de rubrica por alguns ou todos os licitantes acarretar o vício insanável da licitação. Se fosse assim, inclusive, a validade da licitação ficaria na dependência de escolha unilateral de cada licitante.”[5] (grifou-se)
E o TCU sinaliza:
“[ACÓRDÃO]
9.2. com fundamento no art. 71, inciso IX, da Constituição Federal e no art. 45 da Lei nº 8.443/1992, c/c art. 251 do Regimento Interno do TCU, determinar à Coordenação-Geral de Logística e Serviços Gerais do Ministério da Previdência Social que:
9.2.1. […] adote as medidas cabíveis visando à anulação da Concorrência […], uma vez que a integridade do conteúdo das propostas técnicas restou comprometida pelas irregularidades verificadas no procedimento licitatório;
9.2.2. no procedimento licitatório que vier a ser instaurado em substituição à Concorrência […] e nas futuras licitações para contratação de serviços de publicidade e propaganda:
9.2.2.1. faça constar a rubrica dos licitantes presentes e dos membros da Comissão de Licitação no lacre dos envelopes entregues e não abertos na mesma sessão, em cumprimento ao disposto no § 2º do art. 43 da Lei nº 8.666/1993;
9.2.2.2. promova sessão pública para a abertura dos envelopes que contêm a documentação relativa às propostas das empresas, que deverá ser rubricada pelos licitantes e pelos membros da Comissão de Licitação;
9.2.2.3. oriente os membros das comissões de licitação que façam constar em ata todos os atos relativos ao processamento dos certames licitatórios”.[6] (grifou-se)
Sendo assim, na atual circunstância, para os certames presenciais, a Administração deve continuar exigindo para a participação no processo que os licitantes enviem seus envelopes lacrados, que poderão ser entregues por correio ou diretamente na sede do ente licitante e dentro do prazo indicado no edital, para que sejam rubricados pela Comissão e abertos em sessão pública[7], a qual, ao invés de ser realizada com a participação presencial de todos os interessados (para evitar aglomeração), pode (deve) ser transmitida ao vivo (videoconferência) para fins de controle e transparência.
E para resguardar os membros da Comissão de Licitação durante os procedimentos que exijam a sua reunião de modo presencial, cabe à Administração adotar as medidas de segurança e higiene recomendadas pelas autoridades (ambientes arejados, distância mínima entre as pessoas, utilização de máscaras, correta higienização das mãos, podendo, também ser utilizadas luvas descartáveis, etc.).
Nessa linha, corrobora a orientação da CGU/MA:
“10. 4) nos casos de obras ou serviços não comuns, inclusive serviços não comuns de engenharia, não relacionados ao enfrentamento do COVID-19, e não elegíveis para a adoção da modalidade RDC, é possível a realização de licitação nas modalidades tradicionais previstas na Lei nº 8.666/1993, quais sejam, Convite, Tomada de Preços ou Concorrência (a depender do valor estimado), desde que caracterizada, nos autos do processo, a necessidade imediata da contratação ou a impossibilidade de aguardar-se a realização do certame para além do período de isolamento social.
11. Nesta hipótese, a Administração deve assegurar, inclusive mediante previsão expressa em Edital, o cumprimento de medidas de prevenção, tais como: vedação de presença, na sessão, de representantes das empresas e de agentes de compras pertencentes ao grupo de risco; disponibilização de máscaras, luvas e álcool gel (70º INPM) para todos os presentes; organização do recinto com afastamento mínimo de 1 (um) a 2 (dois) metros de distância entre os presentes; intensificação da higienização das áreas de acesso à sala onde as sessões ocorrerão, além de higienização do próprio recinto, com especial atenção às superfícies mais tocadas (maçanetas, mesas, cadeiras, corrimões, elevadores etc.); dentre outras.
12. Necessário observar que não se trata aqui de invasão desta CGU às competências dos órgãos de vigilância sanitária, mas tão-somente de recomendações às unidades jurisdicionadas no sentido de (i) mitigar a propagação da pandemia, garantindo maior segurança a todos os presentes nas sessões presenciais (inclusive eventuais cidadãos), (ii) estimular a participação de empresas interessadas em certames que envolvam recursos federais, oferecendo-lhes um ambiente adequado de disputa, e (iii) salvaguardar os agentes de compras.
(…)
14. A orientação genérica por ora é, portanto, a de evitar-se, tanto quanto possível, a realização de certames presenciais, priorizando-se os certames em que pode ser adotada a modelagem eletrônica (Pregão e RDC).
15. Eis que, por um lado, a CGU não pode imiscuir-se no funcionamento dos órgãos nem exercer atos de co-gestão nas unidades jurisdicionadas, e, por outro, a Administração não pode se eximir de suas responsabilidades em função do princípio da continuidade do serviço público e da necessidade de manutenção de atividades essenciais em diversas áreas, as recomendações acima devem ser avaliadas criteriosamente pelos próprios gestores, tendo presente o interesse público, a realidade de cada órgão, a promoção da ampla competitividade nos certames licitatórios, a contratação a preços vantajosos para a Administração e o risco de contaminação para os envolvidos.
16. Caso, ainda assim, a Administração decida pela realização de Pregões Presenciais ou RDCs Presenciais, as medidas de prevenção citadas no parágrafo 11 devem ser observadas.”[8] (grifou-se)
Em suma, a presente situação de calamidade pública e as medidas restritivas para o enfrentamento da pandemia, de fato, exigem que a Administração adapte seus procedimentos para viabilizar a continuidade de suas contratações e atividades administrativas, naquilo que for possível. No entanto, quando inviável a adaptação para que os procedimentos sejam realizados de modo remoto, por mecanismos informatizados dotados dos requisitos de segurança adequados, devem ser adotadas as medidas de segurança e higiene necessárias para resguardar os envolvidos em situações que exijam a presença física das pessoas, conforme as recomendações e determinações das autoridades competentes.