SERÁ QUE É POSSÍVEL ADQUIRIR E CONTRATAR DIRETAMENTE QUAISQUER BENS OU SERVIÇOS EM RAZÃO DO ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA?

Como se sabe a regra prevista na Constituição Federal (art. 37, XXI) para as contratações públicas (obras, serviços, compras e alienações) é que estas devem ser precedidas por regular processo licitatório, ressalvados os casos especificados na legislação, que tratam das contratações diretas por dispensa e inexigibilidade.

Dentre as hipóteses de dispensa de licitação relacionadas na Lei nº 8.666 tem-se aquela relacionada a situações de calamidade pública. Mas será que basta a decretação do estado de calamidade para que a Administração possa contratar diretamente quaisquer bens ou serviços sob este fundamento? Vejamos o que prevê o art. 24, IV, da Lei 8.666:

“Art. 24 (…) IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos”.

Observa-se que para a validade desta contratação direta requer-se a presença dos seguintes requisitos: “situação emergencial ou calamitosa; urgência de atendimento; risco; e, contratação direta como meio adequado para afastar o risco”.[1]

Além disso, consoante doutrina de Diogenes Gasparini, segundo essa regra, a liberação do dever de licitar “somente será legítima em relação aos contratos e atos ligados ao estado de calamidade pública, visando combatê-lo ou minorar seus efeitos, e tão-só para a aquisição dos bens para isso necessários.”[2]

Vê-se, portanto, que não é crível que através desta hipótese de dispensa se contratem quaisquer serviços ou bens, mas tão somente aqueles objetos que tenham ligação lógica com a situação calamitosa e que visem combater ou diminuir os efeitos desta garantindo a segurança de pessoas e do patrimônio do órgão ou entidade. Ademais, entende-se que tal contratação direta deve se restringir apenas às situações que exigem pronto atendimento e não podem aguardar o processamento normal de uma licitação.[3]

Assim, em síntese, não se podem realizar contratações diretas com fundamento em calamidade pública para todo e qualquer caso, mas somente para os que reclamam atendimento imediato e se relacionam com a situação calamitosa.

Nesse mesmo sentido também é que se interpretam as regras constantes na Lei nº 13.979/2020, que são direcionadas às contratações relacionadas a objetos necessários para o enfrentamento da atual pandemia ocasionada pela disseminação da COVID-19, sendo oportuno destacar, aliás, que a dispensa de licitação prevista na Lei 13.979/2020 não se confunde com a dispensa por emergência ou calamidade já prevista na Lei de Licitações, conforme explicam Luciano Elias Reis e Marcus Vinícius Reis de Alcântara em artigo veiculado aqui no Blog JML:

“(…) a dispensa de licitação prevista na Lei nº 13.979/2020 é específica para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Como se verifica, o legislador preferiu fazer uma hipótese nova de dispensa de licitação. Logo, é uma dispensa de licitação por situação calamitosa, porém com fundamento legal e requisitos distintos da ‘ dispensa por emergência ou calamidade geral’ da Lei nº 8.666/93”. (grifou-se)

Nesta nova hipótese de dispensa de licitação já está presumido o atendimento dos requisitos necessários (conforme art. 4º-B da Lei 13.979: I – ocorrência de situação de emergência; II – necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; III – existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e IV – limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência), mas de todo modo, também caberá cautela da Administração para demonstrar que o objeto da contratação direta está relacionado ao atual quadro calamitoso decorrente da pandemia pelo coronavírus e que seu objeto se destina a combater ou diminuir os efeitos desta situação.

Para outros objetos que são necessários para a continuidade da execução das atividades da Administração, mas que não relacionados à situação de calamidade, o dever de licitar persiste, salvo se for possível enquadrar a contratação em outra hipótese de dispensa ou inexigibilidade, se presentes no caso concreto os requisitos exigidos por cada espécie.


[1] FERNANDES, , Jorge Ulisses Jacoby.Contratação direta sem licitação, Editora Brasília Jurídica, 2000, p. 343.
[2] GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 527.
[3] A respeito, oportuno o seguinte apontamento do TCU ao tratar da dispensa de licitação emergencial: “não se admite o pressuposto fático teórico como argumento para a contratação urgente por dispensa, pois a emergência tem que ser concreta e imediata a exemplo do desabamento de parte do muro de um presídio, possibilitando a fuga de presos. Nessa hipótese estaria autorizada a contratação por dispensa, apenas para as obras e serviços necessários à contenção da situação emergencial, sem prejuízo de realizar processo licitatório para reformar todo o muro do presídio à posteriori.” TCU. Acórdão 330/2004. Plenário

Ana Carolina Coura Vicente Machado

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