APLICAÇÃO DO DECRETO 9.781/19 AO SISTEMA S: ABERRAÇÃO JURÍDICA DISSIMULADA PELO DISCURSO DA TRANSPARÊNCIA.

Mais uma vez, a utilização do discurso da necessidade de maior transparência das informações pelas Entidades do Sistema S serviu de conceito mágico[1] para “maquiar”/transformar uma aberração jurídica em algo natural e socialmente desejável.

Não há dúvidas de que os Serviços Sociais Autônomos estão obrigados a cumprir com os princípios da publicidade (em decorrência do art. 2º, do Regulamento de Licitações e Contratos, bem como da natureza dos recursos que administram) e da transparência (este, inclusive, como algo inerente à própria Governança Corporativa).

Dessa feita, o dever de transparência se aplica tanto a instituições públicas quanto privadas, e em relação a estas últimas, inclusive, como forma de garantir a sustentabilidade/perenidade das organizações. Isso porque, uma das formas de blindar os Serviços Sociais Autônomos dos constantes ataques institucionais que estes vêm sofrendo é por meio da transparência. É indispensável que toda a sociedade conheça o importante papel social desempenhado pelos Serviços Sociais Autônomos, e a transparência é a via de acesso a tal controle.

A questão que surge, porém, é aferir se a transparência deve ser concretizada nos exatos termos da Lei do Acesso à Informação (Lei 12.527/11).

Antes de entrar no mérito do conteúdo do Decreto Federal n.º 9.781/19, que acaba por alterar o Decreto Federal nº 7.724/12, que por sua vez regulamenta a Lei Federal nº 12.527/11, publicamente conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), temos que chamar a atenção da sociedade em geral, para à flagrante inconstitucionalidade e impropriedades técnico-legislativas do normativo ora em discussão.

Em um primeiro momento, temos que lembrar que no ordenamento jurídico nacional há uma hierarquia normativa, justamente para se conferir segurança jurídica e unicidade dos atos normativos emanados por seus legitimados.

Nesse sentido, o próprio Decreto Federal n.º 9.781/19 em sua ementa revela tal lógica, pois consigna que altera outro decreto, que regulamenta uma lei ordinária, que por sua vez dá concretude aos comandos constitucionais previstos no inciso XXXIII do caput do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216. Vejamos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)  

III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

Como se vê, quantos aos excertos constitucionais citados, o constituinte de forma explícita produziu o que a doutrina constitucionalista[2] classifica de normas “de eficácia limitada”, o que implica dizer que possuem aplicação indireta, mediata e diferida. Ou seja, o seu efeito não pode ser sentido imediatamente, pois fica postergado no tempo, haja vista estar condicionado necessariamente à edição de norma específica, que no caso em concreto demorou mais de 10 anos para o conteúdo de alguns artigos (que tiveram sua redação inserida pela Emenda Constitucional n.º 19/98) e mais de 20 anos para outros (oriundos da redação original da CF/88).

Percebam que todos os trechos constitucionais mencionados são normas de eficácia limitada instituidora, uma vez que traçam em linhas gerais, o conteúdo normativo que a lei infraconstitucional irá estabelecer para possibilitar o exercício do conteúdo constitucional, cabendo a esta determinar as regras para sua aplicabilidade.

Nesse sentido, em um primeiro exercício, percebemos que a Lei Federal n.º 12.527/11 fez o seu papel. De forma objetiva, pragmática e didática, conseguimos constatar no quadro abaixo justamente essa conectividade normativa. Vejamos:

Constituição Federal/88 Lei Federal n.º 12.527/11
Art. 5
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: (…)

§ 1º Não sendo possível conceder o acesso imediato, na forma disposta no caput, o órgão ou entidade que receber o pedido deverá, em prazo não superior a 20 (vinte) dias:
I – comunicar a data, local e modo para se realizar a consulta, efetuar a reprodução ou obter a certidão;
II – indicar as razões de fato ou de direito da recusa, total ou parcial, do acesso pretendido; ou
III – comunicar que não possui a informação, indicar, se for do seu conhecimento, o órgão ou a entidade que a detém, ou, ainda, remeter o requerimento a esse órgão ou entidade, cientificando o interessado da remessa de seu pedido de informação.
§ 2º O prazo referido no § 1º poderá ser prorrogado por mais 10 (dez) dias, mediante justificativa expressa, da qual será cientificado o requerente.

Art. 37
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)  
III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.
Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida.  

Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.
§ 1º Na divulgação das informações a que se refere o caput, deverão constar, no mínimo:
I – registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público;
II – registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros;
III – registros das despesas;
IV – informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados;
V – dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades; e
VI – respostas a perguntas mais frequentes da sociedade.  

Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar:
I – recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa;
II – utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública;
III – agir com dolo ou má-fé na análise das solicitações de acesso à informação;
IV – divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal;
V – impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal cometido por si ou por outrem;
VI – ocultar da revisão de autoridade superior competente informação sigilosa para beneficiar a si ou a outrem, ou em prejuízo de terceiros; e
VII – destruir ou subtrair, por qualquer meio, documentos concernentes a possíveis violações de direitos humanos por parte de agentes do Estado.

Art. 216
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
Seção II
Da Classificação da Informaçãoquanto ao Grau e Prazos de Sigilo (Art. 23 e 24)

Seção IV
Dos Procedimentos de Classificação, Reclassificação e Desclassificação(Art. 27 a 30)

Na evolução da hierarquia normativa já mencionada neste artigo, os eventuais decretos editados pelo chefe do executivo federal possuem objetivos suficientemente definidos na própria Constituição, que em seu art. 84 nos revela que:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (g.f)

Com efeito, os referidos decretos existem no ordenamento jurídico para dar fiel execução à lei preteritamente sancionada, promulgada e publicada[3] . Em outras palavras, é ele que irá adentrar aos “pormenores” procedimentais de comandos legais, de forma a dar concretude operacional. Por essa razão, não podem criar novas obrigações aos destinatários da lei, por ser conteúdo de “reserva legal”[4] .

Nesse sentido, quando se lê o Decreto Federal n.º 7.724/12, depreende-se que conseguiu ficar o mais aderente à toda essa sequência lógica-normativa, pois seus capítulos e seções guardam pertinência com os temas deliberados na própria LAI.

Exemplo concreto dessa percepção é quando confrontamos o art. 2º da LAI e os arts. 63 e 64 do Decreto Federal n.º 7.724/12. Vejamos:

Lei Federal n.º 12.527/11 Decreto Federal n.º 7.724/12
Art. 2º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.
Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.
Art. 63. As entidades privadas sem fins lucrativos que receberem recursos públicos para realização de ações de interesse público deverão dar publicidade às seguintes informações:
I – cópia do estatuto social atualizado da entidade;
II – relação nominal atualizada dos dirigentes da entidade; e
III – cópia integral dos convênios, contratos, termos de parcerias, acordos, ajustes ou instrumentos congêneres realizados com o Poder Executivo federal, respectivos aditivos, e relatórios finais de prestação de contas, na forma da legislação aplicável.
§ 1º As informações de que trata o caput serão divulgadas em sítio na Internet da entidade privada e em quadro de avisos de amplo acesso público em sua sede.
(…)
§ 3º As informações de que trata o caput deverão ser publicadas a partir da celebração do convênio, contrato, termo de parceria, acordo, ajuste ou instrumento congênere, serão atualizadas periodicamente e ficarão disponíveis até cento e oitenta dias após a entrega da prestação de contas final.
Art. 64. Os pedidos de informação referentes aos convênios, contratos, termos de parcerias, acordos, ajustes ou instrumentos congêneres previstos no art. 63 deverão ser apresentados diretamente aos órgãos e entidades responsáveis pelo repasse de recursos.

Como se vê, o legislador ordinário muito bem se atentou quanto à peculiaridade das entidades privadas sem fins lucrativos (gênero no qual estão inseridos os Serviços Sociais Autônomos) e precisamente destacou que se aplicaria o comando legal, no que couber. Ademais, ressaltou ainda que não seria toda e qualquer entidade privada sem fins lucrativos, mas aquelas que recebessem, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres. 

Nesse sentido, cumpre alertar que os recursos públicos recebidos pelos Serviços Sociais Autônomos, oriundos da parafiscalidade tributária, não provêm do orçamento geral da União (OGU), nem de instrumentos como contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo e ajustes, pois a relação entre o Estado e tais entidades não é contratual e sim legal.

Por essa razão, a aplicabilidade normativa da LAI aos Serviços Sociais Autônomos alcançaria apenas as parcelas recebidas do Estado quando formalizado algum dos instrumentos mencionados (o que eventualmente acontece), motivo pelo qual o próprio parágrafo único do art. 2º da LAI reitera que a publicidade a que estariam submetidas tais entidades privadas sem fins lucrativos refere-se apenas à parcela dos recursos públicos recebidos e consequentemente à sua destinação.

Mais uma vez, em respeito à hierarquia normativa, o Decreto Federal n.º 7.724/12 acaba por criar capítulo para tratar justamente das entidades privadas sem fins lucrativos. Nele, sucintamente, o decreto apenas descreve o que deve ser apresentado e como (qual forma). Isto é, expõe operacionalmente como se faz para cumprir fielmente o comando legal.

Em que pese o artigo 63 mencionar apenas entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos públicos, não é qualquer recurso público. Primeiro, porque a lei ordinária contextualizou de forma precisa qual natureza de verba pública seria. Segundo, porque o artigo 64, logo na sequência, expõe que se tratam dos pedidos de informação referentes aos convênios, contratos, termos de parcerias, acordos, ajustes ou instrumentos congêneres previstos no art. 63.

Conclui-se, portanto, que os Serviços Sociais Autônomos não estão submetidos à Lei do Acesso à Informação na parcela relativa aos recursos parafiscais, o que não significa dizer que não devem atendimento à transparência, consoante destacado. Até porque o dever de transparência e algumas obrigações impostas na Lei 12.527/11 também estão previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.707/2018), que expressamente exige dos Serviços Sociais Autônomos o seguinte:

Art. 134. As entidades constituídas sob a forma de serviço social autônomo, destinatárias de contribuições dos empregadores, incidentes sobre a folha de salários deverão divulgar, trimestralmente, em seu sítio eletrônico, em local de fácil visualização:
I – os valores arrecadados com as referidas contribuições, especificando o montante transferido pela União e o arrecadado diretamente pelas entidades;
II – as demonstrações contábeis;
III – a especificação de cada receita e de cada despesa constantes dos orçamentos, discriminadas por natureza, finalidade e região, destacando a parcela destinada a serviços sociais e formação profissional; e
IV – a estrutura remuneratória dos cargos e das funções e a relação dos nomes de seus dirigentes e dos demais membros do corpo técnico.
§ 1º As entidades previstas no caput divulgarão também em seus sítios eletrônicos:
I – seus orçamentos de 2019;
II – demonstrativos de alcance de seus objetivos legais e estatutários, e de cumprimento das respectivas metas;
III – resultados dos trabalhos de auditorias independentes sobre suas demonstrações contábeis; e
IV – demonstrativo consolidado dos resultados dos trabalhos de suas unidades de auditoria interna e de ouvidoria.
§ 2º As informações disponibilizadas para consulta nos sítios eletrônicos devem permitir a gravação, em sua integralidade, de relatórios de planilhas, em formatos eletrônicos abertos e não proprietários.
§ 3º Aplica-se o disposto neste artigo aos conselhos de fiscalização de profissão regulamentada constituídos sob a forma de autarquia”.

Referida norma exige a publicidade e a transparência dos orçamentos, da estrutura remuneratória dos cargos e funções, assim como a relação dos nomes dos dirigentes e demais membros do corpo técnico dos Serviços Sociais Autônomos, com o intuito de concretizar os princípios constitucionais da moralidade e publicidade. Da mesma forma, o dever de transparência foi enfatizado pelo Tribunal de Contas da União no Acórdão 699/2016, do Plenário. Não obstante, sabe-se que as exigências da Lei 12.527/11 vão além do preconizado na Lei de Diretrizes Orçamentárias, não estando os Serviços Sociais Autônomos, em nosso entender, obrigados a tal cumprimento.

Entretanto, quando se faz leitura do Decreto Federal n.º 9.781/19, rapidamente salta aos olhos dos mais iniciantes apreciadores do Direito, um certo desvirtuamento do seu real objetivo como normativo “decreto” que é.

O conteúdo normativo que vamos revelar por meio da hermenêutica e da legística[5] , pode até assustar, pois nos parece mais uma vez que simplesmente voltamos no tempo em que autoridades livre e indiscriminadamente classificam institutos, determinam comportamentos, as vezes sem qualquer razoabilidade, tudo de acordo com a simples convicção, interesse e decisão da autoridade detentora do poder estatal.

Não podemos referendar o discurso de que “os fins (transparência) justificam os meios (forma de normatização)”, sob pena de endossarmos a retórica do “tudo é válido”, tão repudiado para situações negativas, mas “aceitável” para assuntos positivos, como a busca de uma maior transparência. O que desejamos aqui é alertar que em ambos os casos o argumento é equivocado.

Como revelaremos ao final deste ensaio, não estamos aqui a escandalizar ou fazer resistência a uma necessidade premente e fundamental na sociedade moderna, que anseia e deseja a cada dia, uma transparência ativa de toda e qualquer entidade, seja ela pública ou privada, estatal ou não, mas a demonstrar que há de ser ter um cuidado especial, um “carinho” na produção legiferante, ou simplesmente, obediência ao princípio do devido processo normativo.

Inicialmente, o referido decreto acrescenta um parágrafo único, ao art. 64, do Decreto Federal n.º 7.724/12, para estabelecer que “As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviço social autônomo, destinatárias de contribuições, são diretamente responsáveis por fornecer as informações (…)”.

Percebam que a redação expõe explicitamente que os Serviços Sociais Autônomos, por serem destinatários de contribuições, estariam sujeitos ao fornecimento das informações por ele (decreto) determinado. Contudo, como já exposto, não pode o decreto ir “contra” a lei, que de forma consciente e correta, especificou qual tipo de recurso público recebido estaria submetido aos ditames da lei. E mais uma vez, as contribuições parafiscais recebidas não são provenientes do orçamento geral da União, tampouco dos instrumentos contratuais vinculativos.

Como se vê, o legislador, conscientemente ou não, se utiliza de um silogismo[6] incompleto e que infelizmente chega a uma conclusão equivocada, razão pela qual seu argumento não deve se sustentar. Vejamos: Premissa 1: Serviços Sociais Autônomos são destinatários de contribuições. Conclusão: Por serem destinatários de contribuições, são diretamente responsáveis por fornecer informações. Entretanto, o silogismo completo deveria ser assim expressado. Premissa 1: As entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres se submetem, no que couber, ao termos da Lei de Acesso à Informação; Premissa 2: Serviços Sociais Autônomos são entidades com personalidade jurídica de direito privado e os recursos públicos recebidos como principal fonte de recursos são contribuições parafiscais. Conclusão: Os Serviços Sociais Autônomos se submetem à Lei de Acesso à Informação, no que couber, em relação aos recursos públicos recebidos na forma prescrita na lei (Lei Federal n.º 12.527/11), o que não inclui as contribuições parafiscais.

Ao acrescentar o art. 64-B e 64-C ao já citado Decreto Federal n.º 7.724/12, o decreto ora em discussão acaba por gerar outra atrocidade normativa, uma vez que cria obrigação para as partes (o que o afasta da sua finalidade, constitucionalmente prevista no art. 84, IV, CF/88). Senão vejamos:

“Art. 64-B.  As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviço social autônomo, destinatárias de contribuições, também deverão criar SIC, observado o disposto nos arts. 9º ao art. 24. (g.f)
Parágrafo único.  A reclamação de que trata o art. 22 será encaminhada à autoridade máxima da entidade solicitada.” (NR)
“Art. 64-C.  As entidades com personalidade jurídica de direito privado constituídas sob a forma de serviço social autônomo, destinatárias de contribuições, estarão sujeitas às sanções e aos procedimentos de que trata o art. 66, hipótese em que a aplicação da sanção de declaração de inidoneidade é de competência exclusiva da autoridade máxima do órgão ou da entidade da administração pública responsável por sua supervisão.”

Infere-se que o normativo impôs aos Serviços Sociais Autônomos a criação do SIC (Serviço de Informação ao Cidadão), observado o disposto nos arts. 9º a 24, do Decreto 7724/12. Referido sistema visa: a) atender e orientar o público quanto ao acesso à informação; b) informar sobre a tramitação de documentos nas unidades; e c) receber e registrar pedidos de acesso à informação.

O SIC deve ser instalado em local de fácil acesso ao público, disponibilizar o registro dos pedidos de informação em sistema eletrônico específico, com entrega de número de protocolo e, sempre que possível, fornecer de imediato a informação solicitada. Caso a informação não esteja disponível de imediato, a entidade deverá, no prazo de até vinte dias, prorrogável por dez, mediante justificativa:

a) enviar a informação ao endereço físico ou eletrônico informado;
b) comunicar data, local e modo para realizar consulta à informação, efetuar reprodução ou obter certidão relativa à informação;
c) comunicar que não possui a informação ou que não tem conhecimento de sua existência;
d) indicar, caso tenha conhecimento, o órgão ou entidade responsável pela informação ou que a detenha; ou
e) indicar as razões da negativa, total ou parcial, do acesso.

Por fim, eventual negativa do pedido de acesso à informação deve ser encaminhada ao solicitante no prazo de resposta (20 dias), informando: a) asrazões da negativa de acesso e seu fundamento legal;b) apossibilidade e prazo de recurso, com indicação da autoridade competente para julgá-lo e; c)possibilidade de apresentação de pedido de desclassificação da informação, quando for o caso, com indicação da autoridade classificadora que o apreciará.

Embora as alterações citadas entrem em vigor em agosto de 2019 (art. 3º, do Decreto 9.781/2019) e a redação do art. 64-B, do Decreto nº. 7.724/2012, induza à conclusão de que o Sistema de Informação ao Cidadão deve respeitar o procedimento anteriormente destacado, com fundamento no disposto nos arts 9º e 24, não se pode perder de vista que o art. 2º, do Decreto 9.781/2019 estabelece que a implantação do SIC deve seguir as diretrizes definidas em conjunto pelos Ministros de Estado da Controladoria Geral da União e da Economia, de sorte que, enquanto não publicada norma regulamentadora, entende-se que os Serviços Sociais Autônomos não estão obrigados ao cumprimento dessa exigência, em específico.

Por fim, como se não bastasse, o decreto determina que as informações a serem divulgadas incluam aquelas a que se referem os incisos I ao VIII do § 3º do art. 7º do Decreto Federal n.º 7.724/12, atendendo-se ao disposto no § 1º do art. 7º e no art. 8º[7] . Em resumo, há referência ao conteúdo a ser divulgado, bem como a forma de disponibilização de tal conteúdo.

É nesse momento que chamamos a maior atenção da comunidade jurídica, em especial das Entidades do Sistema S, pois nessa hora é muito oportuno lançar o conceito mágico da transparência para justificar qualquer tipo de imprecisão técnico-normativa.

Entretanto, não podemos “cair” nesse tipo de tentação, pois há de se ter maior zelo no processo de construção e decisão sobre o conteúdo de um novo ato normativo, seguindo-se metodologicamente a legística[8] .

Mergulhando na perspectiva da legística material, compartilhamos a ótima orientação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), constante em seu estudo intitulado Better Regulation, no qual consigna que uma boa regulação deve: I) Servir claramente aos objetivos definidos na política governamental; II) Ser clara, simples e de fácil cumprimento pelos cidadãos; III) Ter base legal e empírica; IV) Ser consistente com outras regulações e políticas governamentais; V) Produzir benefícios que compensem os custos, considerando os efeitos econômicos, sociais e ambientais disseminados por toda a sociedade.

Ora, quando comparamos a sugestão do conteúdo a ser disponibilizado e o que já efetivamente é publicizado pelos SSAs, verifica-se nitidamente uma omissão metodológica normativa, pois há uma ignorância (no mínimo parcial) quanto à evolução das Entidades do Sistema S em busca da transparência ativa, do seu jeito e modo, justamente para deixar claro que o interesse público pode ser devidamente atendido por outro modo que não seja o mesmo do interesse estatal.

O Acórdão n.º 699/16 – Plenário, do Tribunal de Contas da União pode ser considerado paradigmático para os SSAs, pois serviu de “estopim” para o desenvolvimento de ações em busca da efetiva transparência ativa das informações, bem como do alinhamento e padronização delas, diante das inúmeras regionais da grande maioria das referidas entidades.

Em resumo, desconsiderar esse aspecto é simplesmente comprovar a inconsistência do normativo com as demais regulações e políticas sobre o assunto aplicáveis ao Sistema S, além de comprovar a falta de base legal, o que gera como consequência, uma má regulação, de um assunto que merece a mais profunda, precisa e cuidadosa análise.

De qualquer sorte, superando todas essas digressões, o fato é que a norma entrará em vigor em agosto de 2019, cabendo a cada entidade do Sistema S, se julgar conveniente e oportuno, tomar as medidas jurídicas para questionar sua legalidade.


[1] Expressão que quando lançada em uma justificativa/argumentação, acreditando-se fielmente em sua carga axiológica (no caso, a transparência), acaba sendo útil para simplesmente “encerrar” qualquer tipo de discussão a respeito de um determinado tema (no caso, publicização de informações).
[2] Entre vários, citamos: José Afonso da Silva, Gilmar Ferreira Mendes e Ingo Sarlet.
[3] Ressalvar os intitulados “decretos autônomos”, previstos no art. 84, VI, da CF/88, assim classificados por não regulamentar nenhuma legislação, haja vista tratarem de forma direta sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; e extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; 
[4] Entendido como aquele quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal (ou a atos equiparados, na interpretação firmada na praxe administrativa. (CRISAFULLI, Vezio apud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 421.
[5] Metodologia estruturada justamente para garantir a qualidade de um determinado ato normativo, por meio da racionalização em sua elaboração, com a adoção de práticas de simplificação e consolidação, de modo a evitar a proliferação legislativa sem técnica ou rigor científico, permitindo uma avaliação dos impactos legislativos daquele determinado ato.
[6] Raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas proposições (premissas), das quais se obtém por inferência uma terceira (conclusão)
[7] Art. 7º (…)
§ 3º Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1º, informações sobre:
I – estrutura organizacional, competências, legislação aplicável, principais cargos e seus ocupantes, endereço e telefones das unidades, horários de atendimento ao público;
II – programas, projetos, ações, obras e atividades, com indicação da unidade responsável, principais metas e resultados e, quando existentes, indicadores de resultado e impacto;
III – repasses ou transferências de recursos financeiros;
IV – execução orçamentária e financeira detalhada;
V – licitações realizadas e em andamento, com editais, anexos e resultados, além dos contratos firmados e notas de empenho emitidas;
VI – remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluídos os auxílios, as ajudas de custo, os jetons e outras vantagens pecuniárias, além dos proventos de aposentadoria e das pensões daqueles servidores e empregados públicos que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme estabelecido em ato do Ministro de Estado da Economia; (Redação dada pelo Decreto nº 9.690, de 2019)
VII – respostas a perguntas mais frequentes da sociedade; (Redação dada pelo Decreto nº 8.408, de 2015)
VIII – contato da autoridade de monitoramento, designada nos termos do art. 40 da Lei nº 12.527, de 2011 , e telefone e correio eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão – SIC; e (Redação dada pelo Decreto nº 8.408, de 2015)
IX – programas financiados pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.
Art. 7º
§ 1º Os órgãos e entidades deverão implementar em seus sítios na Internet seção específica para a divulgação das informações de que trata o caput.
Art. 8º Os sítios eletrônicos dos órgãos e das entidades, em cumprimento às normas estabelecidas pelo Ministério da Economia, atenderão aos seguintes requisitos, entre outros: (Redação dada pelo Decreto nº 9.690, de 2019)
I – conter formulário para pedido de acesso à informação;
II – conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão;
III – possibilitar gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações;
IV – possibilitar acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina;
V – divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação;
VI – garantir autenticidade e integridade das informações disponíveis para acesso;
VII – indicar instruções que permitam ao requerente comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade; e
VIII – garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência.
[8] Que a propósito está estruturada na Lei Complementar n.º 95/98 (para tratar dos aspectos formais) e no Decreto Federal n.º 9.191/17 (para tratar dos aspetos materiais).

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