Por Julieta Mendes Lopes[1]
Os Serviços Sociais Autônomos consubstanciam-se em entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de caráter não governamental, de interesse coletivo e de utilidade pública, que têm por competência precípua a execução de políticas públicas não exclusivas do Estado[2].
Essa modelagem foi concebida na década de 1940, diante da necessidade de promover educação profissional de qualidade para o desenvolvimento da indústria, bem como bem-estar social, face aos desafios do pós-guerra.
Nesse contexto surgiram as primeiras entidades do chamado Sistema “S”: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), criado em 1942; Serviço Social da Indústria (SESI), criado em 1946; Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC), criado em 1946; e Serviço Social do Comércio (SESC), criado no mesmo ano, 1946.
Com o advento da Constituição Federal (em 1988) houve uma ampliação dessas entidades: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), em 1990; Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), no ano seguinte, em 1991; Serviço Social de Transporte (SEST) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), ambos de 1993; Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP), de 1998.
Em julgamento proferido no Recurso Extraordinário nº. 789.874/DF, o Supremo Tribunal Federal distinguiu os Serviços Sociais Autônomos vinculados a entidades sindicais (Sistema S) e os demais:
“Presente esse quadro normativo, pode-se afirmar que os serviços sociais do Sistema “S”, vinculados às entidades patronais de grau superior e patrocinados, basicamente, por recursos recolhidos do próprio setor produtivo beneficiado, receberam, tanto da Constituição Federal de 1988, como das legislações que os criaram, inegável autonomia administrativa, limitada, formalmente, apenas ao controle finalístico, pelo Tribunal de Contas, de aplicação dos recursos recebidos.
As características gerais básicas desses entes autônomos podem ser assim enunciadas:
(a) dedicam-se a atividades privadas de interesse coletivo cuja execução não é atribuída de maneira privativa ao Estado;
(b) atuam em regime de mera colaboração com o poder público;
(c) possuem patrimônio e receita próprios, constituídos, majoritariamente, pelo produto das contribuições compulsórias que a própria lei de criação institui em seu favor; e
(d) possuem a prerrogativa de autogerir seus recursos, inclusive no que se refere à elaboração de seus orçamentos, ao estabelecimento de prioridades e à definição de seus quadros de cargos e salários, segundo orientação política própria.
4. É importante não confundir essas entidades, nem equipará-las com outras criadas após a Constituição de 1988, cuja configuração jurídica tem peculiaridades próprias. É o caso, por exemplo, da Associação das Pioneiras Sociais – APS (serviço social responsável pela manutenção da Rede SARAH, criada pela Lei 8.246/91), da Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX (criada pela Lei 10.668/03) e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI (criada pela Lei 11.080/04).
Diferentemente do que ocorre com os serviços autônomos do Sistema “S”, essas novas entidades (a) tiveram sua criação autorizada por lei e implementada pelo Poder Executivo, não por entidades sindicais; (b) não se destinam a prover prestações sociais ou de formação profissional a determinadas categorias de trabalhadores, mas a atuar na prestação de assistência médica qualificada e na promoção de políticas públicas de desenvolvimento setoriais; (c) são financiadas, majoritariamente, por dotações orçamentárias consignadas no orçamento da própria União (art. 2º, § 3º, da Lei 8.246/91, art. 13 da Lei 10.668/03 e art. 17, I, da Lei 11.080/04); (d) estão obrigadas a gerir seus recursos de acordo com os critérios, metas e objetivos estabelecidos em contrato de gestão cujos termos são definidos pelo próprio Poder Executivo; e (e) submetem-se à supervisão do Poder Executivo, quanto à gestão de seus recursos.
Bem se vê, portanto, que ao contrário dos serviços autônomos do primeiro grupo, vinculados às entidades sindicais (SENAC, SENAI, SEST, SENAT e SENAR), os do segundo grupo (APS, APEX e ABDI) não são propriamente autônomos, pois sua gestão está sujeita a consideráveis restrições impostas pelo poder público, restrições que se justificam, sobretudo, porque são financiadas por recursos do próprio orçamento federal. (grifou-se)
Não obstante, julga-se mais adequado incluir entes como a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI, criada pela Lei 11.080/2004, e a Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX, instituída pela Lei 10.668/2003, cujo custeio é feito essencialmente por recursos repassados pelo Poder Público e têm corpo dirigente diretamente nomeado pela Presidência da República numa terceira classe, conforme reconhecido pelo TCU no Acórdão nº. 3554/2014, do Plenário:
“81. No voto condutor do Acórdão 519/2014-TCU-Plenário, o Ministro-Relator Aroldo Cedraz, com base na doutrina, distinguiu três classes de Serviços Sociais Autônomos: a) Sistema S vinculados ao sistema sindical, têm criação autorizada por lei e detém parte da capacidade tributária (salvo a de instituir tributos); b) serviços sociais mediante contratos de gestão: instituídos diretamente por lei após a extinção de órgão público preexistente e recebem recursos orçamentários (Associação das Pioneiras Sociais); e c) ABDI e APEX: custeio através de recursos repassados pelo Poder Público e corpo dirigente nomeado pela Presidência da República”.
Saliente-se que os Serviços Sociais Autônomos tiveram sua criação autorizada por norma[3] e atuam em diversas áreas: assistência, educação, saúde, cultura, comércio e indústria, desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, transporte, apoio à promoção agropecuária, ao cooperativismo e às pequenas empresas, dentre outros.
Para o desempenho de suas funções precípuas, tais entidades são mantidas, regra geral, por contribuições compulsórias ou parafiscais, conforme pontuado pela doutrina:
“Os Serviços Sociais Autônomos (SSAs) surgiram como entidades com personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criadas por confederações mediante autorização legislativa, atuando sem submissão à Administração Pública mas por ela controlada, para desenvolver atividades privadas de interesses públicos ministrando assistência ou ensino a certas categorias sociais ou profissionais, vinculadas ao sistema sindical, mantidas por contribuições compulsórias ou parafiscais arrecadadas pelas próprias entidades e por estas geridos. Sua finalidade é formar profissionais capacitados e qualificados para beneficiar a sociedade como um todo. Sua existência contribui para um aperfeiçoamento das mais diversas atividades realizadas pela iniciativa privada”.[4] (grifou-se)
Nessa linha, as entidades que compõem o sistema sindical – foco deste artigo – apresentam as seguintes características: “i) dedicam-se a atividades privadas de interesse coletivo cuja execução não é atribuída de maneira privativa ao Estado; ii) atuam em regime de mera colaboração com o poder público; iii) possuem patrimônio e receitas próprios, constituídos, majoritariamente, pelo produto das contribuições compulsórias que a própria lei de criação institui em seu favor; e iv) possuem a prerrogativa de autogerir seus recursos, inclusive no que se refere à elaboração de seus orçamentos, ao estabelecimento de prioridades e à definição de seus quadros de cargos e salários, segundo orientação política própria, patrocinados basicamente por recursos recolhidos do próprio setor produtivo beneficiado”[5].
Irretocável, em nosso entender, o conceito apresentado por Luiz Arnaldo Pereira da Cunha Junior, Eurípedes Aureliano Junior e Thiago Alvim Camargo:
“(…) entidades privadas sem fins lucrativos, criadas por lei, não integrantes da Administração Pública direta ou indireta, que atuam em colaboração com o Poder Público em atividades de interesses públicos e utilidades públicas, sem subordinação hierárquica, segundo regime jurídico privado qualificado por derrogações de ordem pública”.[6]
Do conceito doutrinário supra, é possível concluir que, embora os Serviços Sociais Autônomos sejam entidades privadas sem fins lucrativos, possuem características semi-públicas ou atípicas, pois as atividades de interesse coletivo ou público que desempenham e a natureza dos recursos que administram trazem a incidência de um regime jurídico híbrido, ou seja, de direito privado, mas com derrogações de ordem pública, fato este que lhes concedem prerrogativas e, ao mesmo tempo, lhe impõem obrigações/limitações.
Não integram a Administração Pública, nem direta nem tampouco a indireta. Mas desempenham função de relevante interesse público e/ou coletivo, em regime de colaboração com o Poder Público.
Diferenciam-se, portanto, de empresas tipicamente de direito privado pela natureza pública e/ou coletiva das atividades que desempenham, pelas restrições impostas na gestão dos recursos e face ao necessário controle a que estão sujeitas, conforme já se manifestou o Tribunal de Contas da União:
“11. Obviamente que isso não implica descuidar de regras balizadoras da ação institucional, pois embora as entidades do Sistema ‘S’ sejam dotadas de personalidade jurídica de direito privado, são entes que prestam serviço de interesse público ou social, beneficiadas com recursos oriundos de contribuições parafiscais pelas quais hão de prestar contas à sociedade.”[7]
Embora as entidades integrantes do Sistema “S” estejam obrigadas a licitar, não se submetem à norma geral de licitações e contratos (Lei nº. 14.133/21), pois o art. 1º, da referida lei, ao especificar os órgãos e entidades submetidos aos seus termos, não contemplou os Serviços Sociais Autônomos[8].
Com efeito, de longa data o Tribunal de Contas da União entende que os Serviços Sociais Autônomos podem editar regulamentos próprios de licitações e contratos, consoante exposto na Decisão nº. 907/97 e ratificado no Acórdão nº. 577/2020, do Plenário:
“1.1 – improcedente, tanto no que se refere à questão da ‘adoção’ pelo SENAC/RS, da praça pública Daltro Filho, em Porto Alegre – RS, quanto no que tange aos processos licitatórios, visto que, por não estarem incluídos na lista de entidades enumeradas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.666/1993, os Serviços Sociais Autônomos não estão sujeitos à observância dos estritos procedimentos na referida Lei, e sim aos seus regulamentos próprios devidamente publicados;” (TCU. Decisão nº 907/1997 – Plenário. Rel.: Min. Lincoln Magalhães da Rocha.).[9] (grifou-se)
Porém, cumpre alertar que os Regulamentos devem respeitar os princípios que incidem nas licitações públicas e nos contratos administrativos, por conta da natureza do recurso que administram. Sobre o tema, colaciona-se, mais uma vez, a posição do Tribunal de Contas da União:
“Quanto ao terceiro setor, tem-se que, para os serviços sociais autônomos (Sistema S), que recebem contribuições parafiscais, a jurisprudência do TCU é no sentido de que tais entidades não se sujeitam à estrita observância da Lei de Licitações e Contratos, mas sim aos seus regulamentos próprios devidamente publicados, os quais devem se pautar pelos princípios gerais da Administração Pública e específicos do processo licitatório. Tais regulamentos não podem, contudo, inovar na ordem jurídica, por exemplo, instituindo novas hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação. Nas hipóteses de omissão dos regulamentos ou afronta (ou risco de afronta) aos princípios citados, o TCU pode recomendar ou determinar alterações dessas normas próprias.
Nesse sentido, o Tribunal tem determinado ao Sistema S a utilização do pregão, preferencialmente eletrônico, para aquisição de bens e serviços comuns, inclusive de engenharia; o parcelamento do objeto, quando divisível; e a realização de procedimentos para o adequado planejamento das contratações, como a elaboração de estudo técnico preliminar e termo de referência ou projeto básico.”[10]
Nessa perspectiva, as obras, serviços, compras e alienações realizadas pelas entidades do Sistema “S” subordinam-se aos Regulamentos dessas entidades e aos princípios que informam a licitação, a exemplo da isonomia, transparência[11], integridade, legalidade, moralidade, competitividade, julgamento objetivo, eficiência, dentre outros.
Nesse sentido é a jurisprudência do STF:
1. As entidades paraestatais não integram a Administração Pública Federal Direta ou Indireta. Porém, essa característica não afasta a sua submissão a determinadas regras impostas aos entes públicos. O regime jurídico privado, ao qual se submetem, é parcialmente derrogado por normas de direito público, uma vez que tais entidades recebem incentivo e proteção do Estado.[12]
Infere-se que os Serviços Sociais Autônomos, por estarem sujeitos a regime jurídico predominantemente de direito privado, possuem maior liberdade em comparação à Administração Pública.
Dessa feita, é possível sim que o Sistema “S”, utilizando seu poder regulamentar e em consonância ao regime jurídico de direito privado, inove em matéria de contratos, adotando procedimentos mais céleres e menos burocráticos e que isso venha impactar nos contratos celebrados pela Administração Pública, pois embora sujeita a regime jurídico de direito público, a própria Lei 14.133/21, prescreve no art. 89 que: “Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”.
Ademais, cumpre relembrar que também a Administração celebra contratos de direito privado, a exemplo de locações imobiliárias, seguros, dentre outros. Para estes, não há dúvidas de que o Poder Público poderia se inspirar nas boas práticas do Sistema “S”. Inclusive, a própria Lei nº. 14.133/21 afastou do seu objeto de incidência os contratos regidos por leis específicas (art. 3º, da Lei Geral de Licitações). Seria possível cogitar, por exemplo, a prorrogação da vigência do contrato de locação imobiliária para além de 10 (dez) anos, na esteira do previsto no § 3º, do art. 33, do Regulamento de Licitações e Contratos, em conjunto com a Lei do Inquilinato. Sobre esse tema, o art. 112, da Lei Geral de Licitações prescreve que os prazos estabelecidos na referida lei não excluem e não revogam os prazos definidos em lei especial.
Mas, e para a formalização dos contratos administrativos, é possível buscar inspiração nos Regulamentos do Sistema “S”?
Antes de responder a essa pergunta, cumpre destacar que, embora os Serviços Sociais Autônomos possam criar regulamentos próprios de Licitações e Contratos, com procedimentos mais céleres e flexíveis, o que tem se verificado é a reprodução de institutos da Lei 14.133/21. Ainda que a Lei de Licitações deva ser utilizada como parâmetro naquilo que traz boas práticas, os Serviços Sociais Autônomos deixam de inovar significativamente ao simplesmente reproduzirem os institutos da Lei Geral de Licitações.
Mesmo no âmbito da indústria, cujo Regulamento editado em 2023 tentou romper com o regime jurídico de direito público, o que se verifica, com o devido respeito, é a mera substituição de nomenclatura, por exemplo, trocando licitação por processo de seleção ou inexigibilidade por procedimento sem disputa, sem efetivamente inovar.
Em matéria de contratos, por exemplo, os Regulamentos publicados entre maio e julho deste ano reproduziram lógica muito semelhante à Lei 14.133/2021.
Ainda que as inovações estejam muito aquém do esperado, em nosso entender, há sim espaço para a inspiração.
Sabe-se que o regime jurídico de direito público a que está sujeita a Administração Pública lhe confere certas prerrogativas, as chamadas cláusulas exorbitantes que, embora tenham o intuito de tutelar o interesse público, muitas vezes oneram em demasiado a contratação. Há, inclusive, doutrinadores que “criticam a formatação especial dos contratos administrativos e as prerrogativas da Administração, sob o argumento de que elas se originaram da insatisfação do Estado em se submeter às regras de direito privado, algo tido como autoritário e abusivo”.[13]
Conforme destaca Ronny Charles, “a tendência de contratualização da atividade administrativa é, na verdade, um reflexo da ampliação do Estado Democrático de Direito, conceito que, ao mesmo tempo, impõe a relativização dos autoritarismos estatais (inclusive nos contratos) incompatíveis com essa formatação constitucional de Estado. Necessário, contudo, que o regime jurídico do contrato administrativo evolua para uma formatação mais flexível e dinâmica, sob pena de prejuízo a uma função basilar do instrumento contratual, que é facilitar a troca e a cooperação entre as partes interessadas”[14].
E, nesse sentido, é possível sim buscar as boas práticas dos Serviços Sociais Autônomos, naquilo que o regime jurídico que lhe é imposto permite maior eficiência, sem descuidar da legalidade e da segurança jurídica.
É preciso diferenciar, na linha do professor Marçal Justen Filho, o contrato enquanto expressão da vontade das partes do contrato enquanto formalização da relação jurídica. Isso para responder à seguinte pergunta: o contrato (enquanto expressão da autonomia da vontade das partes) poderia afastar previsões legais genéricas para limitar a atuação da Administração Pública ou para ampliar direitos em favor dos particulares?
Alguns defendem que a disciplina legal sobre a contratação administrativa incide de modo automático, independentemente da previsão constante no contrato.
O art. 89, da Lei 14.133/21, deve ser interpretado no sentido de que o contrato será regido por suas cláusulas desde que não contrariem os preceitos de direito público e que a disciplina prevista contratualmente só teria pertinência diante da omissão do legislador? Ou, ao contrário, podemos reconhecer que a sistemática da Lei 14.133/21 consagra a autonomia da Administração Pública para formular soluções mais vantajosas, sendo que, nesse caso seria plenamente viável buscar as inovações dos contratos e dos Regulamentos do Sistema S?
Na visão de Marçal Justen Filho:
“Em uma acepção, contrato administrativo consiste num ato jurídico bilateral, de natureza consensual, de que é parte a Administração Pública. Sob esse enfoque, a expressão indica aquele ato que se encontra na origem de uma relação jurídica.
A expressão “contrato administrativo” também é utilizada para indicar a relação jurídica estabelecida entre as partes, em virtude daquele ato jurídico específico. Nesse caso, alude-se a contrato administrativo para indicar o conjunto de direitos e obrigações previstos e a sua execução, que se prolonga durante um período de tempo.
A distinção é necessária para compreender a redação do caput do art. 89, em que existe referência às duas acepções da expressão contrato administrativo.
O dispositivo determina que o relacionamento jurídico entre as partes (contrato administrativo como relação) será disciplinado pelo ato jurídico que lhe deu origem (contrato administrativo como ato).
(…)
Há controvérsia sobre a amplitude de autonomia das partes na pactuação do contrato administrativo. A questão comporta uma pluralidade de aspectos distintos. Interessa examinar, no presente ponto, a questão da prevalência das regras contratuais relativamente às normas legais.
Trata-se de avaliar o cabimento de o contrato administrativo (como ato) afastar a aplicação de regras legais genéricas, inclusive para limitar a atuação da Administração e (ou) para ampliar direitos e proteção em favor do particular.
Alguns defendem que a disciplina legal sobre a contratação administrativa (relação jurídica) incide de modo obrigatório e automático, independentemente da previsão constante no contrato (ato jurídico). Mais ainda, afirma-se que devem ser reputadas como não escritas as regras pactuadas distintas daquelas previstas na lei, mesmo que tenham sido voluntariamente adotadas entre as partes no momento do aperfeiçoamento do contrato.
A controvérsia apresenta implicações relevantes, especialmente para a interpretação do art. 89. Se for reputado que os ‘preceitos de direito público’ – concebidos como um conjunto indeterminado e impreciso de imposições inerentes à disciplina da atuação do Estado – aplicam-se de modo automático a toda e qualquer contratação, ter-se-á de admitir que são irrelevantes as previsões pactuadas no mundo real pelas partes.
Admitida a tese indicada no item anterior, caberá uma revisão hermenêutica do art. 89, superando-se a sua redação literal. Ter-se-á de admitir que a disciplina legal seria a seguinte:
‘Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelos preceitos de direito público e por suas cláusulas, naquilo que não forem incompatíveis com tais preceitos…’.
Ou seja, a disciplina prevista contratualmente teria natureza supletiva em vista dos preceitos de direito público. O contrato administrativo (como ato) apenas disciplinaria o contrato administrativo (como relação) quando se configurasse a omissão legislativa.
Reputa-se que a tese tradicional não se afigura como a mais compatível com a Lei 14.133/2021. A estrutura sistemática do diploma é orientada a promover a consagração da autonomia da Administração para formular as soluções mais satisfatórias.
(…)
Uma das características da Lei 14.133/2021 consiste em atribuir à Administração a discricionariedade para conceber e para disciplinar a contratação.
Por isso, admite-se que as cláusulas contratuais contemplem a delimitação das competências administrativas.
De todo modo, não se admite a desconsideração das cláusulas contratuais. A disciplina prevista em lei é delimitada para o caso concreto por meio das cláusulas contratuais. As soluções consagradas contratualmente norteiam o processo licitatório. Como decorrência, são fundamentais para a identificação do interesse dos particulares e a formulação das propostas pelos licitantes. Não é cabível invocar, depois de concluída a licitação e formalizada a avença, a incompatibilidade da disciplina concretamente adotada em face da lei. Mais precisamente, não é cabível promover a reconstrução da disciplina aplicável ao relacionamento jurídico sob o argumento da prevalência das normas legais sobre aquelas constantes do edital e do contrato”.[15]
Reflexão interessante diz respeito aos aditivos contratuais. Sabe-se que o art. 125, da Lei 14.133/21, permite acréscimo unilateral aos contratos nos percentuais de 25% (vinte e cinco por cento) para obras, serviços e compras e 50% (cinquenta por cento) para reformas de equipamentos ou edifícios. Diferente da Lei 8.666/93, a Lei 14.133/21 não veda expressamente alteração contratual acima dos limites legais, quando em comum acordo entre as partes. Questão que tem despertado controvérsia doutrinária é se há possibilidade de modificar o contrato, acima do percentual previsto em Lei, desde que decorra de consenso entre as partes.
O professor Marçal Justen Filho, por exemplo, defende que a alteração consensual pode ocorrer acima do limite legal:
“Basicamente, trata-se de reconhecer que o art. 125 da Lei 14.133/2021 disciplina especificamente as alterações impostas de modo unilateral e compulsório, sem a concordância do contratado. Mas não contempla vedação genérica e ilimitada a toda e qualquer modificação. Logo, é cabível promover alteração que supere os limites previstos, desde que mediante concordância entre as partes.
(…)
Por outro lado, não é cabível vedar alterações que superem o referido limite nas hipóteses do art. 124, inc. I, al. “a”, que se referem às alterações qualitativas.
É impossível manter a concepção original do empreendimento, eis que conduziria a resultado desastroso.
Portanto, configura-se situação em que a Administração tem o dever de promover a alteração. Omitir a modificação equivaleria a infringir o princípio da indisponibilidade dos interesses fundamentais”.[16]
Ronny Charles, por seu turno, salienta:
“Convém observar que o texto não repetiu a regra da Lei nº. 8.666/93 que aplicava os limites para as alterações consensuais que gerassem aumento de valor.
A Lei nº. 8.666/93, após definir os limites para as alterações unilaterais no § 1º do art. 65 (com redação similar a da Lei nº. 14.133/2021), regrou no § 2º que nenhum acréscimo ou supressão poderia “exceder os limites estabelecidos no parágrafo anterior”, ressalvando, apenas “as supressões resultantes de acordo celebrado entre os contratantes”.
A Lei nº. 14.133/2021 não repetiu dispositivo com redação semelhante ao § 2º do art. 65 da Lei nº. 8.666/93.
Diante da ausência, os limites existiriam apenas para as alterações unilaterais?
Em nossa opinião, mesmo sem a existência de limite expresso na legislação, os percentuais definidos como limite para alterações contratuais devem, via de regra, ser também respeitados nas alterações contratuais que repercutam em acréscimos no valor das contratações. Não faria sentido admitir, inadvertidamente, que as partes pudessem pactuar aumentos de 100% ou 200%, fragilizando a isonomia e a vinculação ao instrumento convocatório.
Apenas excepcionalmente, pode-se admitir que as alterações consensuais superem os limites definidos pelo legislador (25% regra geral e 50% para acréscimo no valor da contratação nas hipóteses de reforma de edifício ou de equipamento)”.[17]
Os Regulamentos de Licitações e Contratos permitem alterações consensuais acima dos limites previstos na Lei 14.133/21, porém, com o intuito de preservar princípios mínimos, a exemplo da isonomia, a regulamentação também traz requisitos, principalmente para não acarretar a desnaturação do objeto.
Assim, julga-se crível a aplicação desse raciocínio para justificar alterações consensuais acima dos limites legais, principalmente no caso de modificações qualitativas, desde que justificadas.
O contraponto que tem sido apresentado é o seguinte: a modificação contratual, sem limitação, pode desnaturar o objeto e afrontar as regras da licitação. É claro que os juristas que defendem a viabilidade de alteração contratual consensual acima dos limites legais em nenhum momento defendem a desnaturação do objeto. É sempre imprescindível a motivação, a razoabilidade e, principalmente, comprovar que eventual alteração não acarretará jogo de planilhas, sendo imprescindível o controle.
Mesmo os Regulamentos dos Serviços Sociais Autônomos, que poderiam conferir maior flexibilidade, em consonância ao regime jurídico de direito privado, não permitem alterações contratuais consensuais ilimitadas. Ao contrário, o Regulamento optou por limitar, ainda que em percentual superior ao da Lei – 50% cinquenta por cento para qualquer alteração contratual. Ao que tudo indica, o intuito do Regulamento foi preservar as regras da licitação e os princípios da isonomia e da competitividade.
Por fim, duas inovações dos Regulamentos de Licitações e Contratos são interessantes e, no meu modo de ver, podem servir de inspiração à Administração Pública.
A exemplo da Lei 14.133/21, os Regulamentos também estabelecem a pré-qualificação, enquanto um procedimento anterior à licitação, com o intuito de homologar produtos/ marcas e/ou fornecedores, para numa futura licitação restringir a participação apenas dos pré-qualificados, procedimento que certamente contribui para a celeridade e eficiência das contratações.
E os Regulamentos permitem que a pré-qualificação de um Serviço Social Autônomo seja utilizada por outro. Com efeito, embora a pré-qualificação seja muito vantajosa, ela requer uma estrutura administrativa mínima, para elaboração do edital, designação da comissão técnica, análise de amostras e/ou documentos equivalentes que comprovem a qualidade do objeto, quando se trata de qualificação objetiva. Nem todo órgão tem condições, de sorte que a possibilidade de um órgão e/ou entidade utilizar a pré-qualificação de outro é bem interessante.
Essa hipótese também foi adotada para o credenciamento. Cumpre lembrar que o credenciamento também consiste num procedimento auxiliar a uma futura contratação, previsto no art. 78 da Lei 14.133/21, que poderá dar origem a um contrato com fundamento em inexigibilidade de licitação, nos termos do art. 74, inciso IV, da Lei Geral. Então, por meio deste procedimento, a Administração Pública credencia vários fornecedores, para depois contratá-los, de acordo com a demanda e respeitando os critérios definidos em edital (rodízio, escolha pelo usuário ou cotações, como ocorre nos mercados fluidos).
Os Regulamentos do Sistema “S” permitem, desde que haja previsão no edital, a utilização de um credenciamento instaurado por um Serviço Social Autônomo por outro, o que pode contribuir, no meu ponto de vista, para a celeridade e eficiência das contratações, pensando mais uma vez nos órgãos que tenham estrutura administrativa mais enxuta. Algo muito similar ao que temos hoje com a figura da adesão a ata de registro de preços.
Em face do exposto, é forçoso concluir que, embora os Regulamentos de Licitações e Contratos dos Serviços Sociais Autônomos confiram certa flexibilidade, ainda há muita margem para inovação quando tais entidades, de fato, se desvincularem do modelo aplicável à Administração Pública. Para que tal ocorra, é de salutar importância que os órgãos de controle estejam receptivos a tais mudanças, reconhecendo o peculiar regime jurídico aplicável ao Sistema “S”. A Administração, por seu turno, pode se inspirar nas eventuais boas práticas adotadas por tais entidades, reconhecendo sua autonomia para bem atender ao interesse público, sempre respeitando, por evidente, os limites legais.
[1] Palestra proferida no XXV Congresso Paranaense de Direito Administrativo, em Curitiba – Paraná, no dia 05 de setembro de 2024.
[2]“O modelo SSA, face o exposto, deve ser considerado pelos gestores públicos como uma alternativa para a implementação de políticas públicas não exclusivas de Estado.
A consideração acima está alicerçada na quantidade de SSAs identificadas, na diversidade de áreas de atuação dos mesmos, e, ainda, na distribuição observada nas três esferas. A expansão do modelo, pós-CRFB, de 1988, deve ser interpretada como resposta à necessidade de modelos mais flexíveis para a implementação de políticas públicas não exclusivas de estado, pari passu com maior relação ou influência do próprio poder público”. CUNHA JUNIOR, Luiz Arnaldo Pereira da; SADDY, André; KNOPP, Glauco da Costa; AURELIANO JUNIOR, Eurípedes. Serviço Social Autônomo: alternativa à implementação de políticas públicas não exclusivas de Estado. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. – ano 18 – n. 72 | abril/junho – 2018. Belo Horizonte | p. 1-300 | ISSN 1516-3210 | DOI: 10.21056/aec.v18i72.
[3] “Isto significa que a participação do Estado, no ato de criação, se deu para incentivar a iniciativa privada, por meio de subvenção garantida por meio da instituição compulsória de contribuições parafiscais destinadas especificamente a essa finalidade. Não se trata de atividade que incumbisse ao Estado, como serviço público, e que ele transferisse para outra pessoa jurídica, por meio do instrumento de descentralização. Trata-se, isto sim, de atividade privada de interesse público que o Estado resolveu incentivar e subvencionar”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. Ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 221.
[4] CUNHA JUNIOR, Luiz Arnaldo Pereira da; SADDY, André; KNOPP, Glauco da Costa; AURELIANO JUNIOR, Eurípedes. Serviço Social Autônomo: alternativa à implementação de políticas públicas não exclusivas de Estado. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. – ano 18 – n. 72 | abril/junho – 2018. Belo Horizonte | p. 1-300 | ISSN 1516-3210 | DOI: 10.21056/aec.v18i72
[5] BARBOZA, Ana Caroline Milhomens. O terceiro setor e as diferenças existentes entre serviço social autônomo e organização social. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/311471/o-terceiro-setor-e-as-diferencas-existentes-entre-servico-social-autonomo-e-organizacao-social. Acesso em 24 de julho de 2024.
[6] CAMARGO, Thiago Alvim; AURELIANO JUNIOR, Eurípedes; CUNHA JUNIOR, Luiz Arnaldo Pereira da. O modelo serviço social autônomo: alternativa flexível para a implementação de atividades de interesse público. In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, IV., 25-27 de maio de 2001, Brasília. Anais… Brasília, 2011.
[7] TCU. Acórdão 7/2002. Plenário.
[8] Art. 1º. Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;
II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
§ 1º. Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.
§ 2º. As contratações realizadas no âmbito das repartições públicas sediadas no exterior obedecerão às peculiaridades locais e aos princípios básicos estabelecidos nesta Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por ministro de Estado.
[9] Acerca do tema, recomenda-se a leitura da Revista JML de Licitações e Contratos Edição Especial: Sistema “S” – Dever de Licitar – Não Aplicação Direta da Lei nº 8.666/1993 – Observância de seus regulamentos. Comentários às Decisões Paradigmas, Curitiba, p. 83, dezembro de 2006.
[10] TCU. Licitações & Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU/Tribunal de Contas da União. 5ª Edição, Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, 2023, p. 134.
[11] Sobre esse princípio, já se manifestou o TCU:
“Boletim de Jurisprudência 447/2023
ACÓRDÃO
Acórdão 3585/2023-TCU-Primeira Câmara (Pedido de Reexame, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues)
INDEXAÇÃO
Licitação. Sistema S. Legislação. Acesso à informação. Princípio da publicidade. Internet.
ENUNCIADO
Nas contratações realizadas no âmbito do Sistema S, a falta de divulgação, no sítio oficial da entidade na internet ou no sistema Licitações-e do Banco do Brasil, dos documentos de habilitação da licitante vencedora, dos eventuais recursos e contrarrazões apresentados, do contrato administrativo e dos respectivos anexos e aditivos viola o princípio da publicidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal, bem como os arts. 6º, inciso I, e 8º, §§ 1º e 2º, da Lei 12.527/2011 (LAI), c/c o art. 64-A do Decreto 7.724/2012”.
[12] STF – MS 37.626/2024.
[13][13] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. 12. Ed. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 532.
[14] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. 12. Ed. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 532.
[15] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1208-1210.
[16] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/21. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1415-1416.
[17] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. 12. Ed. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 646.